O desprezo olímpico com que José Luís Carneiro tratou o filho de um agente de segurança que o interpelou numa sessão de autógrafos do seu livro Ganhar o Futuro, a 19 de janeiro deste ano no Porto, queixando-se das condições degradantes em que o seu pai exercia as suas funções, foi verdadeiramente chocante. Durante alguns minutos, de cabeça baixa, nunca encarando o seu interlocutor nem lhe dirigindo qualquer palavra, o ainda ministro da Administração Interna mostrou bem a profunda sobranceria e indiferença para com aqueles homens e mulheres por quem é, afinal, o primeiro responsável. Foi o seu “momento bolo-rei”, lembrando um Cavaco Silva boçal a atafulhar a boca de bolo-rei para não responder às perguntas dos jornalistas, na campanha eleitoral para as presidenciais de 1996.
Nos inícios de fevereiro, os cortes entre 25% e 30% nos apoios agrícolas foram a “gota de água” que fez transbordar a revolta dos agricultores, um pouco por todo o país. Revoltas inorgânicas, isto é, sem o enquadramento – pelo menos explícito! – das grandes organizações representativas do setor, levaram ao bloqueio de estradas, à exigência do diálogo com a ministra Maria do Céu Antunes e ao pânico do Governo em toda a linha. De repente, nos ecrãs televisivos, a ministra da Agricultura ladeada pelo ministro das Finanças, anunciavam um generoso pacote de 200 milhões de euros, desenterrados não se sabe ao certo de onde, para mitigar o descontentamento rural. Uma semana depois do IFAP (Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas), presidido por Rui Martinho, ter comunicado aos agricultores os cortes nos apoios, foi o mesmo organismo oficial que veio informar os agricultores da correção desses mesmos cortes e da atribuição das verbas devidas. Um primor de decência na governação da “coisa pública”! Cortes nos apoios comunitários que, diga-se, foram comunicados nas vésperas de os agricultores receberem o seu pagamento, a 25 de janeiro, e que correspondem ainda ao ano de 2023. Certamente foi essa a razão que levou os agricultores em protesto a rebatizaram o instituto em questão de “Instituto da Fome e da Arrogância de Portugal” (Público, 2/2/2024).
Porque é, de facto, de arrogância na governação que se trata. E nesta matéria, as tristes experiências de maiorias absolutas, quer da direita, quer dos governos PS, padecem do mesmo mal. A autarcia do poder e a completa ausência de diálogo com classes profissionais inteiras que ao longo de meses demonstraram descontentamento profundo pelas injustiças de que sofriam, são sinais mais do que evidentes da crise do sistema democrático. Aconteceu assim com os professores, com os enfermeiros, com os médicos, com os oficiais de justiça, com as forças de segurança.
Há dez anos, num artigo na revista Visão, José Gil comentava a “indiferença férrea” do Governo Passos Coelho – Paulo Portas perante as inúmeras manifestações e greves que contestavam a sua política, “Como se tivessem chegado a uma barreira intransponível ou ao fim do que há para pensar.” (Visão, 13/2/2014). Intitulado “O pacto de silêncio”, neste artigo o filósofo chega à seguinte conclusão: “Fica a impressão, para o leitor ou espetador, de que as ideias deixaram de ter o mínimo efeito prático, mesmo quando dizem a verdade”. De igual forma, na reedição portuguesa do seu livro O Descontentamento da Democracia (Lisboa, Presença, 2023), de 1996, o filósofo norte-americano Michael Sandel questiona se o problema mais urgente da democracia não está precisamente na incapacidade de nos ouvirmos uns aos outros, isto é, de tomarmos em consideração os problemas que afligem os nossos concidadãos. Fazer com que todos sintam que a sua opinião conta, contribuirá para a revitalização da vida coletiva, “esvaziada de energia cívica e moral por décadas de globalização neoliberal, o que alimentou ressentimentos e os populistas que deles bebem.”, como é referido (Público/Ípsilon, 5/1/2024). O agravamento da desigualdade social e a desvalorização da “dignidade do trabalho”, qualquer que ele seja, são o corolário lógico desta deriva de desempoderamento de largas camadas da população. As pessoas sentem-se excluídas da sociedade, descartadas. Sobrevém o rancor e a raiva da impotência, terreno fértil para os demagogos e populistas em todo o lado.
Quando Carlos Gaspar, no podcast Diplomatas, chegou à conclusão de que “Há 20 anos, 80% dos governos na Europa Ocidental eram dirigidos por sociais-democratas ou democratas cristãos; hoje são 20%.” (Público 3/2/2024), este cientista político não teve a noção de que é justamente na génese dessa realidade que está a raiz do problema. A extrema-direita nasceu e desenvolveu-se em consequência do fracasso social de décadas de governos ao serviço das “troikas” deste mundo. Satisfazendo sempre os grandes interesses financeiros e os poderes instalados, as políticas desenvolvidas quer por socialistas ou sociais-democratas, quer por democratas cristãos ou liberais, pouca ou nenhuma consideração tiveram pela vida do comum dos mortais. Faz, assim, todo o sentido o dilema colocado pela jornalista Bárbara Reis: “Como travar os vendedores ambulantes que propagam teorias da conspiração, alimentam o ódio e o medo e prometem soluções simples para problemas difíceis? Lá está: é um problema difícil.” (Público 3/2/2024).
É por isso que, como alerta Rui Tavares, “Quase 50 anos após o 25 de Abril de 1974, aproximam-se os tempos mais difíceis para o regime que esse dia nos legou. Teremos de os passar não a comemorar o regime – mas a salvá-lo” (Expresso, 11/11/2023).
Hugo Fernandez