Na teoria dos jogos, os resultados de uma decisão podem, em termos genéricos, ser de dois tipos. Por um lado, o jogo de soma-zero, quando um jogador ganha exatamente o que o outro perde, seguindo o primeiro uma estratégia mais arriscada para infligir o máximo de danos ao adversário que, por sua vez, procura a todo o custo minimizar os prejuízos, adotando uma atitude cautelosa; num jogo de soma-zero, a alternativa é simplesmente ganhar ou perder – ou, em expressão anglo-saxónica, “the winer takes it all”. Por outro lado, temos o jogo de soma positiva quando todos os jogadores podem ganhar alguma coisa, estando o desafio na distribuição dos ganhos; são jogos de cooperação e de negociação. Do ponto de vista político – e de uma forma esquemática – podemos dizer que a primeira perspetiva corresponde a um pensamento de direita, enquanto que o segundo é mais característico de um posicionamento de esquerda. Se, no primeiro caso, temos a defesa intransigente do individualismo, da concorrência extrema e da busca da vitória implacável do mais forte em detrimento dos mais fracos, no segundo busca-se a partilha de benefícios ou de prejuízos, a consensualização de soluções e uma preocupação essencialmente coletiva.
Desde os anos 80 do século passado e a imposição do paradigma neoliberal, que a construção europeia tem seguido o primeiro destes modelos. E um exemplo concludente de tal estado de coisas é o caso português. A desigualdade entre Portugal e a Europa comunitária é enorme; nos indicadores positivos, o nosso país é deficitário, em alguns casos, perto de quatro vezes, enquanto que nos indicadores negativos, fica sempre acima da média europeia, atingindo, em alguns índices, o dobro dos valores apresentados pelos restantes países (cf., a este propósito, o recente estudo de Renato Miguel do Carmo et al., Desigualdades Sociais – Portugal e a Europa, Lisboa, Mundos Sociais – CIES, ISCTE/IUL, 2018). Como se chegou a esta situação?
O processo pode ser resumido da seguinte forma: se, numa fase inicial, houve um grande fluxo de capitais de Norte para Sul – e o deslumbramento dos governos e das opiniões públicas com tamanho maná – cedo se percebeu que a política de convergência não era mais do que uma garantia sistémica para aproveitar a proximidade geográfica de uma mão-de-obra barata e assegurar novos mercados para o escoamento da produção industrial das potências europeias em fase de crescimento acelerado. Com efeito, os países meridionais, com as suas economias convenientemente desmanteladas – em nome dos supostos benefícios de uma competitividade que se revelou profundamente assimétrica – ficaram sobreendividados e nas mãos dos seus credores germânicos ou escandinavos. Vemo-nos assim reduzidos ao caricatural processo descrito por Renaud Lambert e Sylvain Leder: “Já é um sketch bem rodado. Um governo – progressista ou reacionário – toma uma decisão que infringe as preferências do sistema financeiro. Os mercados ameaçam, o poder político renuncia, a comunicação social aplaude.” Explicando que o principal ator das democracias europeias passou a ser “o investidor”, estes economistas franceses concluem, “Ora, o investidor gosta da União, moldada para lhe render cem vezes mais.” (Le Monde Diplomatique, ed. port. julho de 2018). Independentemente de tudo o resto, incluindo a própria democracia.
A relação entre os países da UE converteu-se numa mera lógica devedor-credor e a consequente divisão identitária entre um “nós” e um “eles”. A divergência insanável de interesses entre países que acumulam excedentes e países que se mantêm deficitários é a realidade dos desequilíbrios estruturais do atual projeto europeu, em completa contradição com os princípios de coesão económica e social que constituíram os seus objetivos iniciais. A imposição de restrições draconianas na despesa pública primária, em áreas tão sensíveis para a vida das populações como a saúde, a educação e a justiça, como contrapartida orçamental para assegurar o pagamento de uma dívida insustentável, obrigam ao questionamento do quadro de funcionamento da atual União Europeia. O estado de asfixia e estagnação (quando não retrocesso) a que chegou o nosso país resulta da convergência do espartilho das regras orçamentais e financeiras impostas pela integração comunitária e o acumular de uma dívida externa a Bruxelas reconhecidamente impagável. Daí a necessidade imperativa da sua reestruturação, quer em termos dos montantes e juros em causa, quer dos respetivos prazos de pagamento.
E é elencando as prioridades da política orçamental alemã, recentemente apresentadas por Olaf Scholz, o novo ministro das Finanças social-democrata da Alemanha, que o economista e editor do The Financial Times, Wolfgang Münchau, indicia a insustentabilidade da zona euro: corte nominal no investimento, congelamento de fundos para a ajuda ao desenvolvimento em 0,5% do PIB e uma diminuição muito substancial da contribuição para o próximo orçamento da UE. Os objetivos destas medidas são, por um lado, garantir que a dívida germânica em relação ao PIB ficará abaixo do limite de 60% estabelecido no tratado de Maastricht e que o país terá um excedente orçamental para o quadriénio 2019-2022 de pelo menos 1%. Ora, como lembra o economista alemão, “A Alemanha tem acumulado excedentes em conta corrente de cerca de 8% nos últimos dois anos.” Atentemos nas palavras de Münchau: “Nunca haverá uma solução para a situação da zona euro, a menos que outros países tenham a coragem de dizer a verdade a quem detém o poder. Eles devem considerar que a Alemanha está a violar a mais importante regra de política estabelecida no tratado de Maastricht: que os Estados membros tratem a política económica como uma questão de interesse comum. O orçamento alemão é tão pouco europeu quanto os défices excessivos da Grécia.” (Diário de Notícias, 7/5/2018). Assim sendo, onde fica a solidariedade europeia e a partilha de riscos da zona euro? Onde ficam as políticas de convergência enunciadas como a matriz da construção comunitária?
O omnipresente Tratado Orçamental na vida nacional é, ao mesmo tempo, o elefante na sala de que ninguém fala. A Europa deixou de se discutir. Trata-se da reposição, em toda a linha, do velho preceito thatcheriano do “there is no alternative”. A não discussão da Europa e das regras de funcionamento comunitárias constitui, nas palavras do historiador e analista político José Pacheco Pereira, “a tradução no discurso político de uma impotência, da absoluta noção de que é uma matéria sobre a qual não tens qualquer poder, nem soberania, e por isso aceita-se como um hábito, um mau hábito.”, para concluir, “É a interiorização do protetorado, um certificado de castração. E isso é particularmente destrutivo na democracia.” (Público, 7/7/18). Chega-se, por esta via, à angustiante constatação enunciada pelo conhecido filósofo político italiano Norberto Bobbio: “Ao avaliarmos o desenvolvimento da democracia num determinado país já não devemos perguntar «quem tem direito de votar», mas sim «sobre que assuntos é que o povo tem o direito de votar?»” (cit. in Rui Graça Feijó, Democracia – linhagens e configurações de um conceito impuro, Porto, Afrontamento, 2017, p. 51). Não será tudo, afinal, um jogo de poder?
Hugo Fernandez