No artigo que assina na Visão (2/2/23) e que servirá de base ao presente texto, o jornalista Paulo Santos cita dados da Global Wealth Report segundo o qual há 1% de portugueses que controlam um quinto da riqueza do país. Em contrapartida, a metade mais pobre da população não detém mais de 6,5% dos bens nacionais. Esta concentração da riqueza em Portugal acompanha, de resto, a enorme desigualdade na distribuição dos recursos a nível mundial. Nos EUA, um dos países mais desigualitários do mundo, 1% de indivíduos possui mais de um terço da sua riqueza. Em números publicados o ano passado, oito das 10 maiores fortunas mundiais são detidas por norte-americanos, totalizando a soma astronómica de 807 mil milhões de euros (Visão 17/2/2022). Com base no ranking das maiores fortunas portuguesas da revista Exame, há pelo menos sete famílias que acumulam uma fortuna superior a mil milhões de euros.
Trata-se de um fenómeno sistémico que o reputado economista francês Thomas Piketty apelida de “capitalismo patrimonial” e que se traduz, a uma escala nunca antes vista, na apropriação continuada e exponencial de riqueza nas mãos de uns poucos em detrimento do bem-estar geral. É um novo patamar da exploração capitalista induzido pelo neoliberalismo globalizado. Nas elucidativas palavras de Jean-Louis Bourlanges, atual presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional Francesa, resumindo a política económica e social protagonizada por Emmanuel Macron quando acedeu à presidência de França, em 2017, “Objetivamente, os problemas deste país implicam soluções favoráveis aos altos rendimentos” (cit. in Serge Halimi, “Um homem contra um povo”, Le Monde Diplomatique ed. portuguesa, fevereiro de 2023). Não se podia ser mais claro!
Os dados da análise do Global Wealth Report pecam, aliás, por defeito, uma vez que se baseiam nos fluxos de capital e participações sociais em empresas, não abrangendo uma parte significativa da fortuna das famílias em causa, como propriedades, bens imobiliários ou objetos de arte. Tomando em conta o relatório divulgado há cerca de um ano pela OCDE, 5% da população portuguesa controlaria 42% da riqueza nacional. Tal é o resultado da proteção despudorada de sucessivos governos e das suas políticas económicas ultraliberais (nomeadamente em termos da legislação laboral), de uma fiscalidade extremamente permissiva – ou mesmo, omissa – sobre os rendimentos e bens, e das vantagens dos paraísos fiscais (quando não da pura e simples fuga ao fisco). É o caso das empresas portuguesas do PSI20 que têm sede na Holanda e que, antes da pandemia, distribuíram mais de dois mil milhões de euros em dividendos aos respetivos acionistas, em detrimento do pagamento devido de impostos em Portugal. Os Países Baixos constituem, aliás, um caso paradigmático: “A Holanda é responsável pela perda anual de entre dez e 15 mil milhões de euros por parte dos outros Estados membros da União Europeia, em impostos sobre as empresas”, pode ler-se no relatório Tax Justice Network.
Esta concentração de riqueza é de tal maneira escandalosa, que as denúncias vêm das vozes mais insuspeitas. Numa missiva enviada à Cimeira de Davos, Sandrine Dixson-Declève, vice-presidente do conservador Clube de Roma, não hesita em afirmar que “O aumento do custo de vida, a estagnação dos salários e a pobreza duradoura, numa conjuntura de recessão iminente, contribuem cada vez mais para que a desigualdade atinja níveis tão extremos que se podem tornar uma ameaça à democracia”, acrescentando, “Se valorizamos a democracia, o mundo deve passar por uma transformação económica. Durante anos permitiu-se o crescimento desenfreado, o que abriu um abismo entre os super-ricos e o resto da sociedade. É chegada a hora de resolver o problema.”
Ao impingirem-nos um estado permanente de falta de recursos e de crise, há sempre algo que é omitido. Por isso, quando se diz que não há dinheiro, custa muito a aceitar.
Hugo Fernandez