Para bem dos EUA e do mundo, a derrota de Donald Trump nas eleições que se avizinham é decisiva. Não porque a alternativa seja boa, mas porque é, tão-só, decente. Foi a este nível – o da ausência da simples decência – que o atual inquilino da Casa Branca degradou o ambiente político e social do seu país. Trump é uma pessoa indecente; indecente no seu comportamento narcísico e obsceno, indecente na sua indiferença humana e na sua atitude intolerante e discriminatória, indecente na sua mesquinhez e extrema ignorância, indecente na apologia despudorada da própria indecência. Se não fosse gente, dir-se-ia uma caricatura. Mas é gente, e é mesmo a pessoa mais poderosa à face da Terra.
Mas Trump é apenas um subproduto de uma sociedade profundamente doente, uma gangrena que se alimenta dos milhões que o apoiam. Na verdade, não é ele que verdadeiramente interessa, mas perceber como foi possível a sua chegada à presidência dos EUA. Perceber as disfuncionalidades estruturais que corroem a sociedade norte-americana. Perceber, por um lado, como só o dinheiro e a posse de fortuna são dignos de respeito e consideração social e a lei do mais forte se tornou na obsessão paranoica do imaginário nacional. Perceber, por outro, a situação de marginalidade e exclusão a que muitos americanos foram votados pelo processo de desregulação e rapina generalizada do neoliberalismo mais desenfreado. Perceber como a desclassificação social e a perda do reconhecimento comunitário provoca uma sensação de medo e ameaça e, simultaneamente, de ressentimento e de total falta de empatia para com os outros. Perceber como este sentimento engendra a necessidade de culpabilização alheia, com a explosão dos mais baixos instintos e a caça aos habituais bodes expiatórios, em especial as minorias raciais, os emigrantes e estrangeiros e as mulheres, sujeitos à discriminação económica, social e cultural, a múltiplas formas de opressão e a todo o tipo de preconceitos e estereótipos.
Perceber a emergência de um egoísmo sem limites, da atomização dos indivíduos e de uma autossuficiência intelectual indutora de ignorância e fanatismo extremos, alimentados pela torrente boçal de falsidades que a novilíngua trumpista apelida de “pós-verdade” ou “factos alternativos”, isto é, a perda de validade das categorias axiológicas elementares de verdade e mentira em prol dos mecanismos de propaganda político-ideológica de massas e da sua eficiência performativa – as semelhanças com os fascismos europeus do século XX não são meras coincidências. Para que conste, e de acordo com o jornal The Washington Post, até ao passado dia 9 de julho, Donald Trump mentiu mais de 20 mil vezes em declarações públicas desde que chegou à Casa Branca; só nos últimos 14 meses atingiu uma média de 23 mentiras por dia (Visão, 8/10/2020). Como ele orgulhosa e descaradamente proclamou na campanha eleitoral de 2016, “I’ve got the best words”! Urge perceber os mecanismos da consolidação de um nacionalismo populista eivado de fundamentalismo religioso e de militância obscurantista e anticientífica veiculada pelos ultraconservadores evangélicos. Perceber, enfim, como os Estados Unidos “se tornaram uma nação de videotas sem senso crítico”, na certeira definição do filósofo e jurista norte-americano Ronald Dworkin (A virtude soberana. Teoria e prática da igualdade., São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 395).
Disfuncionalidades estas que, em grande medida, estão na base da construção da atual ordem neoliberal globalizada. Atingimos um novo patamar da barbárie capitalista. Às hordas da escravatura industrial manchestariana de antanho, sobrevém uma nova Idade das Trevas: a da financeirização absoluta das existências e do extremar das desigualdades sociais, a do escalar do desemprego e da miséria endémica a par da acumulação de fortunas desmedidas, a da ditadura das dívidas (das pessoas e dos países) e do estado de permanente precariedade, a da exploração extrema na produção e da completa subserviência no consumo, do individualismo doentio e da anomia social, do “salve-se quem puder”, da alienação mediática e da demência informática, do culto do obscurantismo e do negacionismo, da apologia do tribalismo e do acender das fogueiras de novas inquisições.
Estamos, afinal, perante a aceleração incontrolada do processo que o economista e pensador social húngaro, Karl Polanyi, descrevia premonitoriamente como “a grande transformação” – título da sua mais famosa obra, publicada no já longínquo ano de 1944 – ao caracterizar a introdução da lógica mercantil em todas as esferas da vida humana, passando a lei da oferta e da procura a regular a afetação dos recursos naturais e, por intermédio da atividade laboral, da própria vida individual e coletiva. Tal processo tem como consequência a desagregação da existência comunitária e das instituições sociais; no fundo, a transformação do controlo social da economia pelo controlo dos mercados sobre a sociedade. Nas palavras do historiador Diogo Ramada Curto et al. no prefácio à edição portuguesa desta obra (Karl Polanyi, A grande transformação – as origens políticas e económicas do nosso tempo, Lisboa, Edições 70, 2012, p. 12), “A grande transformação teria consistido na libertação dos mercados do controlo das instituições sociais e, ao invés, na determinação da economia, das próprias instituições sociais e, tendencialmente, de todos os outros aspetos da vida social e humana pelos padrões da troca mercantil.”
Não só a coesão social está posta em causa, como o sistema político democrático está ferido de morte. Como afirmou recentemente o senador republicano do Utah, Mike Lee, “A democracia não é nenhum objetivo, precisamos é de nos desenvolver e a democracia pode impedir isso.” (Público, 11/10/20). Foi esta atração pelo abismo que a onda neoliberal originária dos anos 80 do século passado provocou e que encontrou nos EUA um campo privilegiado de implementação. Para esta corrente de pensamento, a natureza é reduzida à valoração extrativista e o ser humano resume-se à dimensão produtiva, destinado à mera exploração. Cumpre-se assim o objetivo final do capitalismo, o de “transformar a sociedade numa vasta fábrica submetida a um comando e a uma lógica únicas” (Cornelius Castoriadis, A ascensão da insignificância, Lisboa, Bizâncio, 1998, p. 48).
Mas a culpa deste estado de coisas não é só de Trump e dos seus apoiantes. Os democratas, que periódica e rotativamente governam os EUA, têm a sua quota parte nesta insanidade. Porque persistem em não introduzir mecanismos de regulação dos mercados e da especulação financeira, porque resistem a implementar um sistema de progressividade fiscal, porque não tomam medidas efetivas – e não meramente cosméticas – de proteção dos mais carenciados, de diminuição das desigualdades e das injustiças sociais, de inclusão comunitária e combate à discriminação racial ou de género, ou até de simples questões de bom senso (mas, em todo o caso, marcas civilizacionais decisivas), como a abolição da pena de morte ou a adoção de legislação limitadora do uso e porte de armas. Enfim, porque persistem em não constituir uma alternativa.
Republicanos e democratas alimentam a mesma ordem social e económica planetária que faz com que as grandes fortunas mundiais (pouco mais de 2 mil indivíduos) tenham disparado durante a pandemia e concentrem uma riqueza de 10,2 biliões de dólares – um aumento de 27,5% – em apenas 3 meses (até junho), ganhando “como nunca antes”. Para se ter uma ideia, é o equivalente a 50 vezes o que Portugal produz num ano, ultrapassando o anterior recorde de 8,9 biliões de dólares do final de 2017. Os dados constam do relatório do banco suíço UBS, citados no jornal britânico The Guardian (7/10/2020) e mostram que o próprio número de bilionários – grande parte deles americanos – aumentou, no mesmo período, para 2.189, mais 31 pessoas do que em 2017. Isto quando, simultaneamente, há mais 200 milhões de desempregados, a pobreza extrema atinge novos patamares, e o mundo se encaminha para a pior crise económica desde a Grande Depressão.
As eleições americanas de 3 de novembro próximo marcarão, em qualquer circunstância, uma nova etapa do nosso devir coletivo. Porque verdadeiramente elas não são apenas eleições americanas, já que os EUA constituem o “mais importante laboratório social do mundo”, como sublinha José Pacheco Pereira (Público, 10/10/2020). Do que se trata, pelo seu efeito mimético inevitável, é da promoção ou obstrução da ascensão dos populismos mais reacionários que pululam um pouco por todo o mundo. Do que se trata é do perigo real de um retrocesso civilizacional.
Hugo Fernandez