UMBIGUISMO
Os resultados das últimas eleições locais revelaram muito das fragilidades do PCP, seguindo a tendência do seu declínio eleitoral que, nas últimas legislativas, não foi além de 3% dos votos (cerca de 180 mil votantes). Com uma erosão autárquica imparável desde 2013, a CDU perdeu 7 presidências de câmara (de 19 em 2021, para 12), 55 vereadores e 163 deputados municipais, perdendo as suas duas únicas capitais de distrito, Évora e Setúbal. Deixou de ser alternativa no bastião histórico comunista de Beja (que há dois mandatos, tinha perdido para o PS), agora nas mãos de uma coligação liderada pelo PSD. Algo nunca visto; a direita a ganhar em Beja! As perdas em percentagem de votos são brutais um pouco por todo o lado, com quedas de 30% para 11% em Loures, ou de 22% para 13% em Vila Franca de Xira.
A recusa de qualquer convergência a nível nacional (se excetuarmos a coligação com o PEV, uma criação sua), é demonstrativa de uma preocupante ausência de estratégia política, pelo menos se, por isso, entendermos a aspiração a ser uma força partidária com real implantação social e a ter voz nos destinos do país. A perda de capacidade de análise e de avaliação aprofundada – e realista – das condições existentes, só pode conduzir ao desastre. O que estas eleições amplamente demonstraram é que a falta do mais elementar pragmatismo na ação política reforça, com dolorosa eficácia, o dogmatismo de seita. É a expressão acabada do umbiguismo político.
Parece, pois, confirmar-se o diagnóstico de Daniel Oliveira, segundo o qual “O PCP já não luta pelo poder, luta pela sobrevivência, pela preservação da identidade, pelo património”, para concluir, “Um partido não serve para isso. Para isso erguem-se museus.” (Expresso, 15/10/25). Esta “afirmação de princípios vazia de objetivos, confundindo cegueira com coragem”, como certeiramente afirma o jornalista, teve uma comprovação cabal na luta autárquica por Lisboa. A recusa de fazer parte da coligação de esquerda, encabeçada pela candidata da ala mais progressista do PS e que, inclusive, ofereceu a vice-presidência ao candidato comunista, João Ferreira, e a participação efetiva na elaboração do respetivo programa eleitoral, é verdadeiramente incompreensível. A alegação de que “o João Ferreira era melhor” é, como refere Daniel Oliveira, “dos raciocínios mais ausentes de reflexão política que se pode ouvir de um marxista.” O resultado, previsível, foi tristemente demonstrativo: dos 20 mil votos que faltaram para derrotar Moedas, bastavam e sobravam os 26 mil conquistados pela CDU. Em Lisboa, o PCP podia, de facto, ter feito a diferença. Em vez disso, garantiu a vitória da direita na capital do país e a continuação da gestão desastrosa de Carlos Moedas no mais importante município português.
O desvario dos responsáveis comunistas é tão grande que Manuel Loff, vai ao ponto de dizer que, “À esquerda, a CDU obteve um resultado bem acima das expectativas.”, fazendo uma aritmética falaciosa com o aumento do número de votos em comparação com as eleições legislativas. Mas mesmo um historiador tão “alinhado” como ele, reconhece que “à esquerda do PS, se tenha de, antes que seja tarde, retirar consequências da forma como o sistema eleitoral impacta na sua representação política.”, e “encontrar formas de convergir que permitam assegurar uma representação própria.” (Público, 18/10/25).
O comunicado da Direção da Organização Regional de Beja do PCP é revelador desta incapacidade em lidar com a realidade. Começando, em jeito de justificação dos maus resultados, por dizer que as eleições autárquicas de 12 de outubro de 2025 se realizaram “após um período de sucessivas eleições de âmbito nacional que se traduziram na configuração de um novo quadro partidário e num maior peso de questões e matérias nacionais em detrimento de questões locais.”, o PCP avança com esta explicação paradoxal: “O resultado eleitoral obtido muito aquém das expetativas e do reconhecimento que é devido aos eleitos e candidatos da CDU” – elencando seguidamente, as escassas conquistas, mas esquecendo convenientemente as perdas, nomeadamente a do município de Serpa, onde o PCP dominava desde sempre – “[…] demonstra a importância da CDU no poder local, que prosseguirá em cada município e em cada freguesia o combate em defesa das populações e o trabalho político indispensável para reforçar e recuperar posições da CDU.” (Diário do Alentejo, 17/10/25). Mas como é que um “resultado eleitoral obtido muito aquém das expetativas […] demonstra a importância da CDU no poder local”? Não demonstrará antes uma evidente perda de influência? E como é que se compagina o desejo de prosseguir “em cada município e em cada freguesia o combate em defesa das populações” quando os resultados demonstram uma “falta de reconhecimento que é devido aos eleitos e candidatos da CDU”? Não será este um sinal claro do divórcio crescente entre os eleitores e o PCP? E “devido” porquê? Por direito divino, ou por direito consuetudinário? Em democracia, os eleitos são responsabilizados pelo que fazem e pelo que não fazem, e daí devem retirar as devidas ilações. Só dessa forma pode haver o tal “trabalho político indispensável para reforçar e recuperar posições”, responsabilização que, até ao momento, não se vislumbra.
Este umbiguismo adquire, assim, o significado preciso do étimo grego autárkeia – “o que se basta a si próprio”. Bastam-se, mas não bastam a mais ninguém. E isso é trágico para a esquerda.
Hugo Fernandez
