Num país normal, e depois da gravíssima crise por que Portugal passou, deve tentar-se recuperar dos prejuízos, reparar as injustiças, repor o nível de vida anteriormente existente. Deve, sobretudo, identificar-se com rigor, os fatores de desregulação, evitar a sua repetição e punir os seus responsáveis. Certamente que os negócios ruinosos da banca, os abusos das PPP, os desmandos de nababos e especuladores financeiros constituem causas fundamentais da situação vivida. O que não se pode é fingir que nada se passou ou, pior ainda, fazer das vítimas carrascos. Como não me parece que os funcionários públicos e, entre eles, os professores, sejam os responsáveis pela crise, contando-se antes entre os seus padecentes, convém analisar com objetividade a questão colocada sobre o congelamento do tempo de serviço docente.
Como é fácil de perceber, não se pode, pura e simplesmente, apagar quase uma década de serviço efetivamente prestado. Numa carreira profissional de 40 anos, “congelar” 9 anos, 4 meses e 2 dias de trabalho não é coisa de somenos. Nem é eticamente razoável, nem financeiramente equitativo, muito menos socialmente justo, e seguramente não é assunto que possa ser encarado com displicência ou ao serviço de meras jogadas político- partidárias. Até porque é um problema que acresce à progressiva degradação da escola pública e das condições de trabalho dos docentes, à sobrecarga de horários e tarefas que nada têm a ver com a sua verdadeira função, ao acentuado envelhecimento dos professores, à endémica precariedade das suas condições de vida, aos enormes níveis de desemprego docente e a uma espécie de ódio social larvar perante estes profissionais, induzido por políticas educativas erráticas e irresponsáveis que resultam tão-só no incremento da indisciplina dos alunos e na incompreensão dos encarregados de educação.
A má consciência do Governo nesta matéria é por demais evidente. Não é só o desnorte e imprecisão dos valores apresentados para a recuperação do tempo de serviço docente. É a tentativa de encobrir o simples facto de que os salários dos professores correspondem, no contexto nacional (comparações internacionais são manifestamente falaciosas) aos dos outros profissionais com iguais habilitações. Sendo dos trabalhadores mais qualificados da função pública, e atingindo um número superior a 120 mil funcionários (quase 20% de todos os trabalhadores do Estado), a despesa não poderá deixar de ser significativa. Mas será que estes devem ser penalizados pelas suas habilitações ou pelo seu número? E o serviço que prestam não será necessário, diria mesmo, essencial para a existência de um país? Recorde-se que em termos líquidos (que é o que conta, descontando, portanto, a receita fiscal direta e indireta para o Estado), e tantas vezes deslocados centenas de quilómetros de suas casas, a remuneração dos docentes do quadro situa-se entre os 1000 e os 1900 euros, ao longo de uma carreira de 40 anos, dividida em 10 escalões, cuja progressão exige muitas horas de formação, prestação de provas, processo de avaliação de desempenho e o aguardar de vaga, como acontece em dois dos escalões intermédios (5º e 7ª). Para os docentes que não estão no quadro e/ou não têm horário completo, a situação é de absoluta precariedade, quando não de verdadeira indigência.
Os 800 milhões de euros estimados para a recuperação do tempo de serviço, não só dos professores, mas de todas as carreiras especiais da função pública, é tão só um exercício de demagogia e de mistificação estatística por parte do Governo, já que contabiliza a valorização imediata e simultânea da totalidade dos funcionários, cenário obviamente falacioso. Para além da circunstância de, por força do envelhecimento da profissão, muitos docentes se virem a reformar e por isso já não contarem para o cálculo das progressões. Um organismo oficial como a UTAU, calcula que a recuperação integral do tempo de serviço na função pública orçará uma média de 398 milhões de euros (0,2% do PIB), com variações anuais significativas, e descontando – como deve ser feito – o acréscimo de 168 milhões de euros de receitas contributivas, o que demonstra os números propositadamente inflacionados por parte de Centeno. Mais. Assiste-se a uma verdadeira manigância orçamental, já que, tendo em conta apenas os valores brutos, o Ministério das Finanças insiste em integrar os descontos que os professores fazem para o IRS e para a Segurança Social, cálculo que nunca é feito nas contas do Estado, já que, na contabilidade oficial, estes valores são sempre apresentados como receita e não como despesa. A apresentação dos valores brutos é uma metodologia que, por exemplo, contraria o critério dos dois últimos OE apresentados precisamente por este Governo.
Números bem diferentes são os apresentados pelos docentes autores dos principais blogues de educação, que avançam com um custo anual com a contabilização dos 9 anos, 4 meses e 2 dias de serviço na ordem dos 263 milhões de euros, dado que há um faseamento das progressões e das aposentações, sendo que este processo, como sempre disseram os docentes e as suas organizações representativas, seria faseado no tempo ao longo de um período entre os 7 e os 10 anos (abdicando-se, inclusive, dos retroativos salariais que tal reposicionamento deveria implicar). Situação muito diferente, portanto, dos 850 milhões de euros que o Governo vai injetar, mais uma vez – e de uma só vez! – no Novo Banco, em benefício do fundo abutre norte-americano Lone Star, e aí “sem espinhas”. Em todo o caso, sempre valores muito inferiores à dívida de mil milhões de euros de Joe Berardo à banca pública ou intervencionada pelo Estado.
Daí a pertinência da dúvida da jornalista Sandra Monteiro: “O que podemos pensar sobre a recuperação económica do país quando o governo afirma que não há dinheiro para pagar aos professores os compromissos com carreiras que, no entanto, o Estado sempre assumiu, sem qualquer dramatismo, até à crise de 2008? Ainda por cima quando se afirma que não há disponibilidade orçamental nem vai haver; o que a transforma num dado independente das flutuações da conjuntura.” (Le Monde Diplomatique, ed. port., maio de 2019). O que é que isto quer dizer? Que finalmente chegou a hora do PS vingar as derrotas de Maria de Lurdes Rodrigues ou as perdas eleitorais de Sócrates e o mais do que previsível falhanço da maioria absoluta de Costa às mãos dos docentes? Que o Governo se está a preparar para fazer uma revisão do Estatuto da Carreira Docente com o apoio da direita para “partir a espinha” aos professores? Que o processo de proletarização e domesticação dos docentes, que os socialistas sempre ambicionaram, vai finalmente ser concretizado? Que se pretende renegar a resolução da Assembleia da República de 15 de dezembro de 2017, aprovada com os votos do PS, bem como do BE e do PCP que “recomenda ao Governo que, em diálogo com os sindicatos, garanta que, nas carreiras cuja progressão depende também do tempo de serviço prestado, seja contado todo esse tempo, para efeitos de progressão na carreira e da correspondente valorização remuneratória”, parece uma evidência. Mas como se pode entender que, num mesmo país, os docentes das regiões autónomas dos Açores e da Madeira tenham visto reposto todo o tempo de serviço e os do continente não? Será que nos arquipélagos não há restrições orçamentais? Ou os Governos regionais decidiram que era imoral castigar uma classe de profissionais apenas para servir de exemplo a outros?
Quando, como sublinha Paulo Guinote, “se sente que a função é desrespeitada e menorizada, em que o papel social do professor é colocado como um encargo incómodo e não um capital insubstituível.” (JL, 22/5 a 4/6/2019), algo de muito errado se passa. Se estivermos, claro, a falar de um país normal.
Hugo Fernandez