A irredutível apologia do indivíduo face à sociedade está na matriz do pensamento liberal. Desde a visão da realidade social como resultado da prossecução egoísta dos interesses individuais – a célebre “mão invisível” de Adam Smith – até à captura pelos privados das instituições públicas e do Estado, propugnada pela cartilha neoliberal, o indivíduo precede sempre a sociedade, que se constituiu a partir de um vínculo contratual primevo que visa, em exclusivo, a satisfação de anseios singulares, doravante reunidos num coletivo artificialmente constituído, quer na visão benevolente e consensual de Rousseau, quer nos termos belicistas e desapiedados – homo homini lupus (“o homem é o lobo do homem”) – de um Hobbes. A ideia do social resumir-se-ia ao conjunto de mecanismos necessários à garantia dos direitos e liberdades de cada um relativamente a todos os outros.
Esta deriva atomística, apenas cimentada pelos laços contratuais, opõe-se a uma outra visão da sociedade que, enraizando-se no zoon politikon (o homem como “animal político”) de Aristóteles, considera que o impulso gregário é intrínseco à natureza humana que encontra a sua plena realização nas interações que estabelece com os outros. A sociedade preexiste, assim, aos indivíduos, isto é, só na vida social os indivíduos adquirem a sua identidade. É a vivência cidadã que verdadeiramente molda os indivíduos, condicionando – ainda que não de forma determinista – as circunstâncias existenciais, pelo que, para as teorias comunitaristas (quer aquelas que derivam do próprio liberalismo, quer aquelas que foram construídas a partir do impulso democrático e das correntes socialistas), a ideia de indivíduo não é mais que uma abstração construída a partir da realidade social.
Trata-se, em todo o caso, de um debate fundamental da filosofia política contemporânea e uma questão que, em momentos de crise, adquire particular acuidade. Antes de mais como arma de propaganda político-ideológica. Situando o indivíduo fora da sociedade, descontextualizando-o, abstrai-se a condição humana da sua historicidade, das oportunidades a que teve acesso e dos constrangimentos que motivaram as suas escolhas ao longo da vida. Liberto da ganga social, o indivíduo aparece como o puro resultado de um voluntarismo absoluto que, na sua irrealidade, tende a sobrepujar apenas os méritos e subsumir máculas e incapacidades próprias ou chances e condições alheias ao arbítrio individual. O sucesso alcançado passa por ser o resultado de um destino previamente traçado e estruturante, desde o início, de cada um. É bom de ver que, pelo contrário, e como refere Lukas Sosoe a propósito do pensamento do comunitarista Michael Sandel, “aquilo que somos não é uma questão de escolha ou de projeto que podemos transformar consoante a nossa vontade e o nosso desejo […], mas uma questão de descoberta das nossas amarras, dos nossos laços e de tudo aquilo que constitui a nossa vida.” [in Alain Renaut (org.), As Filosofias Políticas Contemporâneas (após 1945), Lisboa, Instituto Piaget, 2002, pp. 328-329]. Assim sendo, o indivíduo cria a própria realidade na exata medida em que é condicionado por ela. Seguindo-a ou transformando-a, é a realidade que marca inexoravelmente as suas expetativas e as suas vivências.
Isolando o indivíduo da comunidade e desintegrando-se a cultura cívica, assocializa-se a sociedade e dá-se cobertura à desresponsabilização social proclamada pela ordem neoliberal em nome da competitividade, do crescimento económico e do pleno funcionamento dos mercados. A afirmação da autossuficiência individual assenta, por um lado, numa crença meritocrática sem peias no caminho do sucesso – o recorrente mito do self made man – e, por outro, na necessária exclusão e culpabilização de todos aqueles que o não conseguem alcançar, independentemente da consideração das oportunidades e possibilidades mobilizadas para o efeito. Como diz António Casimiro Ferreira sobre o pensamento de Zygmunt Bauman, “o modo como se vive transforma-se na solução biográfica para as contradições sistémicas” (António Casimiro Ferreira, Política e Sociedade – Teoria Social em Tempo de Austeridade, Porto, Vida Económica, 2014, p. 129). Inviabiliza-se, porque descabida, qualquer análise sociológica, reduzem-se as incidências da vida social a meras “histórias de vida” individuais pela técnica do “storytelling” e pela indução dos modelos e atitudes convenientes, mecanismos narrativos que entroncam, afinal, na crença neoliberal do absoluto controlo individual da vida de cada um e no direito e dever de, individualmente, se arcar com toda a responsabilidade da própria existência (e na perversa ideia de que se é pobre porque não se merece ser rico).
Os “exemplos de vida” pululam na comunicação social, no domínio da política, da publicidade ou no management empresarial. Palestras motivacionais para incentivar a autoestima, o desenvolvimento do “poder pessoal”, slogans tão falaciosos quanto sugestivos como “Tu és capaz”, ou frases inspiradoras como “Todos nascemos com as mesmas oportunidades, porém alguns decidem fazer algo diferente para mudar.” (Caderno 2 do Público, 21/12/2014), não passam de falsas narrativas de sucesso que vão a par com o brutal aumento dos esgotamentos, das depressões, do suicídio. Nas palavras da jornalista Ana Rute Silva, “Da Internet passa-se para a vida real e os hotéis enchem-se de eventos que prometem mudança pessoal e profissional. A religião coloca Deus no centro. Aqui, o indivíduo é considerado o protagonista.” (ibid.). Um dos gurus desta moda de life coaching é Gustavo Santos, apresentador do programa televisivo “Querido, Mudei a Casa”, que afirma sem qualquer pejo, “A nossa felicidade depende única e exclusivamente de nós. Eu sou o único responsável pelas minhas escolhas” e, por 20 euros por cabeça (há quem leve 30 e mais!), enche salas com audiências de muitas centenas de pessoas (ibid.). Podíamos facilmente multiplicar os exemplos, cuja última demonstração nos é dado pela inenarrável biografia de Passos Coelho, lançada no passado mês de maio, da autoria da assessora do grupo parlamentar do PSD, Sofia Aureliano, com o elucidativo título “Somos o que Escolhemos Ser”.
À progressiva degradação da vida das pessoas responde a ilusão do “se quiseres mesmo, consegues” dos manuais de auto ajuda, autênticos contos de fadas postos ao serviço do capitalismo na edificação de um mundo idílico mas inexistente, até porque decorre do próprio caráter explorador do sistema a exclusividade do dito sucesso, necessariamente limitado a alguns indivíduos à custa de todos os outros. Estamos, assim, em pleno domínio da mitologia. Este “imperialismo narrativo”, na expressão de James Phelan, faz do storytelling muito mais do que uma técnica de comunicação, mas uma verdadeira arma ideológica de poder. O que hoje está em jogo, como sublinha Christian Salmon, é uma “nova ordem narrativa”, o aparecimento de uma racionalidade que circunscreve e controla, através do storytelling e de outros mecanismos de ficção, as condutas individuais (cf. Christian Salmon, Storytelling, la Machine à Fabriquer des Histoires et à Formater les Esprits, Paris, La Découverte, 2013, p. 225). Por isso são tão necessários os exemplos dos self made man. A escassez do seu número é a justa medida da exemplaridade (e da salvaguarda de uma ordem social profundamente desigualitária) preenchendo dois desideratos essenciais: por um lado ilustram o “sucesso” social e servem de incentivo aos outros (ao mesmo tempo que consagram a lógica do sistema capitalista, iludindo as desigualdades na ideia da “falta de empenho e perseverança”) e, por outro, justificam plenamente o estatuto daqueles que perpetuam a condição privilegiada dos seus percursores e que se limitam a reproduzir a situação herdade e a “viver dos rendimentos”. Não é a construção do sucesso que se incensa, mas o sucesso transmitido e de há muito consumado.
Mesmo quando, como tem sido noticiado recentemente, se anunciam reservas na atribuição de heranças por parte de alguns (poucos) multimilionários. Estaremos a assistir a uma corajosa rejeição de lógicas linhagísticas que se têm vindo a perpetuar ao longo da história? Ou a um renovado sobressalto meritocrático? Segundo a famosa declaração de Warren Buffett, o montante ideal de riqueza para deixar aos seus herdeiros será “o dinheiro suficiente para os fazer sentir que podem fazer qualquer coisa e não o suficiente que dê para sentirem que podem fazer nada” (Público, 17/8/2014). Intenções piedosas! O “qualquer coisa” de Buffett é tão só a atribuição a cada um dos seus três filhos de uma fundação com dois mil milhões de dólares, assim como Bill e Melinda Gates atribuirão a cada um dos seus descendentes uns modestos 10 milhões de dólares (apesar de tudo uns trocos, se comparados com uma fortuna avaliada em 76 mil milhões!). Curiosamente foi um destes herdeiros multimilionários, Jamie Johnson (herdeiro da Johnson & Johnson), que recebeu aos 21 anos 600 milhões de dólares, que denunciou a falácia do discurso do mérito e do talento dos super-ricos no documentário Nascido Rico de 2003, sublinhando que, mesmo quando não há acesso imediato ao dinheiro por parte dos herdeiros de grandes fortunas, a sua vida foi sempre facilitada por terem frequentado as melhores escolas, terem vivido nas melhores casas e zonas residenciais, frequentarem os meios mais favorecidos e terem acesso aos melhores contactos e oportunidades, concluindo que “Apenas as famílias ricas podem fazer isto. Estas são todas formas diferentes de transferir riqueza e influência” (ibid.).
A narrativa está feita. Resta acreditar ou não nela.
Hugo Fernandez