Que a hipocrisia impera no universo político (e não só!) é uma realidade indesmentível. E bastam os três exemplos aludidos por Serge Halimi, jornalista e diretor editorial do Le Monde Diplomatique, a propósito do movimento Black Lives Matter nos EUA, para o comprovar: Estée Lauder, perfumista e uma das principais financiadoras da campanha eleitoral que levou Donald Trump ao poder, em 2016, promete doar 10 milhões de dólares para “favorecer a justiça social e racial, bem como um maior acesso à educação” (verba, de resto, bastante modesta para tamanho desígnio); a participação numa manifestação antirracista de Willard (“Mitt”) Romney, candidato republicano às eleições presidenciais de 2012, que declarou publicamente que 47% da população americana era constituída por parasitas (referia-se, claro, aos mais pobres, a maior parte deles negros); ou o gesto de se ajoelhar em frente a uma caixa-forte gigante da sua instituição por parte de Jamie Dimon, presidente executivo do banco JPMorgan, que obteve lucros milionários ao aliciar inúmeras famílias negras com créditos imobiliários muito além das suas possibilidades, o que acabou por as levar ao sobre-endividamento e à ruína (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, julho 2020). Mas é evidente que esta constatação não substitui uma análise aturada das circunstâncias que lhe subjazem.
Da mesma forma, dificilmente nos podemos cingir ao estudo da personalidade dos líderes políticos para explicar as opções seguidas na governação dos respetivos países. Mas há casos em que disfunções sociais se juntam a patologias individuais – em especial, em situações de concentração do poder – potenciando os efeitos nefastos de umas e de outras. Nestas conjunturas, o caráter individual dos responsáveis políticos pode revelar-se decisivo, por efeito de uma simbiose com os seus apoiantes, indutora de um mimetismo levado ao extremo. São vários os exemplos históricos que o comprovam, dos quais o mais paradigmático é, sem dúvida, o de Adolf Hitler na Alemanha devastada entre guerras. Nos dias que correm, não há exemplo mais flagrante que o de Donald Trump no seio da fragmentada sociedade americana em contexto de globalização; ambas personalidades psicóticas ou com acentuados distúrbios mentais, exercendo o poder em sociedades com um elevado nível de disfuncionalidade.
O atual presidente norte-americano é, com efeito, um autêntico case study. Numa situação particularmente agravada com a pandemia do Covid-19, e quando, neste mês de julho, os EUA batem recordes mundiais de infeções diárias com cerca de 60 mil casos e já ultrapassam os 3 milhões de infetados (mas cujo número real poderá ser bem superior, chegando próximo dos 25 milhões, segundo o responsável dos serviços imunológicos americanos, Robert Redfield), a que acresce o inimaginável número de 135 mil mortos, Trump, em entrevista à Fox Business, insiste que a doença vai “desaparecer” e, por isso, se recusa a delinear uma estratégia para fazer face ao enorme incremento do surto por todo país: “Acredito que estamos a ir muito bem com o coronavírus. Acho que, em algum momento, isto vai simplesmente desaparecer” (I, 3/7/20). Que razões podem explicar semelhante cegueira?
Como refere, em entrevista ao Público, o professor catedrático de Filosofia da Universidade de Brown nos EUA, o açoriano Onésimo Teotónio Almeida, “Trump tem sido muito pior do que a covid-19. Num artigo, falei mesmo da covid-2016, referência ao ano em que foi eleito. Para ele, não tenho mais palavras, pois já disse tudo. Há três anos usei numa entrevista o adjetivo «asqueroso». Mantenho-o.” (Público, 27/6/2020). E, fazendo alusão ao testemunho do ex-homem de confiança do presidente norte-americano, John Bolton, no livro recém-publicado The Room Where It Happened, ele “Não respeita ninguém nem sequer os que escolhe para colaboradores imediatos; não quer saber de ninguém, a não ser de si mesmo”. É fácil constatar que Trump age só a pensar nos seus interesses e, antes de mais, na manutenção do seu protagonismo através da reeleição. A sua ânsia de poder, ao serviço de uma megalomania e egocentrismo doentios, faz com que nada mais importe senão a sua pessoa, nem quando tem o destino de milhões dos seus conterrâneos nas mãos.
Esta perturbação da personalidade ficou, mais uma vez, amplamente demonstrada com a recente iniciativa da sua governação. Num momento em que se assiste à perda generalizada de postos de trabalho e dos respetivos pacotes de seguros privados e em que milhões de norte-americanos estão a ser afetados pela pandemia de covid-19, a administração Trump, por intermédio do seu Departamento de Justiça, pediu ao Supremo Tribunal que revogue o Affordable Care Act (mais conhecido por “Obamacare”), assinado pelo anterior Presidente Barack Obama, em 2010, sistema público de acesso aos serviços sanitários que permitiu, só este ano, que 24 milhões de pessoas acedessem a um seguro de saúde a valores acessíveis e com uma cobertura equiparável ao do setor privado. Promessa eleitoral nuclear da campanha de Trump em 2016 (e após a tentativa frustrada de derrubar a lei no Congresso, em 2017 – apesar do Partido Republicano dominar, nessa altura, a tanto a Câmara dos Representantes como o Senado – em virtude da oposição de alguns membros da maioria), esta atitude foi justamente classificada pelos Democratas como “Um ato de inexplicável crueldade” (Público, 27/6/2020). Mas tamanha “crueldade” pode, afinal, ter explicação.
No livro da sobrinha de Trump, a psicóloga clínica Mary J. Trump, (filha do irmão mais velho do Presidente, Fred Trump Jr., que morreu alcoólico quando Mary tinha dez anos), intitulado Too Much And Never Enough: How My Family Created The World’s Most Dangerous Man, é dito que o tio mantém uma psique infantil, sendo “Incapaz de crescer, aprender ou evoluir, incapaz de controlar as suas emoções, de moderar as suas respostas ou absorver e sintetizar informação.” (Público, 9/7/20). Vítima de “privações que o marcaram para toda a vida” e de um ambiente de bullying por parte do patriarca da família, Fred Trump – que Mary caracteriza como um “sociopata” – que propagava todo o tipo de ideias racistas, xenófobas e sexistas na família, Trump revela um caráter e um comportamento que, segundo a sobrinha, “ameaçam a saúde, a segurança económica e o tecido social do mundo”.
Onésimo Teotónio Almeida, na entrevista referida, não deixará de sublinhar que “É a maior aberração que já vi em termos de Presidente, e o mistério está em entender-se como é que grande parte do eleitorado não enxerga isso.” Esse é, sem dúvida, o grande paradoxo do fenómeno Trump; é que ele foi eleito (tal como Hitler).
Hugo Fernandez