Como todas as situações de dominação hegemónica, a ordem neoliberal globalizada recusa ser vista enquanto tal. A sua soberania passa por ser um imperativo natural de ordenação das sociedades, que corresponde a uma espécie de destino inevitável da existência humana; aquele mesmo que está na base do célebre aforismo “o que tem de ser, tem muita força”. Ora a história humana já há muito que demonstrou ser uma – essa sim inexorável – sucessão destes supostos fatalismos que, no seu devir, desmentem a cada passo as certezas e imperativos que antes eram tidos como absolutos. A recorrente possibilidade da recomposição da vida em sociedade segundo moldes distintos constitui, afinal, a maior das virtudes (e o mais insuperável fascínio) da crónica da humanidade.
Convém precisar que o poder hegemónico não é menos poder pelo facto de substituir a pura e simples intimidação e coerção físicas, próprias do domínio totalitário, pela capacidade acrescida do convencimento e persuasão, isto é, da influência doutrinária. Sendo igualmente exercida de forma intensa e constante, fá-lo sem o recurso direto e ostensivo à violência, o que lhe empresta não só uma aura de legitimidade, como lhe permite alcançar um razoável consenso, induzido pela passividade (ou melhor, alienação) da maioria da população. A defesa dos interesses dos grupos sociais dominantes passa, assim, a traduzir as aspirações da generalidade da população, pelo enviesamento ideológico da sua relação com a realidade. Universalizando e naturalizando o poder, este torna-se invisível e, nessa medida, virtualmente inexistente. A defesa da ordem instalada é entendida como sendo do interesse do conjunto da sociedade, refletindo o que aparenta ser o “senso comum”. Cumpre-se, afinal, o mesmo objetivo de dominação que a palavra grega egemonia pressupunha (“direção suprema”), embora difiram os meios utilizados para atingir tal desígnio.
Merece, a este propósito, especial reparo a intervenção de Cavaco Silva no encerramento do Conselho da Diáspora nos finais do passado mês de dezembro. Não por qualquer relevância do personagem em questão ou do areópago onde discursou. Mas por constituir um exemplo acabado da mistificação ideológica a que fizemos referência. Apontando a crise grega e a negociação do terceiro resgate a este país como "exemplo que em matéria de governação a realidade acaba sempre por derrotar a ideologia", Cavaco Silva vincou a necessidade de “pragmatismo” na ação da União Europeia. Como se este “pragmatismo” fosse uma opção ideologicamente inócua e como se a “realidade” e a “ideologia” não estivessem inextricavelmente ligadas! Centrado na sua magistral ignorância e com a desmesurada sobranceria dos possidónios, para Cavaco, a realidade é linear e não admite escolhas. Como ele próprio um dia afirmou, perante a mesma informação, duas pessoas não podem deixar de ter a mesma opinião; é a lógica imbecil do “nunca me engano e raras vezes tenho dúvidas”. A realidade é única e não permite diferentes interpretações. Qualquer outra atitude não passa de “ideologia”, falsa por definição, indesejável por convicção. Como se a realidade não fosse enformada por construções ideológicas alternativas, como se o mundo não fosse moldado por projetos de sociedade distintos, como se o próprio Cavaco não se filiasse numa corrente político-ideológica perfeitamente identificável. O que é próprio de uma ideologia é existir precisamente em relação, em confronto, com outras, como nos ensinaram, há muito, Karl Marx ou Karl Mannheim.
Um conhecimento elementar de filosofia ou ciência políticas são suficientes para refutar este tipo de desfaçatez. Basta consultar, por exemplo, a recente obra Ideologias políticas contemporâneas, coordenada pelo professor de Filosofia Política da Universidade do Minho, João Cardoso Rosas (Coimbra, Almedina, 2013), cujo parágrafo inicial é lapidar: “Não existe ação política sem ideologia. A ideologia política não é algo de opcional, uma coisa que podemos ter ou não, à qual podemos renunciar em nome do pragmatismo ou da tecnocracia. Esse mesmo pragmatismo ou tecnocracia é sempre uma forma de ideologia não assumida. Aliás, os discursos que rejeitam explicitamente a ideologia são, não raro, os mais dogmáticos de todos, aqueles em que a ideologia está mais enquistada enquanto falsa consciência da realidade.” (p. 7). Fica assim desmascarada aquilo que o afamado jornalista britânico Owen Jones muito apropriadamente designa por “pretensão à levitação social e ideológica”, a propósito do pensamento tecnocrático no ensino universitário da economia. [cit. Luís Bernardo (org.), Correntes invisíveis – neoliberalismo no séc. XXI, Lisboa, Deriva/Le Monde Diplomatique (ed. port.), 2015, p. 99].
A dominação hegemónica e a submissão ao statu quo traduzem-se numa combinação de conformismo, fatalismo e ceticismo. Conformismo porque a intensidade da dominação é, como vimos, diretamente proporcional à sua opacidade e invisibilidade. Fatalismo porque a ordem neoliberal é exemplarmente expressa no mantra “there is no alternative”, em que qualquer mudança é vista como inviável e mesmo prejudicial à generalidade dos interesses da sociedade. Ceticismo porque a ostracização sistemática das opiniões divergentes e a impossibilidade efetiva (não formal ou episódica, mas real e estratégica, isto é, numa proporção que possibilite, de facto, confrontar o poder instalado – e aqui os meios de comunicação social têm enormes responsabilidades na assunção da sua função original de contrapoder), fazem com que as alternativas sejam olhadas com desconfiança, preferindo-se sempre os equilíbrios da submissão aos desafios da liberdade.
Mas com certeza que há alternativas. Não por qualquer idealismo voluntarista. Mas porque ao longo da história da humanidade, os becos sem saída parecem suceder-se e, no entanto, passamos sempre a outra fase. Depois do “fim da história”, esta, naturalmente, prossegue. O que há uns anos parecia politicamente impossível, torna-se politicamente inevitável. Como disse o recém-eleito líder dos trabalhistas britânicos, Jeremy Corbyn, “Não temos de ser injustos, a pobreza não é inevitável. As coisas podem mudar e vão mudar.” (I, 14setembro2015).
Hugo Fernandez