Lemos e não acreditamos: “Mutilação genital feminina atinge números recorde após a pandemia”, titula o Diário de Notícias de dia 25 de novembro de 2022. Os 138 casos descobertos em 2021 nos centros de saúde e hospitais portugueses representam um aumento de 39 % em relação aos 99 de 2020, ano em que o país fechou devido à pandemia, ultrapassando os 126 verificados no ano anterior, que era até agora o valor mais alto, e duplicando os números de 2018 (63). Desde 2014, foram registados um total de 668 casos de excisão em Portugal, segundo a Plataforma de Dados da Saúde. Estas situações foram detetadas sobretudo em mulheres oriundas da Guiné-Bissau (63%), da Guiné-Conacri (27%) e Senegal (4%), durante o acompanhamento, no nosso país, da respetiva gravidez ou do parto. Ainda que a quase totalidade destas mutilações se tenha verificado em deslocações aos países de origem, há pelo menos um caso, em 2021, que ocorreu em território português. Apesar de tudo, uma gota de água nos cerca de 200 milhões de casos denunciados pela UNICEF a nível mundial, em países como a Nigéria, Eritreia, Etiópia, Costa do Marfim, Somália, Serra Leoa, Sudão do Norte, Gana e Gâmbia, para além dos já referidos. Na segunda década do século XXI, como é possível a subsistência destas práticas bárbaras?
A mutilação genital feminina constitui um grave atentado aos direitos humanos, sendo considerada crime ao abrigo de legislação específica em Portugal desde 2015 (lei n.º 83/2015). É também o caso do crime de casamento forçado de menores de idade, infelizmente uma prática bem mais comum em determinadas comunidades portuguesas. Relativamente a este crime verificam-se mesmo duas circunstâncias agravantes: por um lado, a complacência inexplicável das autoridades perante uma transgressão tão grosseira da lei; por outro, a tentativa da sua justificação pela invocação de uma qualquer marca cultural ou tradição identitária. Tão criminosa é uma como a outra atitude. Para além das questões morais e éticas que se levantam, aquilo a que aqui se assiste é a uma violação flagrante dos princípios básicos da justiça e da legalidade. O caráter universal dos preceitos da cidadania é liminarmente posto em causa.
Estamos a falar do cerceamento do desenvolvimento pessoal e social de raparigas de 13, 14, 15 anos, obrigadas a uma vida conjugal extemporânea e às perturbações sanitárias (tanto ao nível psicológico, como físico) e encargos implicados nas situações de gravidez infantil. Estamos a falar do abandono precoce da escolaridade – que, recorde-se, é obrigatória até aos 18 anos de idade – com tudo o que isso implica de menorização individual (coartando a aquisição de conhecimentos e o desenvolvimento de capacidades e atitudes) e constrangimento social. Esta manifesta discriminação feminina, impedindo as mulheres do pleno usufruto dos direitos, liberdades e garantias da cidadania, constitui uma das chagas mais escandalosas com que, enquanto sociedade, nos confrontamos.
Não se trata de legiscentrismo ou nomofilia. É que, nas democracias, o império do direito resulta do princípio universal dos direitos (carácter geral e abstrato da lei) e não de um mero alvedrio jurídico (carácter casuístico do preceito legislativo). E essa foi uma conquista civilizacional decisiva da humanidade, precisamente contra o reino do arbítrio e do privilégio (a lex privata) e em defesa da igualdade, imparcialidade e justeza da norma legal. Não se trata de negar as diferenças e especificidades comunitárias, mas de lhes impor o limite dos mais elementares direitos humanos – e, desde logo, a liberdade individual e a dignidade da pessoa – bem como do respeito pelas garantias legais fundamentais. É o requisito da generalidade da lei que garante a igualdade de tratamento (e de consideração social): por ser comum, a lei obriga a todos, “quer quando protege, quer quando pune”, como consta, por exemplo, do artigo 6º da seminal Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 26 de agosto de 1789. De resto, o princípio da universalidade da lei e da igualdade de todos os cidadãos perante as suas determinações está amplamente plasmado nos artigos 12º e 13º da Constituição da República Portuguesa.
O problema é que este desfasamento entre os princípios proclamados e a realidade social tem consequências na credibilidade do sistema democrático e consequente adesão das populações às regras vigentes. Mutatis mutandi, e fazendo nossas as palavras do escritor israelita David Grossman, “O fosso entre as pessoas e o que se passa está a aumentar. O problema é que esse abismo nunca permanece vazio, há sempre alguém interessado em atulhá-lo: os fundamentalistas, os nacionalistas, os racistas.” (Público, 24/11/2022).
Hugo Fernandez