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albardeiro

Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!

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Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!

RECONHECIMENTO

albardeiro, 04.09.22

Houve quem acreditasse que a pandemia do Covid-19 iria mudar tudo. Puro engano. Se houve alguma alteração, esta foi de escala nos lucros desmedidos das empresas tecnológicas e na acumulação descomunal de riqueza por parte dos seus dirigentes. Business as usual, portanto. Aliás, se virmos o caso paradigmático dos EUA, o agravar das desigualdades sociais está bem patente nos cálculos feitos pelos economistas Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman: para o ano de 2018, e por cada 100 dólares do rendimento nacional, os 20% mais ricos recebiam 62 dólares, enquanto os mais pobres 20% se quedavam por 1 dólar e 70 cêntimos. Se juntássemos todo o rendimento da metade mais pobre da sociedade norte-americana, apenas teríamos 12 dólares e 50 cêntimos, muito abaixo da soma dos apenas 1% mais ricos; 20 dólares e 20 cêntimos. De então para cá – e apenas reportando ao ano de 2020 – a situação agravou-se: o rendimento dos 10% mais ricos representava 77% total e o 1% mais rico excedia a riqueza combinada de 90% dos estadunidenses (cf. Michael J. Sandel, The Tyranny of Merit, New York, Farrar, Straus and Giroux, 2020, pp. 113, 245).

Estes números assombrosos têm a sua confirmação no último relatório da Oxfam, significativamente intitulado “Lucrando com a dor”, e apresentado este ano no Fórum Económico Mundial de Davos. Esta organização internacional de luta contra a pobreza revela que as maiores fortunas subiram tanto em 24 meses como nos 23 anos anteriores. Nos últimos dois anos surgiram 573 novos multimilionários (1 a cada 30 horas), ao mesmo tempo que 263 milhões de pessoas correm o risco de pobreza extrema em 2022 (ou seja, um milhão de pobres a cada 33 horas), devido às consequências da pandemia e ao custo crescente da alimentação. Trata-se do “maior salto na pobreza extrema em 20 anos”, conforme se lê no referido documento (Público, 25/5/2022). Para se ter uma ideia da abissal disparidade na distribuição da riqueza, calcula-se que uma pessoa que faça parte da metade mais pobre da população mundial, terá de trabalhar 112 anos para conseguir auferir o mesmo que um indivíduo pertencente ao 1% dos mais ricos ganha num único ano.

Mas a pandemia teria sido uma boa oportunidade para romper com algumas práticas do passado e introduzir mudanças efetivas na nossa vivência coletiva. Por exemplo, no reconhecimento da importância dos serviços de saúde ou de educação, no papel fundamental da produção e distribuição de alimentos e outros produtos básicos, nos transportes coletivos, nos serviços sanitários ou de segurança. Incensados na altura, rapidamente os seus profissionais foram esquecidos. A desejada “economia do cuidado” que tinha como principais objetivos o apoio e a solidariedade sociais, retornou, com uma pujança nunca vista, aos desmandos da “economia de casino” neoliberal. Dos “heróis” de ontem, restou a mágoa e a revolta daqueles que se sentem, uma vez mais, desvalorizados e abandonados à sua sorte.

É particularmente elucidativa, a este propósito, o conjunto de exigências inscritas nos “cadernos de reivindicações” dos gilets jaunes franceses. Movimento espontâneo, com laivos de populismo, nascido em outubro de 2018, punha frontalmente em causa muitas das instituições da V República e, em especial, das políticas neoliberais da governação de Emmanuel Macron, como o aumento de impostos (em especial dos combustíveis), o aumento da idade de reforma e cortes nas prestações sociais, que agravaram sobremaneira o custo de vida e o poder de compra das classes populares e médias. Implementando um novo tipo de consulta popular (não inédito na história francesa, se nos lembrarmos dos “cahiers de doléances” de 1789, nas vésperas do final do Ancien Régime), foram recolhidas reclamações escritas por parte dos manifestantes, nas reuniões e ações de protesto, ideia mais tarde retomada pelas autarquias rurais francesas e finalmente alargada a todos os municípios do país por iniciativa do próprio governo, que os apelidou “cadernos de expressão livre”, entre janeiro e março de 2019, no quadro do “grande debate”, organizado também online. Desta recolha nacional resultaram 680 mil páginas de contribuições, constituindo um corpus documental de inegável importância.

Dos estudos já feitos, e à cabeça das reivindicações, aparece o restabelecimento do imposto sobre a fortuna (ISF), destacando-se uma clara consciência da exploração sofrida pelos trabalhadores em benefício dos grandes financeiros, proprietários e rentistas: “Os produtores de riqueza (operários, empregados, comerciantes, quadros, funcionários públicos, engenheiros, artistas, etc.) detêm o poder real, político, contra os que são consumidores ociosos (acionistas, grandes patrões, banqueiros)”. Aparecem também reiteradas referências ao “desprezo pelo povo” e “arrogância” do chefe de Estado. Mas a exigência mais frequente e que encerra maior significado social diz respeito à possibilidade de “poder viver dignamente do trabalho ou da pensão”. Denuncia-se a desresponsabilização do Estado pelas políticas sociais, em especial no domínio da habitação e no acesso aos transportes e serviços públicos (bem como o receio da sua privatização) – “um serviço público não é infelizmente sempre rentável, mas faz parte da solidariedade nacional” –, propondo-se o aumento do SMIC (salário mínimo) para fazer face ao aumento das despesas. Pelo contrário, temas como a imigração, a delinquência, o islão ou a questão da identidade, são claramente secundarizados (ao contrário do que é constantemente veiculado pelos mass media e pelos “fazedores de opinião”) (cf. “Os cadernos da cólera”, in Le Monde Diplomatique, versão portuguesa, junho 2022).

“Poder viver dignamente do trabalho ou da pensão”, eis a questão fulcral. E esta reivindicação tem não só a ver com a questão substantiva do acesso a remunerações condignas – e, convenhamos, quem trabalha tem de ser capaz de sustentar uma vida decente – como também com o reconhecimento social do trabalho (de todo o trabalho) e da merecida pensão após uma prolongada atividade profissional. É precisamente sobre este último aspeto que reflete Axel Honneth, na sua obra The struggle for recognition – the moral gramar of social conflicts (Cambridge, MA, MIT Press, 1996). Como refere o filósofo alemão, “the social standing of subjects is indeed measured in terms of what they can accomplish for society within the context of their particular forms of self-realization.” (op. cit., p. 127). É esta a base do que denomina “social esteem”, que engloba o respeito próprio e a autoconfiança. Com efeito, “the experience of being socially esteemed is accompanied by a felt confidence that one’s achievements or abilities will be recognized as ‘valuable’ by other members of society.” (ibid., p. 128). Quando este reconhecimento social não acontece, retira-se aos indivíduos e grupos em questão a possibilidade de atribuírem valor às suas competências e às atividades profissionais que desenvolvem, fazendo com que o seu modo de vida perca “something of positive significance within their community.” (ibid., p. 134). Sentindo-se dispensáveis, segundo uma lógica neoliberal de globalização planetária, sobrevêm o desespero e o ressentimento.

É também sobre a dignidade do trabalho como uma das principais garantias da coesão social e do bom funcionamento das sociedades, que fala o filósofo norte-americano Michael Sandel. Em entrevista ao Público, critica os dirigentes políticos que, perante as desigualdades sociais, em vez de procederem a reformas na economia, mandam os cidadãos tirar uma licenciatura (à semelhança do famoso “Enrichez-vous!” de François Guizot relativamente ao sufrágio censitário). Como explica Sandel, foi dito aos trabalhadores americanos que “a única saída para a desigualdade e para a estagnação salarial é; melhore-se a si próprio, obtendo uma melhor educação. «O que ganhas depende do que aprendes», disse Bill Clinton muitas vezes nos anos 1990. «Podes consegui-lo se tentares”, assegurou Barack Obama aos americanos nos anos 2000 e 2010. Mas o que estas mensagens políticas não tinham em conta foi o insulto implícito que transmitiram. Diziam aos trabalhadores em dificuldades: se não estão a florescer na nova economia e se não têm um diploma universitário, o fracasso é culpa vossa, não se aperfeiçoaram. O problema não está nas políticas ou na estrutura da economia que criámos, o problema é não terem o diploma universitário.” (Público, 15/5/2022).

A hipervalorização do grau universitário e de determinado tipo de competências intelectuais e técnicas, desvaloriza outro género de atividades e profissões – no entanto, tão necessárias quanto aquelas –, inferiorizando os que a elas se dedicam. Como refere Sandel na obra citada The tyranny of merit, “It tells them that the work they do, less valued by the market than the work of well-paid professionals, is a lesser contribution to the common good, and so less worthy of social recognition and esteem.” (op. cit., p. 198). Esquecem-se, hipocritamente, todos os constrangimentos económicos, sociais e culturais (incluindo as questões de raça e de género) que condicionam de forma decisiva esse apregoado caminho virtuoso para o “sucesso”. Numa situação em que a “igualdade de oportunidades” não passa de uma falácia oportunista, distorcendo qualquer ideia de mérito, o poder e riqueza dos bem-sucedidos é apresentado como a melhor prova da sua superioridade e constitui-se como modelo social a seguir.

Por isso, ser pobre é duplamente penalizador. Na impossibilidade de invocar o destino para explicar as injustiças sociais (expediente ideológico próprio das sociedades antigas), numa sociedade supostamente meritocrática ser pobre significa não só estar privado dos bens e recursos essenciais a uma existência digna, como assumir a responsabilidade exclusiva por tal circunstância. A desigualdade experienciada transforma-se em desmoralização individual e inferiorização social. Prevalece um sentimento de malogro, tanto mais agudo quanto mais pobre se é. O desvalimento é vivido como uma culpa pessoal pela ausência do esforço ou do talento necessários para alcançar uma melhor condição de vida. Nas palavras de Michael Sandel, “A society that enables people to rise, and that celebrates rising, pronounces a harsh verdict on those who fail to do so.” (op. cit., p. 115). “Cada um tem o que merece”, converte-se no lema da ideologia meritocrática, premiando indevidamente toda a riqueza e condenando injustamente toda a pobreza.

A eleição de Donald Trump em 2016 (ele próprio um milionário, mas que desdenhava da elite universitária e bem-pensante instalada no poder) foi o resultado da frustração sentida por milhões de americanos pobres em relação à clique governante de Washington (precisamente aqueles a quem Hillary Clinton, a sua rival eleitoral, apelidou de “deploráveis”). Para Sandel, “uma importante fonte do ressentimento que produziu a revolta populista contra as elites foi a sensação entre muitos trabalhadores de que as elites os olhavam com desprezo e não respeitavam o seu trabalho ou as suas contribuições para o bem comum.” (Público, 15/5/2022). Muitos americanos – e, de resto, milhões de cidadãos por todo o mundo – sentiram-se arredados das apregoadas vantagens da globalização que, ao invés, beneficiou uma minoria de tecnocratas altamente qualificados, de especuladores financeiros e de gente muito rica e poderosa. A desregulamentação e privatização de atividades industriais e serviços, a deslocalização de setores produtivos para países de baixos salários, a desvalorização e esvaziamento de comunidades trabalhadoras e o desemprego galopante, foram o seu corolário lógico. A perda da identidade coletiva e do orgulho de classe, uma consequência inevitável. Para inúmeros indivíduos, foi crescente a sensação de terem sido descartados, de se tornarem “estranhos na própria terra”.

O título do artigo de Jorge Almeida Fernandes no Público (30/7/2022) deixa pouca margem para dúvidas: “Itália: extrema direita seduz operários”. Com 44% de eleitores que se reclamam de direita e apenas 31% de esquerda, a direita é maioritária em todas as camadas sociais, e com percentagens maiores no mundo operário. Em França sabe-se como Marine Le Pen domina o voto dos trabalhadores. Muitos outros partidos e movimentos populistas e de direita radical pululam pela Europa e por todo o mundo. Serão as classes populares mais reacionárias e extremistas que todos os outros? Na formulação lapidar do historiador e jornalista francês Jacques Julliard, na sua obra La faute aux élites, de 1997, (demonstrando como, a partir dos finais dos anos 70 do século XX, o divórcio entre as elites e as classes populares empurrou aquelas para o populismo), “são as mais expostas, eis tudo.” (ibid.).

A recuperação do sentido comunitário nas nossas sociedades é fundamental. A certeza de que dependemos uns dos outros para o seu correto funcionamento é um princípio que tem de ser reafirmado e valorizado. Há um lugar para todos e o contributo de cada um é necessário para a existência coletiva. Como lembrou um dia Martin Luther King a trabalhadores da limpeza, em Memphis, “One day our society will come to respect the sanitation workers if it is to survive, for the person who picks up our garbage is in the final analysis as significant as the physician, for if he doesn’t do his job, diseases are rampant. All labor has dignity.” (Sandel, op. cit., p. 210).

Hugo Fernandez