Publicado em 1574 no contexto das guerras religiosas em França, o Discurso sobre a servidão voluntária, de Etienne de la Boétie, foi escrito “em honra da liberdade contra os tiranos”, como afirmou o seu grande amigo e colega no Parlamento da Guyenne, em Bordeaux, Michel de Montaigne. Ao longo dos tempos, esta obra foi entendida como uma condenação firme de toda a dominação arbitrária e absoluta, um “hino à liberdade”, nas palavras do político e filósofo francês Lamennais, já no século XIX. E, nos nossos dias, a professora emérita de filosofia jurídico-política, Simone Goyard-Fabre, na introdução à obra que consultámos, não deixa de sublinhar a enorme modernidade da reflexão do parlamentar bordelês.
La Boétie denuncia essa espécie de patologia coletiva que leva os povos a abandonarem-se ao jugo dos poderosos, mesmo contra os seus interesses e em prejuízo da sua identidade. Tal realidade decorre da infeliz conjugação das fraquezas da natureza humana e do efeito perverso que os tiranos e seus cúmplices conseguem produzir nos próprios subjugados. E essa conjugação resulta numa verdade tristemente cristalina: o poder de uns poucos – os dominadores – nunca poderá induzir o bem comum e ser expressão da vontade geral dos dominados, pelo simples facto de que o domínio dos primeiros só existe em função da espoliação destes últimos. Só que, por paradoxal que isso seja, muitos dominados parecem não conseguir enxergar tal circunstância.
É isso que faz com que a servidão seja voluntária. Para Boétie, “c’est le peuple qui s’asservit, qui se coupe la gorge, qui, ayant le choix ou d’être serf ou d’être libre, quite la franchise et prend le joug, qui consente à son mal, ou plutôt le pourchasse.” (Étienne de la Boétie, Discours de la servitude volontaire, Paris, Flammarion, 2010, p. 136). A lucidez desta constatação, expressa à distância de quinhentos anos, não pode deixar de nos interpelar e, simultaneamente, de nos chocar. É que, como diz Simone Goyard-Fabre, “ils ne s’aperçoivent même pas que le maître n’a pouvoir sur eux que par eux.” (ibid., p. 89). As populações transformam-se no instrumento da sua própria subjugação, colocando-se ao serviço dos dominadores, reforçando, por esse ato de inconsciência coletiva, o poder daqueles. Para se cumprir este desiderato, o autor quinhentista denuncia sobretudo a força atávica da tradição, “a inércia que engendra o hábito”. Como diz La Boétie, “On ne plaint jamais ce que l’on n’a jamais eu” (ibid., p. 150). O costume obnubila o discernimento e mata qualquer desejo de mudança. Daí o comentário certeiro de Simone Goyard-Fabre: “accoutumé aux ténèbres, il ne désire même plus la lumière”; a bem dizer, “L’homme asservi n’a plus la nature d’un homme.” (ibid., p. 90).
O viver poucochinho, o ater-se à conservação da miséria quotidiana, sem alma nem ambição, no receio de que qualquer mudança piore as coisas, a submissão bovina aos poderes fáticos, o medo do desconhecido, o não ousar dizer não, o cultivo da mediocridade – aquilo que a jornalista Alexandra Lucas Coelho descreve como “uma cultura agradecida, decorativa ou ufanista.” (Público, caderno 2, 4outubro2015) – é, nos dias que correm, a forma mentis de muita, de demasiada gente.
Quando as pessoas se aperceberem que até já perderam a sua dignidade, aí será tarde de mais. Deixaram de existir. São dispensáveis e serão dispensadas. Atentemos pois na sábia sentença de La Boétie, nesse longínquo século XVI: “Soyez résolus de ne servir plus, et vous voilà libres” (Étienne de la Boétie, Discours de la servitude volontaire, Paris, Flammarion, 2010, p. 185).
Hugo Fernandez