Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Quinta-feira, 2 de Janeiro de 2025
RECTA RATIO

No desvario em que se transformou o nosso mundo, é da “razão certa” ou da “boa razão” de que falava Cícero (expressão retomada por Hugo Grócio e, depois, pelos iluministas) que a humanidade desesperadamente precisa. Já nem falo da loucura de Vladimir Putin e do “desafio dos mísseis” na Ucrânia, ou do seu insano apetite atómico. Falo tão só da perspetiva de uma Administração grotesca de Donald Trump nos EUA. Foi a esse propósito que, no início de dezembro de 2024, setenta e sete personalidades distinguidas com o prémio Nobel da Medicina, Química, Física e Economia, apelaram à rejeição da nomeação de Robert Kennedy Jr. como Secretário de Estado da Saúde dos EUA. Alegaram que “Além da falta de reconhecimento ou experiência relevantes nas áreas da Medicina, Ciência, Saúde Pública ou Administração, o senhor Kennedy está contra muitas das vacinas que protegem a saúde e salvam vidas, como as que previnem a poliomielite e o sarampo” (Jornal de Notícias, 10/12/2024), propalando a ideia absurda de que as vacinas causam autismo – Kennedy refere-se a uma surreal “epidemia” de autismo, escondida pelas instituições de saúde norte-americanas, tendo inclusive comparado a vacinação de crianças ao Holocausto. Conforme sublinham os seus autores numa carta dirigida ao Senado e citada pelo The New York Times, a nomeação de semelhante personagem “colocaria em perigo a saúde pública”. Como se isto não bastasse, Kennedy será assessorado pelo famoso – e muito contestado – Doutor Mehmet Oz, estrela da televisão, divulgador de todo o tipo de fenómenos paranormais e promotor de medicinas alternativas, como a “cura pela fé” (faith healing). Terá a seu cargo a gestão dos sistemas de seguro de saúde públicos Medicare e Medicaid, destinados a idosos, pessoas portadoras de deficiência e pessoas de baixa condição económica; gente dispensável, portanto.

Não são casos únicos. Do conjunto de aberrações que constituem a futura Administração Trump, uma das mais paradigmáticas é, precisamente, a da responsável pela área da Educação (secretaria de Estado que, aliás, Trump prometeu desmantelar): nada mais, nada menos do que a bilionária e magnata do wrestling profissional, Linda McMahon. A empresária é casada com Vince McMahon, afastado da liderança da World Wrestling Entertainment em 2022, por ter sido processado por exploração sexual infantil, agressão sexual e tráfico de seres humanos. É também o caso de Chris Wright, empresário do petróleo e gás, defensor acérrimo da exploração dos combustíveis fósseis e negacionista das alterações climáticas, indigitado como Secretário de Estado da Energia. Pior, era difícil! Não fazem mais do que mimetizar o seu chefe e o rol de disparates protagonizados por Trump, desde a famosa afirmação, em dezembro de 2013, “Estou em Los Angeles e está um frio de rachar. O aquecimento global é uma farsa total e muito cara!” – e a consequente retirada dos EUA do acordo de Paris, com vista à redução das emissões de gases com efeito de estufa –, até à sugestão, numa conferência de imprensa na Casa Branca, em abril de 2020, das autoridades de saúde administrarem injeções de lixívia como tratamento para a Covid-19.

Mas, mais do que uma patologia norte-americana, esta irracionalidade está a tornar-se, de forma alarmante, no novo zeitgeist. Semelhante “espírito do tempo” da contemporaneidade, difundido universalmente sobretudo pelas plataformas digitais e pelas redes sociais, não podia estar mais afastado da recta ratio iluminista e da necessidade de sustentar as opiniões em factos. Como justamente refere a filósofa francesa Myriam Revault D’Allonnes, trata-se de “um sistema de explicação do mundo que se sobrepõe à realidade e que pretende explicar absolutamente tudo.” (Público, 28/4/2024). Esta pós-verdade, de que Donald Trump e os seus comparsas são arautos planetários, erige a mentira ao estatuto de “verdade alternativa”, rejeitando quaisquer outras possibilidades de explicação, muito menos de explicação razoável. Por isso, para a académica francesa, há aqui uma clara transformação concetual: “O mentiroso mente, mas não destrói a verdade como critério ou padrão de sentimento ou comportamento.” Estamos, assim, perante um upgrade da mentira que, para assegurar a sua validação, abole a verdade.

Os negacionistas, terraplanistas e teóricos da conspiração arrasam os sistemas periciais e todas as bases científicas do conhecimento, para se lançarem no mais puro delírio da desinformação e irracionalidade, proclamando as suas asserções como inquestionáveis, porque é de fanáticos e politicamente totalitários que falamos. Nesse sentido, o filósofo da ciência da Universidade de Boston, Lee McIntyre, explica: “Há [vários] objetivos na pós-verdade: um é fazer com que acreditemos numa falsidade. Outro é fazer com que desconfiemos de qualquer pessoa que não acredite na mesma falsidade, e até que a odiemos. O terceiro é tornarmo-nos céticos, desistir da ideia de verdade. É isso mesmo que o autoritário quer.” (Público, 12/5/2024). Dá o exemplo comezinho, mas significativo, da alegação de Trump de que a sua tomada de posse, em 2016, teve mais assistência que a do seu antecessor Barack Obama, quando os inúmeros registos fílmicos, fotográficos e testemunhais desmentem categoricamente tal ilação. Refere o filósofo norte-americano: “Porque é que ele se humilharia ao dizer isto? [Porque] o que ele realmente precisava era que eles [os apoiantes] lhe permitissem afirmar isso, mesmo sabendo que era falso, e aceitar. Porque era esse mundo em que viviam agora, em que a realidade não se definia pela realidade, mas sim por um tirano.”, concluindo, “É uma técnica terrível e funciona.” Não só se substitui uma verdade por outra, como se destrói o próprio conceito de verdade. A verdade passa a ser uma questão de escolha pessoal. “Escolhe-se por aquilo que se quer que seja. Pela pessoa em quem se confia ou pela pessoa que está ao nosso lado, porque odeia quem nós já odiamos.” É essa a diferença, argumenta McIntyre, entre uma informação incorreta (misinformation), que é um engano, e a desinformação (disinformation), que é uma mentira partilhada por alguém que sabe que é mentira.

No rescaldo da recente eleição de Donald Trump, o jornalista Manuel Carvalho deixa-nos um testemunho sombrio: “As trevas estão de volta […] A escuridão parece inexorável. As coisas vão piorar até que, num futuro próximo, a luz regresse. Oxalá não seja necessário, como em outros tempos, experimentar a guerra para que a ordem em curso se destrua e seja preciso construir uma nova.” (Público, 7/11/2024). É no mesmo sentido que se pronuncia a filósofa catalã Marina Garcés no seu livro Novo Iluminismo Radical (Lisboa, Orfeu Negro, 2023), para quem “O nosso é o tempo do tudo se acaba.” (p. 19), um tempo que nos remete para o que ela designa por “condição póstuma”. Com efeito, para a professora da Universidade Aberta da Catalunha, o desaparecimento do progresso e do desenvolvimento enquanto ideais de futuro e o esgotamento dos recursos planetários, faz com que deixemos de nos interrogar “para onde?”, mas sim “até quando?”, dúvida existencial definidora deste “tempo da insustentabilidade”. Como adverte Marina Garcés, “É evidente que vivemos em tempo real um endurecimento das condições materiais de vida, tanto económicas como ambientais. Os limites do planeta e dos seus recursos são evidências científicas. A insustentabilidade do sistema económico também é cada vez mais evidente.” (p. 34). Por isso, “O nosso presente é o tempo que resta. A cada dia, um dia a menos.” (p. 30).

Como chegamos a este ponto? Talvez porque cada vez um maior número de pessoas, como anteriormente referido, se recuse a ver a realidade, caminhando alegremente para o abismo. A insubmissão a esta “ideologia póstuma” é a principal tarefa do pensamento crítico atual. Seguindo a exortação de Marina Garcés, é absolutamente necessária “uma atualização da aposta iluminista, entendida como o combate radical contra a credulidade.” (p. 38), devolvendo-nos às raízes do iluminismo “como impugnação dos dogmas e dos poderes que beneficiam deles.” (p. 39). Três séculos depois, já não se trata, aliás, de uma questão de recta ratio, mas tão-só de ratio!

Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 13:56
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Janeiro 2025
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4

5
6
7
8
9
10
11

12
13
14
15
16
17
18

19
20
21
22
23
24
25

26
27
28
29
30
31


posts recentes

RECTA RATIO

RESSACA

Quando acordei, a cultura...

LIDERAR ESTUDOS GLOBAIS: ...

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

arquivos

Janeiro 2025

Dezembro 2024

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub