Na sua conhecida obra Spheres of Justice de 1983, o filósofo político norte-americano Michael Walzer conta-nos a edificante história do milionário George Pullman, um dos mais bem-sucedidos empresários estadunidenses do século XIX. Quando pretendeu tornar as viagens de comboio mais confortáveis e a preços acessíveis, dotando os seus vagões com dormitórios, restaurantes e melhores lugares sentados, o sr. Pullman ganhou uma fortuna, o que o levou a expandir o negócio e a construir um novo conjunto de fábricas. Mas não se ficou por aqui. A sua ambição fê-lo querer edificar uma cidade junto ao complexo industrial. Em apenas dois anos, não se limitou a construir alojamentos para os seus trabalhadores, como outros industriais já antes haviam feito, mas residências para sete a oito mil pessoas e todas as infraestruturas indispensáveis a uma urbe: serviços de abastecimento de água e gás, saúde e bombeiros, estábulos, lojas e galeria comercial, escritórios, escolas e parques infantis, um mercado, um hotel, uma biblioteca, um teatro, um banco e até uma igreja. E assim nasceu Pullman, no estado do Illinois, construída em pouco mais de 1.600 hectares, nas margens do lago Calumet. Era a sua cidade!
Para além de dono de uma das maiores empresas dos EUA, o sr. Pullman tornou-se proprietário de uma pequena comunidade urbana. E, como noticiava à época o periódico New York Sun, “O forasteiro que chega a Pullman se hospeda num hotel dirigido por um dos funcionários do sr. Pullman, visita um teatro onde todos os funcionários estão a serviço do sr. Pullman, bebe água e queima gás fornecidos pelas usinas do sr.Pullman, aluga cavalos na estrebaria do sr. Pullman, visita uma escola na qual os professores dos filhos dos funcionários do sr. Pullman também são funcionários dele, recebe uma promissória cobrada pelo banco do sr. Pullman, só consegue comprar qualquer coisa de inquilinos do sr. Pullman e, à noite, é protegido por um corpo de bombeiros cujos membros, todos, do chefe para baixo, estão a serviço do sr. Pullman.” (Michael Walzer, Esferas da Justiça, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 405, apud Stanley Buder, Pullman: an Experiment in Industrial Order and Community Planning, 1880-1930, New York, 1967).
Claro que, oficialmente, a cidade de Pullman estava sob a jurisdição político-administrativa de Cook County e do Estado do Illinois, assim como as escolas aí existentes dependiam da tutela da Secretaria da Educação de Hyde Park Township. Mas, na ausência de autoridades municipais, quando um jornalista visitante da cidade-modelo questionou o sr. Pullman acerca da governação do povo da sua cidade, este respondeu: “Nós os governamos da mesma maneira que qualquer homem governa a própria casa, loja ou oficina. É tudo bem simples” (idem, ibid., p. 405). Claro que o nós majestático significava o governo de um só, um direito exclusivo de controlar tudo e todos de acordo com o seu ideal de comunidade. Alegando que ninguém era obrigado a viver em Pullman, o sr. Pullman era um autocrata que enviava os seus inspetores vigiarem o modo de vida dos habitantes e os ameaçava com multas se estes apresentassem comportamentos ou manifestassem opiniões contrárias à preservação do que entendia ser “a harmonia do projeto da cidade”. Para além disso, como era proibido vender terrenos ou casas em Pullman, todos eram inquilinos do magnata e todos estavam assim na sua direta dependência.
Claro que as habitações fornecidas pelo sr. Pullman eram bem melhores do que as disponíveis na década de 1880 para a generalidade dos trabalhadores americanos, os alugueres eram acessíveis e os prédios tinham manutenção cuidada. Mas, como salienta Michael Walzer, “a questão fundamental é que todas as decisões, benevolentes ou não, estavam nas mãos de um homem, governador e proprietário, que não fora escolhido pelo povo que governava.” (ibid., pp. 406-407). “Súbditos de uma empresa capitalista”, os habitantes de Pullman tinham o estatuto de convidados – no fundo eram simples metecos – o que dificilmente podia ser compatível com qualquer tipo de vivência democrática, pressuposto essencial da cidadania americana. O economista contemporâneo Richard Ely, em visita à cidade em 1885, escreveu no Harper’s Monthly, “A sensação é de estarmos nos misturando a um povo dependente, servil.”, não hesitando em caracterizar a situação como “feudalismo antiamericano… benevolente, simpático” (ibid., p. 407, apud Buder).
Um ano após a morte de George Pullman, em 1897, a Suprema Corte de Illinois ordenou que a Pullman Company se desfizesse de todas as propriedades que não fossem diretamente afetas à atividade industrial, argumentando que a propriedade de uma cidade “era incompatível com a teoria e o espírito das nossas instituições” (ibid., p. 408, apud William Carwardine, The Pullman Strike, Chicago, 1973). Para Michael Walzer, “A democracia exige que a propriedade não tenha valor político, que não se converta em qualquer coisa semelhante a soberania, autoridade, controle sustentado sobre pessoas. Depois de 1894, pelo menos, parece que a maioria dos observadores concordava que a cidade pertencer a Pullman era um fato antidemocrático.” (ibid., p. 408). Com efeito, o investimento capitalista num empreendimento urbanístico nunca pode dar ao respetivo empresário o direito de governar os seus habitantes. Mesmo que essa circunstância lhes possa trazer benefícios. É uma questão de respeito pelos preceitos elementares da cidadania democrática.
Tal como é, se quisermos, uma questão de ética republicana, o recrutamento político ser o mais alargado possível, buscando os mais aptos em toda a pluralidade do território e do espectro socioprofissional de um país. Caso contrário, os processos de decisão, por não serem representativos do “sentir” da sociedade, podem tornar-se perigosamente pouco objetivos e parciais, tornando muito mais prováveis os conflitos de interesses e o enviesamento da ação governativa. Da mesma forma que, numa democracia, a um não eleito nunca pode assistir o direito de governar os seus concidadãos, nenhuma dinastia ou casta se pode arrogar o exclusivo do empenho, da competência e da vocação políticas. Esta endogamia, à boa maneira aristocrática, é sumamente perversa e mais própria de antigos regimes – na sua dupla dimensão histórica setecentista e salazarista – situação que o jornalista João Miguel Tavares expressa de forma certeira com a máxima, “não basta seres bom; precisas ser bem” segundo a lógica da “promoção dos «filhos de»”, naquilo que configura uma muito improvável “excelência geneticamente concentrada” (Público, 26/2/2019).
Por isso, o raciocínio falacioso segundo o qual, independentemente dos laços familiares, o que interessa é o mérito e a entrega à causa pública, inverte os termos do problema. Como justamente refere João Miguel Tavares, “O problema não está, nem nunca esteve, na competência das pessoas envolvidas. Está, como sempre esteve, na sua proximidade.” (Público, 26/2/2019). Mutatis mutandis, é o síndroma Pullman que assim assoma.
Hugo Fernandez