No desvario em que se transformou o nosso mundo, é da “razão certa” ou da “boa razão” de que falava Cícero (expressão retomada por Hugo Grócio e, depois, pelos iluministas) que a humanidade desesperadamente precisa. Já nem falo da loucura de Vladimir Putin e do “desafio dos mísseis” na Ucrânia, ou do seu insano apetite atómico. Falo tão só da perspetiva de uma Administração grotesca de Donald Trump nos EUA. Foi a esse propósito que, no início de dezembro de 2024, setenta e sete personalidades distinguidas com o prémio Nobel da Medicina, Química, Física e Economia, apelaram à rejeição da nomeação de Robert Kennedy Jr. como Secretário de Estado da Saúde dos EUA. Alegaram que “Além da falta de reconhecimento ou experiência relevantes nas áreas da Medicina, Ciência, Saúde Pública ou Administração, o senhor Kennedy está contra muitas das vacinas que protegem a saúde e salvam vidas, como as que previnem a poliomielite e o sarampo” (Jornal de Notícias, 10/12/2024), propalando a ideia absurda de que as vacinas causam autismo – Kennedy refere-se a uma surreal “epidemia” de autismo, escondida pelas instituições de saúde norte-americanas, tendo inclusive comparado a vacinação de crianças ao Holocausto. Conforme sublinham os seus autores numa carta dirigida ao Senado e citada pelo The New York Times, a nomeação de semelhante personagem “colocaria em perigo a saúde pública”. Como se isto não bastasse, Kennedy será assessorado pelo famoso – e muito contestado – Doutor Mehmet Oz, estrela da televisão, divulgador de todo o tipo de fenómenos paranormais e promotor de medicinas alternativas, como a “cura pela fé” (faith healing). Terá a seu cargo a gestão dos sistemas de seguro de saúde públicos Medicare e Medicaid, destinados a idosos, pessoas portadoras de deficiência e pessoas de baixa condição económica; gente dispensável, portanto.
Não são casos únicos. Do conjunto de aberrações que constituem a futura Administração Trump, uma das mais paradigmáticas é, precisamente, a da responsável pela área da Educação (secretaria de Estado que, aliás, Trump prometeu desmantelar): nada mais, nada menos do que a bilionária e magnata do wrestling profissional, Linda McMahon. A empresária é casada com Vince McMahon, afastado da liderança da World Wrestling Entertainment em 2022, por ter sido processado por exploração sexual infantil, agressão sexual e tráfico de seres humanos. É também o caso de Chris Wright, empresário do petróleo e gás, defensor acérrimo da exploração dos combustíveis fósseis e negacionista das alterações climáticas, indigitado como Secretário de Estado da Energia. Pior, era difícil! Não fazem mais do que mimetizar o seu chefe e o rol de disparates protagonizados por Trump, desde a famosa afirmação, em dezembro de 2013, “Estou em Los Angeles e está um frio de rachar. O aquecimento global é uma farsa total e muito cara!” – e a consequente retirada dos EUA do acordo de Paris, com vista à redução das emissões de gases com efeito de estufa –, até à sugestão, numa conferência de imprensa na Casa Branca, em abril de 2020, das autoridades de saúde administrarem injeções de lixívia como tratamento para a Covid-19.
Mas, mais do que uma patologia norte-americana, esta irracionalidade está a tornar-se, de forma alarmante, no novo zeitgeist. Semelhante “espírito do tempo” da contemporaneidade, difundido universalmente sobretudo pelas plataformas digitais e pelas redes sociais, não podia estar mais afastado da recta ratio iluminista e da necessidade de sustentar as opiniões em factos. Como justamente refere a filósofa francesa Myriam Revault D’Allonnes, trata-se de “um sistema de explicação do mundo que se sobrepõe à realidade e que pretende explicar absolutamente tudo.” (Público, 28/4/2024). Esta pós-verdade, de que Donald Trump e os seus comparsas são arautos planetários, erige a mentira ao estatuto de “verdade alternativa”, rejeitando quaisquer outras possibilidades de explicação, muito menos de explicação razoável. Por isso, para a académica francesa, há aqui uma clara transformação concetual: “O mentiroso mente, mas não destrói a verdade como critério ou padrão de sentimento ou comportamento.” Estamos, assim, perante um upgrade da mentira que, para assegurar a sua validação, abole a verdade.
Os negacionistas, terraplanistas e teóricos da conspiração arrasam os sistemas periciais e todas as bases científicas do conhecimento, para se lançarem no mais puro delírio da desinformação e irracionalidade, proclamando as suas asserções como inquestionáveis, porque é de fanáticos e politicamente totalitários que falamos. Nesse sentido, o filósofo da ciência da Universidade de Boston, Lee McIntyre, explica: “Há [vários] objetivos na pós-verdade: um é fazer com que acreditemos numa falsidade. Outro é fazer com que desconfiemos de qualquer pessoa que não acredite na mesma falsidade, e até que a odiemos. O terceiro é tornarmo-nos céticos, desistir da ideia de verdade. É isso mesmo que o autoritário quer.” (Público, 12/5/2024). Dá o exemplo comezinho, mas significativo, da alegação de Trump de que a sua tomada de posse, em 2016, teve mais assistência que a do seu antecessor Barack Obama, quando os inúmeros registos fílmicos, fotográficos e testemunhais desmentem categoricamente tal ilação. Refere o filósofo norte-americano: “Porque é que ele se humilharia ao dizer isto? [Porque] o que ele realmente precisava era que eles [os apoiantes] lhe permitissem afirmar isso, mesmo sabendo que era falso, e aceitar. Porque era esse mundo em que viviam agora, em que a realidade não se definia pela realidade, mas sim por um tirano.”, concluindo, “É uma técnica terrível e funciona.” Não só se substitui uma verdade por outra, como se destrói o próprio conceito de verdade. A verdade passa a ser uma questão de escolha pessoal. “Escolhe-se por aquilo que se quer que seja. Pela pessoa em quem se confia ou pela pessoa que está ao nosso lado, porque odeia quem nós já odiamos.” É essa a diferença, argumenta McIntyre, entre uma informação incorreta (misinformation), que é um engano, e a desinformação (disinformation), que é uma mentira partilhada por alguém que sabe que é mentira.
No rescaldo da recente eleição de Donald Trump, o jornalista Manuel Carvalho deixa-nos um testemunho sombrio: “As trevas estão de volta […] A escuridão parece inexorável. As coisas vão piorar até que, num futuro próximo, a luz regresse. Oxalá não seja necessário, como em outros tempos, experimentar a guerra para que a ordem em curso se destrua e seja preciso construir uma nova.” (Público, 7/11/2024). É no mesmo sentido que se pronuncia a filósofa catalã Marina Garcés no seu livro Novo Iluminismo Radical (Lisboa, Orfeu Negro, 2023), para quem “O nosso é o tempo do tudo se acaba.” (p. 19), um tempo que nos remete para o que ela designa por “condição póstuma”. Com efeito, para a professora da Universidade Aberta da Catalunha, o desaparecimento do progresso e do desenvolvimento enquanto ideais de futuro e o esgotamento dos recursos planetários, faz com que deixemos de nos interrogar “para onde?”, mas sim “até quando?”, dúvida existencial definidora deste “tempo da insustentabilidade”. Como adverte Marina Garcés, “É evidente que vivemos em tempo real um endurecimento das condições materiais de vida, tanto económicas como ambientais. Os limites do planeta e dos seus recursos são evidências científicas. A insustentabilidade do sistema económico também é cada vez mais evidente.” (p. 34). Por isso, “O nosso presente é o tempo que resta. A cada dia, um dia a menos.” (p. 30).
Como chegamos a este ponto? Talvez porque cada vez um maior número de pessoas, como anteriormente referido, se recuse a ver a realidade, caminhando alegremente para o abismo. A insubmissão a esta “ideologia póstuma” é a principal tarefa do pensamento crítico atual. Seguindo a exortação de Marina Garcés, é absolutamente necessária “uma atualização da aposta iluminista, entendida como o combate radical contra a credulidade.” (p. 38), devolvendo-nos às raízes do iluminismo “como impugnação dos dogmas e dos poderes que beneficiam deles.” (p. 39). Três séculos depois, já não se trata, aliás, de uma questão de recta ratio, mas tão-só de ratio!
Hugo Fernandez