Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Segunda-feira, 4 de Março de 2019
POR OUTRO LADO

É discurso recorrente da direita – em especial daquela direita intelectual e modernaça que se encontra entrincheirada em nichos universitários e publicações apologistas – que nos dias que correm se verifica uma rutura entre a população e os políticos. Tomada por original, tal rutura significaria um inexorável divórcio entre o “povo” e os seus governantes e, para todos os efeitos, daqueles que elegemos no âmbito da representação política que a democracia consagra. O novo ideal político é ser “antissistema”. Foi assim que se justificaram as eleições de Donald Trump ou Jair Bolsonaro, bem como as irrupções populistas que têm surgido um pouco por todo o lado. É curiosa esta dicotomia entre os milhões de incensados “puros” de propósitos e a minoria perversa que controlaria o establishment, ultrapassando-se, desta forma, as clivagens consideradas obsoletas entre esquerda e direita, ou procurando tornar irrelevante a pluralidade de soluções políticas presentes em qualquer sociedade democrática. A história é atrativa, mas largamente falaciosa. Baseia-se no que vou designar, de forma esquemática, pelos três “D’s” complementares e convergentes da ordem neoliberal contemporânea: despolitização, desideologização e dissolução social.

O liberalismo tem, na sua génese doutrinária, dificuldade em lidar com a ideia de sociedade enquanto um todo organizado na defesa do bem comum e do bem-estar coletivo. A apologia do “individualismo possessivo” e a crença na exclusiva responsabilidade individual pela vida de cada um, estriba-se na ideia matricial de que tem êxito quem toma as decisões corretas e fracassa quem não o faz. Procura-se, sobretudo, obnubilar qualquer interferência da sociedade na determinação específica – ainda que em grau variável – dos destinos individuais. Desta crença se fez eco o presidente francês Emmanuel Macron quando, em declarações públicas, se referiu às “pessoas que não são nada” por oposição àquelas que “têm sucesso” (cit. em Le Monde Diplomatique, ed. port., janeiro de 2019). São conhecidos os efeitos de semelhante visão das coisas.

Isolado o indivíduo e posta em causa a dimensão política – no seu sentido clássico de gestão da res publica – pela desvalorização sistemática da participação cidadã (qualquer insignificância ou futilidade mundana tem muitíssimo mais tempo de antena nos meios de comunicação social que um debate político, as declarações de um dirigente partidário ou as opiniões de um cientista ou pensador, por mais reputados que sejam) e pela disseminação de valores e crenças antipolíticas (a visão da política como encarnação do “mal”), o resultado é uma crescente alienação cívica da generalidade da população. Esta campanha é consciente, premeditada e profundamente ideológica, desde as formas mais larvares de apoliticismo do “não te metas nisso que é política”, passando por “a minha política é o trabalho”, até às formas mais sofisticadas da sagração, pretensamente não ideológica, da gestão tecnocrática dos negócios públicos e, nesta fase, a separação ético-moral entre um “nós” constituído por cidadãos puros, crentes e bem intencionados, e um “eles”, os políticos, encarnação de um establishment odioso, naturalmente mentirosos, corruptos e autocentrados.

Mas, como justamente sublinha o historiador José Pacheco Pereira “Ser «antissistema» significa ser contra as diferenças institucionalizadas nos partidos políticos, e contra os mecanismos de representação e mediação, sejam os parlamentos, os partidos ou os sindicatos.”, concluindo, “Quando se vai ver o que é isso do «sistema», verifica-se que é da democracia que estão a falar.” (Público, 16/2/2019). Acresce a seguinte realidade; calculando-se que anualmente, só na União Europeia, se perdem cerca de um bilião de euros em evasão fiscal e engenharia fiscal agressiva por parte das grandes empresas multinacionais, a questão da falsidade, corrupção e prosseguimento exclusivo de interesses próprios é capaz de ter outros destinatários que não – ou, pelo menos, não principalmente – os políticos.

Esta pretensa desideologização da sociedade gira em torno do dogma consensualizado por campanhas permanentes de desinformação e alienação do “não há alternativa”, que a ortodoxia do pensamento hegemónico amplamente difunde e procura inculcar na mente dos mais ingénuos ou incautos. Com êxito assinalável, diga-se; como explicava o politólogo norte-americano Barrington Moore acerca das grandes vagas de contestação nos anos 1960-1970 nos Estados Unidos, à questão “Por que motivo se revoltam as pessoas?”, ele respondia com uma outra: “Por que motivo não o fazem mais frequentemente?” (Barrington Moore Jr. Injustice: the social bases of obedience and revolt, New York, M. E. Sharpe, 1978, cit. em Laurent Bonelli, “Porquê agora?”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, janeiro 2019).

Sobretudo faz crer que as alternativas efetivamente existentes são subversivas para o statu quo – no que tem razão – e perigosas para o normal funcionamento da sociedade – o que é falso – já que todas as decisões consideradas ponderadas e razoáveis é suposto provirem apenas da gestão tecnocrata de especialistas, alegadamente apolíticos e convenientemente desideologizados. A esfera política – a dimensão do confronto de ideias e de soluções para os problemas existentes – eclipsa-se perante a prevalência de uma lógica empresarial, lucrativa e predadora, que se sobrepõe a quaisquer outras considerações de ordem cívica (como a defesa dos direitos, liberdades e garantias constitucionais) ou de coesão social e territorial (justiça social e desenvolvimento harmónico do todo nacional). Sobrevém a “mercadorização” das existências, própria daquilo que o economista e antropólogo austro-húngaro Karl Polanyi designava, já em 1944, na sua conhecida obra The Great Transformation, “sociedade de mercado”. É este modelo de vida em sociedade baseado na desresponsabilização cívica dos indivíduos, das empresas e das instituições, que justifica a defesa dos paraísos fiscais e a candura de afirmações como a do fundo financeiro Ugland House (detentor, por exemplo, da seguradora Fidelidade) que no seu site argumenta que “Os investidores e os seus consultores escolhem as ilhas Caimão por razões comerciais e empresariais prudentes, uma das quais é a neutralidade fiscal e não a evasão fiscal.” (Público, 12/2/2019).

Concomitantemente advoga-se a transferência dos poderes estatais para o âmbito da sociedade civil e do mercado, com todo o rol de perversões e injustiças que são conhecidas. A doutrina neoliberal, longe de significar quer um retorno ao pensamento liberal original, quer ao capitalismo selvagem da Revolução Industrial, ultrapassou o confronto das esferas estatal e mercantil – cuja lógica de funcionamento tendia a uma limitação mútua – para a assunção do mercado como modelo para a governação, numa espécie de mercantilização da ação do Estado. Faz-se a apologia de um modelo em que é o mercado que molda a vida social, em vez de ser a vida social a determinar o mercado. Isto leva à progressiva dissolução dos laços sociais, à atomização das comunidades e à perda de identidade dos indivíduos, naquilo que o sociólogo francês Emile Durkheim designava por “anomia”. Esta ausência de reconhecimento comunitário – e, para todos os efeitos, de um mínimo de reciprocidade social – reforça as desigualdades, alarga inexoravelmente as áreas de exclusão, cria barreiras intransponíveis entre os sujeitos, justifica a discriminação e induz lógicas perversas e maniqueístas do funcionamento das sociedades, doravante divididas em “castas” e “guetos”. Quando a disparidade das condições de vida e a concentração da propriedade e da riqueza é tanta, dificilmente os excluídos são considerados gente, sobrevindo a sobranceria, o desprezo, a humilhação e o ostracismo.

Na sua habitual crónica no jornal Público, o historiador Rui Tavares refere dados impressionantes: Jeff Bezos, considerado o homem mais rico do mundo (com apenas 55 anos de idade) possui uma fortuna estimada em 150 mil milhões de euros, trinta vezes mais que o multimilionário Calouste Gulbenkian, considerado o homem mais rico do mundo à época da sua morte, em 1955. Mas não é a precocidade da fortuna que verdadeiramente perturba, mas o seu montante. Socorrendo-se dos cálculos do autor norte-americano Nathan H. Rubin, se alguém auferisse um rendimento anual de 50 mil euros (o que apenas acontece com 5% dos portugueses), só passados vinte anos deteria um milhão de euros, isto se não gastasse rigorosamente nada, o que é manifestamente impossível. Bezos detém 150 mil vezes isso. Para se atingir os mil milhões de euros, o comum dos mortais teria de viver, nas condições referidas, 20 mil anos. Bezos tem 150 desses. A fortuna do presidente da Amazon é maior do que o PIB de 125 países, mais de metade das nações existentes. Ultrapassará brevemente o PIB de Portugal, que ronda os 200 mil milhões de euros. Inacreditável, não é! Inacreditável, mas sobretudo profundamente irracional. É que, para gastar semelhante fortuna, o dispêndio teria que se cifrar nas dezenas de milhares de euros por dia, o que é dificilmente imaginável. Rui Tavares põe, então, a questão crucial: “e à humanidade, fazem falta megamilionários? A resposta é: não.” (Público, 1/2/2019). Lembra, para o efeito, o dado estatístico decisivo que nos revela que o PIB mundial, igualitariamente distribuído, daria cerca de 20 mil euros para cada habitante do nosso planeta (mais do que ganham 75% dos portugueses). Para que conste!

Tudo é apresentado como se a doutrina neoliberal e o modelo de sociedade que preconiza e estabeleceu a nível global não tivessem nada a ver com a atual situação. Porém, ao contrário do que é propagandeado, são as forças políticas de direita que são as verdadeiras promotoras da deriva populista a que assistimos. O que se verifica é um novo fôlego do establishment que nos governa, a coberto da sua suposta contestação. E a sua principal vítima é o ideário democrático. Só isso explica análises tão espantosas como aquela que apareceu recentemente no consagrado Finantial Times (cit. em Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, janeiro 2019), segundo a qual a maior ameaça para a democracia na América Latina advém do recém-eleito presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, um democrata progressista, e não do presidente brasileiro de extrema-direita Jair Bolsonaro! Palavras para quê?

Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 14:28
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Fevereiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

25
26
27
28
29


posts recentes

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

ROLO COMPRESSOR

Reflexão sobre o artigo d...

AS PERGUNTAS

Valorizar os servidores d...

MÍNIMOS

Como será a educação daqu...

EXCESSIVO

DEMOCRACIA

arquivos

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub