O mito ultraliberal do mercado autorregulado e sem necessidade de intervenção pública, e a constatação de que o crescimento económico não significa necessariamente desenvolvimento social, podendo, ao invés, ser indutor de pobreza, encontra o seu expoente máximo na Rússia de Vladimir Putin. A rápida e generalizada desestatização e desregulação da economia russa, numa sociedade carente de uma estrutura jurídica e institucional minimamente preocupada com garantias de coesão social, fez com que o boom económico prometido após o fim da União Soviética, não viesse a acontecer. Pelo contrário, a economia caiu para metade, a deterioração do nível de vida foi brutal, o número dos que viviam em condições de pobreza (cerca de 4 dólares por dia), aumentou de 2% para perto de 50%, enquanto os expedientes mafiosos e as privatizações generalizadas transformavam em multimilionários uma clique de poderosos, numa altura em que o governo não tinha sequer dinheiro para pagar aos pensionistas e funcionários do Estado. A liberalização da economia provocou, nestas circunstâncias, a fuga maciça de capitais e a colocação das fortunas dos oligarcas em mercados financeiros mais apetecíveis ou em paraísos fiscais mais protegidos (cf. Joseph Stiglitz, “Prefácio” a Karl Polanyi, A grande transformação, Lisboa, Edições 70, 2012, p. 73).
A Rússia ficava dependente de todo o tipo de esquemas criminosos, com a entrega dos ativos económicos a um conjunto de comparsas fiéis, sempre na expetativa de comissões e retribuições várias, através da criação de uma complexa teia de avençados – o “capitalismo mafioso” de que fala Joseph Stiglitz (op. cit., p. 77) – com consequências sociais catastróficas e sob o domínio autocrata de um novo Czar, esquecendo “os muitos indivíduos que são precipitados na pobreza, ou os muitos postos de trabalho destruídos por comparação com os criados, ou o aumento dos níveis de violência, ou a extensão do sentimento de insegurança ou de redução à impotência.” (ibid.). Ou seja, o gigante euro-asiático tornou-se um dos sistemas mais extremados de exploração capitalista, de selvajaria de mercado e de pura cleptocracia (com toda a coorte de corrupção endémica, lavagem de dinheiro, especulação financeira, violação sistemática de leis e regulamentos), exemplo paradigmático da ordem neoliberal globalizada.
Os casos relatados por João Miguel Tavares relativos ao comportamento de governantes russos são, não só verdadeiramente escandalosos, como deveras elucidativos. Conta-nos o jornalista que um anterior ministro da Defesa, Anatoli Serdiukov, teve de se demitir em 2012, porque a sua amante, funcionária no ministério, andou a vender propriedades pertencentes ao Estado a preço de saldo, algumas das quais compradas com dinheiro roubado de uma empresa estatal de manutenção de equipamentos de aviação sob a tutela do próprio Serdiukov. Por sua vez, o atual ministro, Serguei Shoigu, construiu em segredo um sumptuoso palácio de 20 milhões de euros nos arredores de Moscovo, que registou em nome da filha, e uma sua cúmplice fechou negócios no valor de 100 milhões de dólares com o próprio Ministério da Defesa. João Miguel Tavares cita, a este propósito, o economista e prémio Nobel da Economia em 2008, Paul Krugman, em artigo publicado no The New York Times (“A lavagem de dinheiro pode ser o calcanhar de Aquiles de Putin”), em que este estima que a elite russa terá bens num valor correspondente a 85% do PIB russo fora do país, dados confirmados pela ONG Transparência Internacional, que assegura que, entre 2008 e 2020 – em pleno consulado de Putin – atuais e antigos altos funcionários do Estado russo adquiriram 28 mil propriedades em 85 países (cf. Público, 19/3/2022).
Neste contexto, é útil relembrar a reflexão premonitória de Vladimir Ilyich Ulianov (Lenine) – nomeadamente na sua obra O imperialismo, fase superior do capitalismo, de 1917 – que constitui um clássico da análise marxista acerca do imperialismo, processo de acumulação capitalista à escala mundial na fase que o autor russo designou por “capitalismo monopolista”, e que a atual globalização tão bem representa. Na caracterização que faz deste processo, Lenine conclui que as potências capitalistas dividem o mundo em esferas de influência, e que essa divisão abre a possibilidade de uma futura luta intercapitalista para redividir o mundo. Foi nesse quadro, aliás, que ele identificou as causas da Grande Guerra e que o Comintern encontrou também os fundamentos da II Guerra Mundial (pelo menos até à invasão nazi da União Soviética).
O fenómeno imperialista, manifestando-se, obviamente, de formas diversas e em contextos históricos diferenciados, tem expressão matricial nas relações hegemónicas entre as superpotências e os países das respetivas áreas de influência, quer em termos de estratégias neocoloniais exploradoras e extrativistas, quer em termos de subjugação militar e da exigência de vassalagem política. É a este processo que assistimos com a presente invasão da Ucrânia pela Rússia. Para Putin, a soberania da Ucrânia é um obstáculo à restauração do seu projeto imperial pan-eslavo, autêntico “espaço-vital” russófono (a lembrar outros Lebensraum de triste memória!) baseado na agregação dos territórios de Minsk, Kiev e Moscovo. Não é por acaso que, em 2005, no discurso sobre o estado da nação, Putin declarou que “o fim da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. Para o povo russo, isto constituiu um verdadeiro drama”. Referindo-se ao abandono da Rússia por parte de milhões de habitantes dos novos países independentes, na sequência da desagregação da União Soviética em 1991, Putin empregou a expressão “tragédia humana em larga escala” (Público, 16/3/2022). Significativo! Como disse em 1994, na revista Foreign Affairs, Zbigniew Brzezinski, diplomata e Conselheiro Nacional de Segurança do Presidente norte americano Jimmy Carter, “Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império; mas com a Ucrânia subornada e subjugada, a Rússia converte-se automaticamente num império.” (Visão, 10/3/2022).
Em qualquer caso, não há imperialismos “bons” e “maus” e nenhum impulso irracional de tipo pavloviano os poderá jamais justificar. Nas justas palavras de Rui Tavares, “quem for anti-imperialista não pode ser agora outra coisa senão inimigo da estratégia de Putin e capaz de lhe contrapor outra melhor: mais libertadora, mais respeitadora das muitas identidades de que somos feitos, mais prenhe de futuro e, portanto, mais capaz de mobilizar os seus muitos milhões com uma visão positiva digna do século XXI.” (Público, 1/3/2022). Certamente a Ucrânia não é um modelo de democracia; é mesmo provável que nunca o venha a ser. Mas tem todo o direito de seguir o seu caminho como qualquer outro país soberano. E só a independência nacional e a liberdade da sua população para tomar as decisões que muito bem entenda, asseguram que tal aconteça.
Numa emissão televisiva em novembro de 2016, ao perguntar a uma criança de 9 anos onde terminava a fronteira russa, Putin teve como resposta “estreito de Bering”. Imediatamente corrigiu o seu pequeno interlocutor, retorquindo que “A fronteira da Rússia não acaba em lado nenhum”. Confessaria, mais tarde, que estava a “brincar” (Visão, 3/3/2022). Mas este lapsus linguae é revelador do pensamento do autocrata. E, como refere António Guerreiro, “Um país que olha para o passado e o vê à sua frente e não atrás de si tem de facto uma existência muito complexa, a precisar de um tratamento radical que a história acabará por lhe ministrar.” (Ípsilon, Público, 4/3/2022).
Hugo Fernandez