Um professor na universidade dizia-nos que, em termos de filosofia política, tudo tinha começado e acabado na Grécia antiga. Aí tinham sido criados os principais axiomas da vida coletiva e daí provinham os ensinamentos fundamentais a ter em conta na governação das sociedades, elementos que o pensamento ocidental se limitou a ir glosando ao longo dos séculos. Por muita estranheza que esta ideia nos suscite, foi dela que me lembrei a propósito da presente “questão grega”. Com efeito, olhando para o que se passa na Europa, não podemos deixar de invocar dois dos mais importantes legados do mundo helénico: a política e a democracia. Na nossa opinião, são precisamente estas duas dimensões estruturantes da vida social que estão em profunda crise na atual construção europeia.
As políticas austeritárias implementadas pela ordem neoliberal assentam em algumas noções essenciais. Recuperam a lógica arcaica da suspensão da historicidade da ação humana, naturalizando a realidade, já não por referência à transcendência, como na época feudal ou do Antigo Regime, mas por referência a entidades que, ainda que terrenas, são tão ou mais obscuras do que aquela – os mercados. Os ditos mercados, doravante erigidos em donos absolutos dos destinos humanos, isolam o tempo presente (e condenam o tempo futuro) na falácia da inevitabilidade do statu quo, remetendo qualquer ideia de alternativa para o “caixote do lixo da história”, já que, como refere o sociólogo António Casimiro Ferreira, “os mercados são demasiado importantes para falhar e as pessoas demasiado irrelevantes para contar.” (Política e Sociedade. Teoria Social em Tempo de Austeridade, Porto, Vida Económica, 2014, p. 440). A pretendida diluição da ideia de política – entendida precisamente enquanto confronto de projetos alternativos de governação das sociedades – numa lógica económico-financeira única e, sobretudo, indiscutível, faz com que se instaure um estado permanente de exceção, indutor de precariedade, de insegurança e de medo. A esfera financeira parece hegemonizar as dimensões do real, descontextualizando as existências individuais e coletivas e tornando irrelevantes os conceitos de liberdade, solidariedade ou diversidade de opiniões que moldaram a nossa civilização. Sem perspetivas alternativas, as populações vivem aterrorizadas na espiral austeritária e tornam-se submissas aos novos poderes fáticos, transformando-se uma realidade aparentemente democrática numa lógica verdadeiramente totalitária.
A “questão grega” coloca sobretudo em causa a posição dos partidos socialistas europeus que, há trinta anos a esta parte, por intermédio do experimentalismo pernicioso da “terceira via” de Tony Blair (depressa adotada por uma coorte de pressurosos seguidores), abandonaram as referências programáticas que constituíam a sua identidade social-democrata, para se lançarem nos braços da ofensiva neoliberal, a coberto de um “pragmatismo” económico-financeiro pretensamente exigido pela dinâmica globalizadora. Abandonou-se um projeto de alternativa política, perdeu-se a capacidade de contestação ao sistema em vigor, reforçou-se o pensamento único das inevitabilidades e da defesa intransigente de determinados interesses privados. Mais. O pensamento de esquerda foi ostracizado, eliminando-se – ou castigando-se, como no caso grego – qualquer veleidade de um governo propor soluções que contrariem a política austeritária imposta pelos poderes europeus dominantes. A uma Europa subjugada ao diktat germânico, responde uma França, pela boca do seu presidente François Hollande – precisamente, um socialista – a sugerir a hegemonia do clube dos fundadores, um absurdo E6 que institucionalize a divisão entre europeus de primeira – os verdadeiros – e de segunda – o resto. Que União Europeia é esta? Será a lógica austeritária compatível com a democracia e com a construção de um verdadeiro projeto europeu baseado na solidariedade e na partilha de recursos? Na visão pessimista (ou realista?!) do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, “Uma coisa é certa, depois desta experiência, qualquer que seja o seu resultado, a Europa não será mais a Europa da paz, da coesão social e da democracia. Será o epicentro de um novo despotismo ocidental, rivalizando em crueldade com o despotismo oriental estudado por Karl Marx e Max Weber.” (Visão, 23julho2015).
E a humilhação de um povo, como aquela a que os gregos têm estado sujeitos, agravada pela recente chantagem que lhes foi imposta pelo Eurogrupo e Conselho Europeu, não é processo de construir qualquer tipo de união, muito menos de estabelecer uma ideia mínima de solidariedade entre os países, ideia que supostamente esteve na origem da construção europeia. O antigo diretor-geral do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss Kahn, em declarações ao Le Fígaro, classifica de política "mortífera" aquela que foi levada a cabo nos últimos dias, nomeadamente pela Alemanha (Dinheiro Vivo, 19julho2015). Strauss Kahn fala mesmo de um “plano selvagem" e "medidas draconianas" ditadas por "uma ideologia e não pelo interesse europeu". Lembremo-nos das consequências terríveis que as humilhações de povos têm tido na história europeia. Vamos comemorar o centenário do Tratado de Versalhes reconstituindo um cenário semelhante? Por isso, para Boaventura Sousa Santos, “O maior problema da Europa não é a Grécia. É a Alemanha. (Público, 23julho2015), sublinhando a sua irresistível vocação imperial que, se não for travada, conduzirá ao fim do projeto europeu.
A Grécia sofreu uma quebra da sua capacidade produtiva de 25%, apresenta um desemprego de 27% (50% no caso dos jovens) e uma dívida externa a rondar os 200% do PIB (cerca de 330 mil milhões de euros), logicamente insustentável, como já o próprio FMI reconheceu. Mas os sucessivos resgates impostos ao país tiveram como destino a salvaguarda da exposição dos bancos alemães e franceses à dívida pública grega, a manutenção das encomendas bilionárias de material de guerra, a coleta de juros exorbitantes e a compra do património grego por parte das potências europeias, e não o financiamento da economia grega propriamente dita, nem o suprimento das necessidades da sua população. Tratou-se sobretudo de um fabuloso negócio usurário que, ao contrário do que se quer fazer crer, não só não penalizou minimamente os contribuintes do norte da Europa, como não se destinou a assegurar “a boa vida dos gregos” – a Grécia vive uma catástrofe económica e social –, mas que certamente incentivou a especulação financeira, a corrupção, a fuga de capitais e a acumulação de lucros predadores por parte de alguns (poucos) magnatas nacionais e especialmente pelos grandes interesses económicos internacionais.
No entanto, todos estes índices econométricos não são mais que o reflexo de opções políticas. É de política, no sentido original de governo da polis, que se trata. Política entendida enquanto permanente debate de ideias e confronto de projetos e soluções para os problemas com que as sociedades se vão confrontando. A crise grega pôs em evidência o papel e importância da política contra uma racionalidade técnica e económica pretensamente omnisciente e infalível. O afamado sociólogo alemão Ulrich Beck, recentemente falecido, falava das “cinco cegueiras” da era da globalização, uma das quais é precisamente a crença de que “não se pode fazer política contra os mercados”, como se essa posição não traduzisse uma deliberada autolimitação da ação política e uma opção – obviamente política – no sentido do reforço da dimensão económico-financeira na atual governação das sociedades.
Como é fácil de ver, a manutenção de uma dívida infinita (porque impagável), ao criar assimetrias entre os países – e uma lógica de dominadores/dominados – provoca um estatuto permanente de sujeição para alguns e, ao invés, assegura a perenidade da manutenção do poder de outros. É esta a lógica atual da União Económica e Monetária, plasmada no Tratado Orçamental de 2012, e da própria União Europeia. O principal pecado do governo grego foi ter desmascarado este mecanismo de extorsão e ter proposto vias alternativas. Por isso – e só por isso – a Grécia está a ser duramente castigada.
O totalitarismo significa, como vimos, a supressão das diferenças politico-ideológicas, o aniquilamento das dissidências e o triunfo do pensamento único, da verdade indiscutível, a consagração de um qualquer estádio derradeiro da evolução política da humanidade, o “fim da história” já há muito anunciado. O historiador Rui Tavares sublinha, a este propósito, que os argumentos que presidem à ordem neoliberal constituem um enorme risco, a vários níveis, para as sociedades contemporâneas: “são perigosos porque esvaziam a possibilidade de deliberação democrática de uma sociedade plural, que encontre em si os seus próprios interlocutores, e que decida a cada momento para onde quer ir. São perigosos porque, ao escolherem critérios indiscutíveis, automaticamente esvaziam a discussão, e com ela a persuasão, que fazem de nós humanos. São perigosos porque, no fundo, substituem a democracia pela demagogia.” – para concluir, mais adiante – “Ora, a política democrática, no seu melhor […], não trata de substituir o discutível pelo indiscutível. Pelo contrário. O discutível, sempre o discutível, é que nos há de guiar.” [Esquerda e Direita. Guia Histórico para o Século XXI, Lisboa, Tinta-da-China, 2015, pp. 77 e 80-81 (itálicos no original)].
Do que não restam dúvidas é que o governo grego reforçou a sua legitimidade democrática conquistada na vitória eleitoral de 25 de janeiro de 2015, ao convocar e vencer o referendo de 5 de julho sobre as medidas de austeridade impostas pelos restantes países europeus à Grécia por quase o dobro dos votos que tinha obtido nas eleições legislativas e que levou o Syriza ao poder (61,31%). Para além de ter constituído uma lição de dignidade de um povo que recusou sujeitar-se à chantagem, propondo a solução responsável e equilibrada de uma reestruturação sustentável da dívida que permita a recuperação económica grega e – pasme-se o radicalismo! – o seu efetivo pagamento aos credores internacionais, constituiu um ato democrático extremamente raro na construção europeia. Pelo menos, fez-nos esquecer episódios ignóbeis como o da repetição do referendo irlandês para obrigar à aprovação do Tratado de Lisboa, em 2008/2009, ou o completo desprezo pelos resultados dos referendos francês e holandês de rejeição da Constituição Europeia, em 2005, recuperada em grande parte no espírito e na letra do Tratado de Lisboa, em vigor desde 2009, ou ainda pela permanente e despudorada recusa em auscultar as respetivas populações por parte da quase totalidade dos governos da União Europeia.
O que a situação grega demonstrou à saciedade poderá continuar a ser escondido da opinião pública, ou impor-se-á inexoravelmente nas próximas opções eleitorais dos europeus? A renegociação das dívidas soberanas está, pela primeira vez, na ordem do dia. E apesar do pretendido “efeito de vacina” do exemplo grego, tentando mostrar que o fracasso daqueles será o fracasso de todos os que ousarem defrontar os poderes dominantes, os próximos processos eleitorais em vários países europeus podem vir a revelar-se surpreendentes (como aconteceu, de resto, com o próprio referendo grego). O tema Europa está na ordem do dia e a crise grega teve a virtude de pôr os europeus a discutir o “estado da União”. É o próprio Alexis Tsipras que reconhece este contributo fundamental do seu governo: “Nós, com um governo de esquerda num país pequeno, criámos as primeiras divisões na hegemonia neoliberal da Europa” (Público, 1agosto2015). Dificilmente, no presente contexto, poderíamos exigir mais à Grécia. Mas, como diz Viriato Soromenho-Marques, “devemos aos gregos, e isso é imenso, o alerta iniludível que nos permitirá tentar minimizar as perdas e os danos.” (Visão, 16julho2015). E o historiador Jose Antonio Maravall ensinou-nos, por seu lado, que transformações parciais ou factos novos, ainda que de dimensão limitada e aparentemente com escassos resultados, podem induzir uma série de transformações consecutivas que, alargando o âmbito e relevância dessas ocorrências, produzem um movimento de longo alcance e uma alteração substancial do sistema instalado, pelo chamado “efeito multiplicador”. Para o autor espanhol, é precisamente este efeito que os historiadores devem ter em conta para compreender as grandes transformações (cf. Estado Moderno y Mentalidad Social, siglos XV a XVII, 2 Vols., Madrid, Ed. Revista de Occidente, 1972, pp. 588-589, 2º vol.).
Uma coisa é certa. As repercussões da “questão grega” irão necessariamente mudar a face da Europa. Em qualquer sentido que se considere. Talvez o meu professor da universidade tivesse, afinal, razão.
Hugo Fernandez