INTERROGAÇÕES
A consideração dos direitos fundamentais, enquanto determinação normativa e princípio de organização das sociedades, tem a sua origem na instauração do liberalismo no mundo euro-atlântico nos finais do século XVIII e ao longo do século XIX. Radica no postulado universalista da igualdade perante a lei, traduzida na igual consideração social dos indivíduos. A história política e social da modernidade não tem sido mais do que a disputa em torno do grau e das modalidades da concretização deste paradigma igualitário, ou seja, da maior ou menor materialização das aspirações democráticas então despoletadas. Esta igualdade de estatuto entre os cidadãos, manifestada nos valores da liberdade individual e da propriedade privada tem, para o pensamento dominante, expressão cimeira na economia de mercado e no desenvolvimento do sistema capitalista.
Martin Wolf, editor associado e principal comentador económico do Financial Times, na sua mais recente obra, The Crisis of Democratic Capitalism, de 2023 (tradução portuguesa da Gradiva), parte precisamente desta “simbiose”, que denomina “capitalismo democrático”, isto é, “a combinação de democracia liberal com o capitalismo de mercado” (Wolf 2023: 40). Para o autor, “A democracia e o mercado têm em comum algo fundamental: a ideia da igualdade de estatuto. Numa democracia, todos têm direito a ter voz nos assuntos públicos. Num mercado livre, todos têm o direito de comprar e vender o que possuem.” (Wolf 2023: 13). Levando esta analogia adiante, Wolf afirma: “Por mais diferentes que possam parecer um do outro, o capitalismo de mercado e a democracia liberal baseiam-se nos mesmos valores filosóficos subjacentes.” (Wolf 2023: 25), isto é, a ideia de igualdade, assente no credo individualista da liberdade. Partindo do pressuposto de uma natural desigualdade de resultados ou de realização pessoal, alega-se que “aqueles que detêm poder político são responsabilizáveis perante os cidadãos”, da mesma forma que “aqueles que participam nos mercados têm de responder às decisões dos clientes.” (Wolf 2023: 27).
A aporia essencial desta tese é que o paradigma igualitário liberal significa a exclusão de discriminações, mais do que verdadeira igualdade de oportunidades. São estas as condições do que é considerado socialmente justo (e, por isso, legítimo): igualdade no respeito e consideração individuais e não um tratamento igual, entendido enquanto distribuição igualitária – ou sequer, equitativa – de funções e recursos. Para o pensamento liberal, a noção de igualdade de oportunidades abre o caminho a que cada pessoa, sem ter em conta a sua origem ou condição existencial, possa ter as mesmas possibilidades que todas as outras de atingir os objetivos pretendidos se, para tal, apresentar a energia e talento necessários. É com este enquadramento ideológico que surge o conceito de mérito, entendido enquanto legitimador da distinção social. O sucesso pessoal passa a medir-se pela posse, sendo os bens e cargos acessíveis a quem os consiga adquirir, sem mais restrições ou entraves que a vontade e a capacidade de cada um. O mérito é o critério justo desta competição, premiando com a prosperidade aqueles que conseguem destacar-se. Consagrando a distinção social, legitima-se a desigualdade. Ficam assim estabelecidos os critérios essenciais do liberalismo que, como é sabido, têm tido uma existência perene. Será este o “fim da história” invocado, em 1989, por Francis Fukuyama? É certamente prematuro chegar a tal conclusão.
Com efeito, quando se fala da igualdade de oportunidades, há dois aspetos essenciais a ter em consideração: a igualdade de acesso, isto é, a possibilidade de (a habilitação necessária para o efeito e a não discriminação de ingresso), e a igualdade de pontos de partida, isto é, condições para (os requisitos económicos, sociais e culturais necessários para aceder às próprias oportunidades). Como se sabe, a sociedade liberal considerará com muito mais dificuldade o segundo aspeto. Ainda que a igualdade seja uma ideia central da contemporaneidade, a complexidade das questões que levanta – desde logo porque confronta outros valores considerados igualmente fundamentais – e as perplexidades que suscita, não pode deixar de originar algumas interrogações. A pobreza é uma condição existencial ou uma ordem de grandeza (neste caso de privação) relativamente aos outros? Partimos de uma circunstância individual ou de uma relação social? Se optarmos pela primeira opção, é ao pobre que assacamos a responsabilidade pela sua situação, naturalmente decorrente do desleixo, da preguiça, do vício ou de qualquer outro aspeto depreciativo. Se adotarmos o segundo critério, a pobreza é, antes de mais, uma condição social de privação resultante de um funcionamento específico da sociedade e que só nesta poderá encontrar os meios da sua mitigação ou, em última análise, resolução. Por outro lado, a propriedade decorrerá sempre de uma justa retribuição do mérito? A riqueza resultará, em todos os casos, do esforço e talento dos seus detentores? O mérito é pressuposto ou expediente ideológico de legitimação da posse? E em caso de dúvida, poder-se-á considerar a existência de uma real universalidade de direitos?
Ficou famosa a diatribe de Warren Buffett, segundo o qual “Existe guerra de classes, sim, mas é a minha classe, a classe rica, que está a fazer a guerra, e estamos a ganhar.” O que poderá contribuir para a atenuação deste conflito de interesses, a bem da esmagadora maioria da população? No âmbito da próxima cimeira do G20, que reunirá no Brasil em novembro, sob o lema “Building a just world and a sustainable planet”, foi proposta, por iniciativa do país organizador, uma contribuição mínima anual de 2% sobre as fortunas superiores a mil milhões de dólares. Este imposto, que resulta de uma tentativa de progressividade ínfima na taxação de fortunas desmesuradas – e, a bem dizer, de elementar decência na tributação e distribuição da riqueza – é o sucedâneo da famosa “Taxa Tobin”, sugerida em 1972 pelo economista norte-americano James Tobin, da Universidade de Yale, que incidiria sobre as movimentações financeiras internacionais de caráter especulativo em cerca de 0,1% e 0,5%, e que poderia levar à cobrança de muitos milhares de milhões de dólares anuais destinados a financiar políticas de desenvolvimento sustentável, de redução das desigualdades e combate à pobreza à escala mundial. Relativamente a esta iniciativa pioneira, nada aconteceu.
A sugestão brasileira permitiria tributar os 2781 bilionários do mundo (património líquido estimado em mil milhões de dólares americanos, em abril de 2024), segundo a Forbes. É o caso de Elon Musk, empreendedor sul-africano e CEO da Tesla e da SpaceX (239,6), Jeff Bezos, empresário norte-americano, fundador da Amazon (202), Bernard Arnault, magnata francês que lidera a LVMH, a maior empresa de bens de luxo (179,7), Larry Ellison, investidor norte-americano, cofundador e diretor-executivo da Oracle (171,9), Mark Zuckerberg, empresário norte-americano, fundador e CEO da Meta (163,8), Larry Page, cientista norte-americano de computação, cofundador e diretor-executivo da Google (141), Warren Buffett, investidor e acionista norte-americano, diretor-executivo da holding Berkshire Hathaway (139), Sergey Brin, cientista norte-americano de computação, cofundador da Google e acionista da Alphabet (134,6), Bill Gates, empresário e cofundador da Microsoft (131,7), ou Steve Ballmer, ex-presidente da Microsoft e dono da equipa de basquetebol Los Angeles Clippers (126,3) (Visão, 5/9/24).
A desigualdade na distribuição da riqueza, como foi amplamente demonstrado pelas análises de Thomas Piketty (Le Capital au XXI siècle, Paris, Seuil, 2013), teve um refluxo global no período entre Guerras (em especial nos EUA) e sobretudo após a II Guerra Mundial (também na Europa), contrariando uma tendência de acumulação excessiva de fortunas que vinha do século XIX e que foi retomada, na sequência das crises petrolíferas dos anos 70, com a implantação das políticas neoliberais dos consulados de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan, na década de 80 da centúria passada e que, com variantes e conivências políticas surpreendentes dos dois lados do Atlântico (por exemplo, os casos de Bill Clinton e Tony Blair) se prolongou pelos inícios do século XXI, para assumir a forma desbragada e grotesca das governações de um Boris Johnson ou de um Donald Trump. Esta evolução provocou aquilo que Susana Peralta descreve como “inexorável erosão da progressividade dos impostos”. Como refere a economista portuguesa, “As taxas marginais aplicadas ao escalão mais elevado dos rendimentos chegaram a valores acima dos 80% tanto nos Estados Unidos como no Reino Unido, entre as décadas de 40 e 70 do século passado. Seguiram-se-lhes as reformas de Reagan e Thatcher. A «Dama de Ferro» diminuiu a taxa marginal do último escalão para 60%, em 1980, e depois para 40%, em 1989; Reagan, para 50%, em 1981.” (Público, 27/9/24).
Susana Peralta cita os economistas da Universidade de Berkeley, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman que, no seu livro The Triumph of Injustice, de 2019, denunciam o facto de o sistema fiscal norte-americano se ter tornado numa “flat tax gigante”. Nos cálculos que fizeram, estes autores concluíram que a generalidade dos contribuintes norte-americanos pagam entre 25% e 28% de impostos sobre os seus rendimentos brutos, enquanto que os 400 bilionários mais ricos, pouco ultrapassam os 20%, concluindo que, “como um grupo, embora as suas situações individuais não sejam as mesmas, os Trumps, os Zuckerbergs e os Buffetts deste mundo pagam menos impostos que os professores e as secretárias”, aproveitando-se de uma ampla panóplia de expedientes de engenharia contabilística e criatividade tributária (vulgo, fraude fiscal) e de práticas correntes de pura e simples fuga aos impostos. As somas envolvidas nestes esquemas fraudulentos são muito relevantes; um estudo de 2015 do FMI, calculou que a erosão da base tributária e da transferência de lucros reduziram a receita anual de longo prazo nos países membros da OCDE em cerca de 450 mil milhões de dólares (cf. Wolf 2023: 172). Desta forma, não só desaparece qualquer expetativa de progressividade fiscal, como se elimina a mera proporcionalidade tributária.
O próprio Martin Wolf reconhece este estado de coisas, quando afirma “Uma característica dominante do período que decorreu desde o início da década de 1980 foi o aumento da desigualdade, tanto na riqueza como nos rendimentos (antes e depois dos impostos).” (Wolf 2023: 33). Invoca, para o efeito, os dados do observatório “Income Inequality” da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) que, no seu relatório “Inequality and Poverty” de 2020, conclui que “A desigualdade de rendimento nos países da OCDE está no seu nível mais alto do último meio século.”, alertando para a circunstância de que “A incerteza e os receios de declínio social e exclusão atingiram as classes médias em muitas sociedades.” (Wolf 2023: 92). Sublinha, a este propósito, que um dos aspetos mais impactantes para o aumento das desigualdades é o do crescimento desmesurado dos níveis de remuneração do topo da escala social. De acordo com Deborah Hargreaves, do High Pay Center, a relação entre o salário médio dos principais executivos e o salário dos funcionários no Reino Unido foi de 129 para 1 em 2016, um aumento significativo de 48 para 1 em 1998, sendo que, no caso dos EUA, a proporção correspondente foi de 347 para 1 em 2016, subindo de 42 para 1 em 1980 (cf. Wolf 2023: 94), tendência que se tem vindo a agravar desde então. Como refere Wolf, “esses novos níveis de remuneração permitem que um executivo acumule riqueza dinástica em muito poucos anos.” (ibid.). Será viável a manutenção de sociedades com semelhante grau de desigualdade? Ou teremos que acompanhar o desabafo do crítico literário e filósofo norte-americano Fredric Jameson, quando afirmou, no seu livro Seeds of Times, de 1994, que “É, para nós, hoje, mais fácil a destruição da natureza e do planeta Terra do que o fim do capitalismo.”?
Verdadeiramente premonitória foi a preocupação expressa pelo sempre sagaz Alexis de Tocqueville, no programa parlamentar que redigiu em 1847, quando chamou a atenção precisamente para o facto de que “La Révolution française, qui a aboli tous les privilèges et détruit tous les droits exclusifs, en a pourtant laissé subsister un, celui de la propriété.” (citado por Patrick Savidan, no Pósfacio a Crawford B. Macpherson, La Théorie Politique de l’Individualisme Possessif, Paris, Gallimard, 2004, pp.540-541). Para o pensador político e historiador francês, dotado de um notável sentido prospetivo e denunciando o que qualificou de “velha doença democrática”, será este o “grande campo de batalha” político e social futuro: “Bientôt, ce sera entre ceux qui possèdent et ceux qui ne possèdent pas que s’établira la lutte politique; le grand champ de bataille sera la propriété, et les principales questions de la politique rouleront sur des modifications plus ou moins profondes à apporter au droit des propriétaires. Nous reverrons alors les grandes agitations publiques et les grands partis.” (ibid.). O presente aí está para o demonstrar.
Hugo Fernandez