Retratar o Chega como um partido antissistema e o seu líder, André Ventura, como um outsider do regime, só por brincadeira. Ele que foi um quadro dirigente do PSD e candidato autárquico ao município de Loures por este partido pela mão de Passos Coelho (que nunca lhe retirou o apoio até ele abandonar os social-democratas em 2018, respaldando as suas posições extremistas), ele que, para além de comentador desportivo e do crime na BTV e na CMTV – circunstâncias que lhe granjearam uma enorme exposição e popularidade mediáticas (fazendo lembrar outras ascensões, tão fulgurantes, como irrazoáveis e, por fim, deploráveis ou mesmo criminosas, como a de José Sócrates) – , doutorado em Direito na Irlanda e professor em várias universidades, está ligado aos maiores escritórios e sociedades de advogados portugueses, como o Uria Menendez ou Caiado e Guerreiro, bem como à consultora financeira FinPartner, dificilmente pode ser considerado marginal relativamente aos tradicionais circuitos de poder no nosso país. Como foi amplamente demonstrado por Mariana Mortágua numa sessão parlamentar em finais de setembro, são muitas e nebulosas as ligações de responsáveis e financiadores do Chega aos negócios do BES, ao BES Angola e à cleptocracia angolana, aos escândalos do Banif, Vale do Lobo ou aos Panamá papers. Tudo boa gente! Como então disse a deputada bloquista, o Chega não é mais do que “um partido comprometido até ao pescoço com os negócios mais obscuros da elite financeira e económica”. Para quem se diz “fora do sistema”, não está nada mal.
Não constitui, por isso, surpresa que André Ventura e o seu partido queiram reintroduzir as medidas mais gravosas do tempo da troika, como a generalização das privatizações, o aumento do horário de trabalho das 35 para as 40 horas semanais, ou o fim do regime de progressividade do IRS, beneficiando, como sempre, os mais ricos. Contra o sistema? Em quê? O Chega pode não ser politicamente conveniente, mas que faz parte do sistema instalado, parece uma evidência. Quando Ventura se questiona, no Twitter, “Será que só a minha candidatura defende os portugueses comuns, normais? Haverá mais alguém a defender quem trabalha e paga impostos?”, está apenas a ser um vulgar demagogo (alinhando, desta forma, com o figurino habitual da politiquice sistémica; os interesses dominantes permanecem, pois, salvaguardados).
As propostas bárbaras e soezes apresentadas na recente convenção do Chega, em Évora, são suficientemente ilustrativas da matriz extremista e retrograda deste partido. Nesta reunião, que o jornalista Ferreira Fernandes caracterizou como “um grupo de homens e mulheres indecentes” e “sessão, toda ela pornográfica” (Público, 27/9/20), foi apresentada – e votada favoravelmente por 15% dos elementos presentes, sublinhe-se! – uma proposta que defendia a retirada dos ovários às mulheres que abortassem nos hospitais públicos (sintomático este pormenor, que iliba da mutilação as bemzocas que o fazem nas clínicas privadas); foi também o caso da defesa da castração física, da prisão perpétua, da pena de morte e de um sem número de “pérolas” da incivilidade.
Pela mão do seu principal ideólogo, Diogo Pacheco de Amorim (antigo elemento da rede terrorista de extrema-direita no pós-25 de abril), o programa do Chega defende, entre outros princípios, o fim do Sistema Nacional de Saúde e da escola pública, a privatização dos serviços públicos e o desmantelamento do Estado social, a Europa nacionalista e soberanista, bem como a discriminação racial e étnica, o combate à denominada “ideologia de género” (vulgo, todas as conquistas de cidadania e igualdade das mulheres nos últimos cem anos), a defesa de uma visão arcaica e salazarista da família (e posições tão ridículas, como estúpidas, de oposição à roupa unissexo para crianças), etc. A mensagem do Chega é racista, xenófoba, misógina, homofóbica, autoritária e ultraconservadora. O cardápio ideológico da extrema direita em todo o seu esplendor! Onde está o antissistema nisto tudo? Trata-se, isso sim, da versão mais radical – ou, se quisermos, selvagem – do sistema; este que nos governa a nível planetário, o capitalismo neoliberal. E é nesse sentido que a politóloga Marina Costa Lobo nos propõe, no artigo “A «verdade» do Chega”, publicado no jornal Público (11/8/20), o que chama de “teste do pato”, para que não haja dúvidas sobre a natureza de semelhante agremiação política: “se parece um pato, nada como um pato e grasna como um pato, provavelmente é um pato.”
Como diz, com fina ironia, Boaventura de Sousa Santos, “Se a igualdade sexual fosse ideologia de género, a igualdade entre raças seria ideologia racial e a luta contra a pobreza seria ideologia classista. E, em última instância, a luta contra o fascismo seria ideologia… democrática.” (JL, 23/9/20). Pois!
Hugo Fernandez