A posse de propriedade qualifica e emancipa os que a detêm, mas tem simultaneamente um efeito de tolher e excluir todos aqueles que a ela não têm acesso. É essa a lógica da exploração laboral, mas sobretudo é essa a origem da desigualdade social. É também essa, em última análise, a condição primordial da desagregação comunitária. Nas eloquentes palavras de uma das figuras de proa do neoliberalismo reinante e ex- primeira ministra britânica, Margaret Thatcher, “isso a que chamam sociedade, não existe”, reduzindo o vínculo social a uma mera relação contratual entre indivíduos (supostamente em igualdade de circunstâncias), à imagem e semelhança do modelo empresarial privado.
Na atual fase do “capitalismo de rapina” (que, ao contrário do “capitalismo selvagem” do século XIX, não visa qualquer acumulação de capital com vista ao desenvolvimento industrial e alargamento dos mercados, indutores de algum grau de capilaridade na distribuição da riqueza) é a pura e simples predação de recursos – humanos e materiais – e a extorsão da maior quantidade possível de mais-valias que se defende. Longe de qualquer noção de coesão social ou de justiça distributiva, é a “lei da selva” que se apresenta. E a ferocidade do empreendimento é de tal ordem que produz um efeito generalizado de atemorização e conformação das populações. Os “investidores”, omniscientes e omnipotentes – e, principalmente, intocáveis – são as divindades do nosso tempo. A alternativa a uma repartição mais equitativa do produto social continuará a ser aquilo que o conhecido sociólogo inglês Tom Bottomore descreve como “um mundo regido pela discórdia e o conflito, em que um oceano de miséria rodeia as ilhas de bem-estar.” [T. H. Marshall; Tom Bottomore, Ciudadania y Clase Social, Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 137 (tradução minha)].
Na sua obra Economia Política dos Direitos Humanos (Lisboa, Sílabo, 2012), o economista Manuel Couret Branco sublinha que, “de acordo com a lógica dominante hoje em dia, a economia não tem por objetivo a criação, ou sequer a manutenção, de empregos, mas sim a mais eficaz afetação possível dos fatores de produção, por outras palavras criar um máximo de riqueza desejavelmente com um mínimo de recursos. Ora, um desses recursos é, precisamente, o trabalho, ou melhor dizendo o recurso humano.” (p. 51). É, por isso, uma enorme falácia (ou mera ingenuidade), pensar-se que a lógica de especulação financeira que dirige a economia mundial visa a promoção do emprego ou promove algum tipo de indução de prosperidade por via de um qualquer mecanismo de “cascata” (trickle down effect). Não o fará. Pelo contrário, só uma regulamentação rigorosa desta “economia de casino” globalizada e o seu controle efetivo pelos Estados nacionais e pelos órgãos do poder político democrático, poderão garantir tais desideratos, trocando a eficácia do esbulho económico pela preocupação com o bem-estar das pessoas, a exclusão pela inclusão, a exploração pela equidade. Nunca houve tanta riqueza no mundo, mas também nunca houve tanta desigualdade na sua distribuição. É este o verdadeiro problema das nossas sociedades.
A questão nunca foi, portanto, a da falta de recursos. Mesmo no atual contexto europeu, as políticas austeritárias não pretendem responder aos efeitos da crise financeira que ocorreu nos idos da década passada e à qual a lógica neoliberal rapidamente respondeu, recuperando com acrescida vantagem de todos os incómodos a que as grandes instituições bancárias e os gigantes empresariais se viram sujeitos na altura. O que se visa é assegurar a máxima concentração de riqueza nas mãos de uma oligarquia planetária de indivíduos, de empresas e de países cada vez mais poderosos. A desregulação económica, a precarização laboral, o crescimento da pobreza, a crescente desigualdade social, o eclipsar dos direitos de cidadania e a caricaturização da democracia – já apelidada “de baixa intensidade” – constituem sinais inequívocos do estado de barbárie em que vivemos.
Exemplo flagrante do atual statu quo europeu é o recente caso da multinacional Apple e da Irlanda. Aquilo que seria uma medida de elementar justiça relativamente ao cumprimento das regras comunitárias e de moralização mínima da atividade económica na Europa (interditando a possibilidade de oferecer incentivos diferenciados a agentes económicos específicos), através da determinação da Comissão Europeia de obrigar a gigante tecnológica Apple a pagar 13 mil milhões de euros de dívidas fiscais ao Estado irlandês, foi recusado pela própria Irlanda. Isto é, a Irlanda recusa receber uma enorme dívida que resultou da obtenção de lucros abusivos acumulados pela empresa norte-americana à custa de ter transferido a sua sede de operações para a ilha (calculados em cerca de 230 mil milhões de dólares). Dir-se-á que, com o escandaloso (e ilegal!) benefício fiscal dado à Apple, a Irlanda assegurou um caminho de crescimento económico que não quer por em causa e que resultou num acréscimo de cerca de 6 mil postos de trabalho (e um enorme fortalecimento da elite governativa!), tudo se justificando, afinal, para atrair o investimento estrangeiro. Mas se a viabilidade de um país europeu depende da concessão ao desbarato de privilégios fiscais a empresas multinacionais, algo de muito errado se passa com a União. Não se trata só de uma questão de dignidade nacional, por mais quixotesca que esta questão possa parecer. Nem sequer se trata de pretender que um país isolado contrarie a tendência global para a especulação e tráfico de influências, já que, sendo uma determinação comunitária, envolve um dos principais protagonistas da cena internacional. Trata-se de ter a clara noção de que, a manter-se o atual estado de desregulação da atividade económica a nível planetário, os capitais circularão para onde conseguirem mais benefícios, independentemente de se tratar da Irlanda ou do Bangladesh. E com isso, sobrevirá a sensação de abuso de confiança e de inutilidade do esforço. Mas aí já será tarde! Remetidas à indigência, as populações verão nas mudanças do mundo o epitáfio dos paraísos proclamados.
Da mesma forma, são meras razões ideológicas que presidem ao garrote imposto a Portugal pelas autoridades comunitárias. É o boicote político da UE a um governo português de esquerda, que leva à chantagem absurda da suspensão dos fundos europeus, à determinação de uma meta do défice situada arbitrariamente muito abaixo dos 3% para 2016 (já de si, um número aleatório e que, de resto, é reiteradamente incumprido por múltiplos países) e às mil e uma exigências do Eurogrupo. É uma Europa dominada pelo poderio germânico – que (mais uma vez!) está a concentrar riqueza à custa dos seus parceiros – que promove as políticas mais desapiedadas e destruidoras de qualquer perspetiva de crescimento económico e bem-estar social a que, com toda a legitimidade, os portugueses aspiram. São estas mesmas razões ideológicas que, sem qualquer pudor, disseminam o conúbio de dirigentes comunitários com as instituições financeiras mais predadoras ou que proporcionam paraísos fiscais aos grandes interesses económicos, torpedeando, inclusive, as próprias regras estabelecidas na União (vejam-se os casos do Luxemburgo ou da Holanda). Dois pesos e duas medidas? Não, é mais do que isso. É a ordem mundial do “salve-se quem puder”.
O instrumento primordial desta chantagem tem um nome – Tratado Orçamental (TO). E, como diz Viriato Soromenho-Marques na sua coluna de opinião no Diário de Notícias (12/10/2016), “O que o TO pede aos portugueses e aos europeus em geral é uma missão impossível. Ninguém poderá garantir que a Europa desperte deste pesadelo a tempo de evitar o desastre.” Romper com as políticas austeritárias e regressar a uma vida “normal” debaixo do garrote de uma dívida pública incomportável e de deficits de Estado irrealistas, é pura ficção. A necessidade da contínua capitalização do sistema bancário e financeiro internacional alimenta a “bolha” especulativa da rapina neoliberal, fazendo as populações pagar pelas dívidas que não contraíram e pelos lucros de que nunca beneficiarão. Enquanto haja recursos disponíveis e força política para os extorquir.
Hugo Fernandez