A atual União Europeia é, de facto, uma união? Ou, glosando o célebre dito do general prussiano Carl von Clausewitz [“A guerra nada mais é que a continuação da política por outros meios”] não passa de uma “guerra por outros meios”, isto é, um estado de disputa e conflito larvar entre um diretório de nações poderosas e as que, pelo expediente comunitário, se devem submeter, indefetivelmente, aos seus diktats? Cada vez mais parece estarmos a assistir a um “jogo de soma-nula”, em que o benefício de uns é conseguido à custa do prejuízo dos outros. A Europa, pacificada militarmente desde há 70 anos, estará verdadeiramente em paz? As disrupções bélicas que, apesar de tudo, foram surgindo em alguns pontos do continente, a humilhação de povos e nações inteiras (como quando Josef Schlarmann, um dirigente da CDU de Merkel, propôs à Grécia a venda das suas ilhas para pagar a dívida, ou quando o comissário alemão Günther Oettinger sugeriu que os países endividados pusessem as bandeiras nacionais a meia haste!), a guerra económica em curso (a enorme farsa das “dívidas soberanas”) e a crescente desigualdade entre os países comunitários (desde logo a ideia peregrina da Europa a várias velocidades proposta no “Livro Branco da Comissão Europeia sobre o Futuro da UE” do sr. Jean-Claude Juncker), não serão sinais suficientemente claros de que a paz que existe não passa de uma paz podre?
Os sinais de degenerescência de uma Europa unida nos moldes que hoje se apresentam são inúmeros. Vejamos três exemplos. De acordo com o relatório de avaliação pós-ajustamento da missão de vigilância da Comissão Europeia a Portugal, “Alguns passos implementados e/ou acordados durante o programa de ajustamento foram revertidos ou alterados”, alegando-se que “As reformas orçamentais-estruturais estão a progredir a um ritmo lento, com atrasos e algumas inversões de medidas passadas.” (Diário de Notícias, 28/3/2017). Replicando a argumentação dos anteriores governantes do PSD-CDS, esta missão europeia elenca uma série de medidas que considera censuráveis, como o fim da descida do IRC e o alívio no IRS, a eliminação gradual da sobretaxa, a reversão dos cortes salariais na função pública, o fim das 40 horas de trabalho semanal e dos despedimentos previstos no sistema da requalificação, bem como a decisão do atual Governo de pôr fim às privatizações da TAP e das subconcessões dos transportes de Lisboa e Porto. Medidas que, recorde-se, tiveram como resultado o mais baixo défice orçamental da democracia portuguesa e de muitos dos nossos congéneres europeus (2,06%), muito abaixo da meta de 3% exigida pelas regras do chamado Pacto de Estabilidade. Qual o critério, então, para contestar as iniciativas tomadas pelo Executivo português? As críticas formuladas só podem ter um critério; o do compadrio político-ideológico neoliberal e do indisfarçável desagrado pela solução governativa de esquerda que foi possível implementar no nosso país – mesmo cumprindo cabalmente os ditames de Bruxelas.
Também o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble advertiu Portugal para a necessidade de pedir um novo resgate. "Certifiquem-se de que não precisam de resgate", disse o ministro alemão numa conferência de imprensa em Berlim, citado pela agência financeira Bloomberg, acrescentando que a pressão imposta pelos planos de resgate "funcionou bem" e estes “ajudaram os países a regressar ao crescimento e às finanças públicas sólidas” (Diário de Notícias, 16/3/2017). Para além da comprovada falsidade deste postulado, a que propósito vem isto agora? Que razões existem no desempenho económico português que justifiquem semelhante aviso? Ou estaremos antes perante a pura e simples cumplicidade partidária do PPE para com os seus correligionários do PSD, no repúdio ao Governo de António Costa? Ou, pior ainda, perante a necessidade da perpetuação de um esquema usurário que assegure a supremacia germânica? É assim que funciona a proclamada solidariedade europeia? No comentário da jornalista Teresa de Sousa sobre o ministro alemão, não há dúvida que “A sua capacidade para criar eurocéticos é verdadeiramente inigualável.” (Público, 19/3/2017).
15 DE MARÇO DE 2017 14:13
Lusa
Por último, a cereja no topo do bolo. As declarações alarves de Jeroen Dijsselbloem em entrevista ao jornal germânico Frankfurter Allgemeine Zeitung onde, referindo-se à solidariedade dos países do norte da Europa para com os do sul, se saiu com esta pérola: “não posso gastar o meu dinheiro todo em bebida e mulheres e depois disso ir pedir a vossa ajuda”, sublinhando, para que não restassem quaisquer dúvidas, que “Este princípio vale para o nível pessoal, local, nacional e também europeu” (Público, 22/3/2017). O que é mais grave não é a conversa de taberna (lá está, a bebida!), a xenofobia soez (os “malandros do sul”) e o evidente sexismo misógino (a redução das mulheres a meras mercadorias destinadas a satisfazer a folia masculina, imagem própria da mais refinada cepa do puritanismo calvinista) de um holandês imbecil, embora, só por si, estas afirmações mereçam imediata repulsa por parte de alguém minimamente decente. O que é grave é que o autor destas boçalidades seja o presidente do Eurogrupo, isto é, o líder do conjunto dos ministros das Finanças dos 19 países da União Europeia que adotaram a moeda única, e tenha sido nessa qualidade que se pronunciou. E mais grave ainda é o facto da corrente dominante dos eurocratas pensar exatamente da mesma maneira – tendo, no entanto, a suficiente inteligência para não se exprimir nestes termos – e acreditar nas virtudes punitivas das políticas austeritárias como o caminho necessário para a redenção dos supostos pecadores meridionais. Perante as subsequentes reações de indignação, não só Dijsselbloem não se retratou, como reafirmou tudo o que tinha dito. Que ressentimentos e ódios afirmações como estas podem despoletar? Que União é esta que não afasta imediatamente este indivíduo de um dos principais cargos governativos europeus? A quem interessa este estado de coisas? Não é por acaso que os ministros das Finanças de França, Michel Sapin, Alemanha, Wolfgang Schäuble e Áustria, Jörg Schelling se apressaram a recordar que o mandato do holandês à frente do Eurogrupo termina apenas em 2018. Não será isto precisamente o contrário do espírito de cooperação e respeito mútuo que esteve na origem do empreendimento comunitário? Com indivíduos como este, a UE não precisa, certamente de inimigos. Como diz Francisco Louçã a propósito das comemorações dos 60 anos do Tratado de Roma, na capital italiana, “Em Roma já não sobra nada”, acrescentando, “Dijsselbloem parece ser tudo o que a União Europeia tinha para dar.” (Público, 25/3/2017).
Por isso, fazemos nossas as eloquentes palavras de Viriato Soromenho-Marques: “Um dos problemas europeus, sem remédio aparente, é o défice de competência política e o excesso de cabotinismo que reina no fervilhar das chancelarias.” (Diário de Notícias, 22/3/2017).
Hugo Fernandez