É recorrente, no pensamento liberal dominante, a crítica a Karl Marx, por ter aventado a ideia de que, no sistema capitalista, se verifica uma tendência para a queda da taxa de lucro – a relação entre o lucro e o capital investido – ao longo do tempo, fruto da concorrência desenfreada entre os próprios capitalistas pela obtenção do máximo de benefícios. Essa mesma queda seria, na visão marxista, responsável pelas crises periódicas do desenvolvimento do capitalismo e poderia levar, a prazo, ao seu colapso. O principal recurso a que os capitalistas recorrem para contrariar tal tendência é o da desvalorização do trabalho, isto é, o aumento da exploração dos trabalhadores no processo produtivo pela compressão dos salários e a intensificação do ritmo e extensão dos horários de trabalho.
À época, ou seja, a segunda metade do século XIX, os padrões existentes da produção capitalista, levaram a um empobrecimento acentuado da classe trabalhadora, não só por via do aumento da exploração no processo de produção, como por efeito da grande quantidade de mão-de-obra disponível que desempenhava, neste contexto, um papel essencial, porque era este “exército industrial de reserva” que garantia um fluxo permanente de extração da mais-valia e de incremento do valor apropriado pelos capitalistas – ou seja, dos lucros – à custa da degradação da condição dos trabalhadores. Por isso, para Marx, o pauperismo não era um fator fortuito ou episódico do sistema capitalista, mas constitui uma sua característica sistémica.
Alegam os pensadores liberais que, ao longo da evolução do capitalismo, não só o processo de pauperização não se verificou – pelo menos de forma continuada – como houve uma efetiva melhoria das condições de vida da generalidade da população por via do próprio aumento da capacidade consumo e de produção. Criticam mesmo Marx, século e meio depois, por não ter previsto tal situação, rejeitando liminarmente todos os contributos que o autor germânico deu para a compreensão dos mecanismos de funcionamento do sistema capitalista. Reconhecendo, de então para cá, as enormes alterações do sistema produtivo, antes de mais pela gigantesca evolução tecnológica verificada, com o uso extensivo e intensivo de máquinas e equipamentos cada vez mais sofisticados, bem como a incorporação estratégica dos resultados do progresso científico no processo produtivo ao serviço da acumulação capitalista, escamoteiam convenientemente o contributo que a dura luta dos próprios trabalhadores e suas organizações tiveram na conquista dessas melhorias, fruto da progressiva consolidação de conceções de justiça social e de democracia na vida das sociedades.
Chegados aqui, e como tem sido amplamente demonstrado pelo conhecido economista francês, Thomas Piketty (cf. sobretudo, Le Capital au XXI siècle, Paris, Seuil, 2013), a tendência geral é para que se verifique uma efetiva baixa de valor da força de trabalho, se tivermos em conta a perda de poder de compra dos salários relativamente ao valor das mais-valias do capital. Com efeito, a enorme disparidade entre o aumento da riqueza nacional e a renda dos capitalistas agravou-se exponencialmente no último quartel do século XX, evolução sintetizada na fórmula avançada por este autor – r>g – que significa que o rendimento de capital é maior que a taxa de crescimento do rendimento nacional, sendo que r é o rendimento do capital – medindo os proventos anuais de um capital, qualquer que seja a forma jurídica que tomam esses rendimentos (lucros, juros, rendas, dividendos, royalties, mais-valias, etc) – e g a taxa de crescimento da economia, equivalente ao crescimento do rendimento nacional. Quanto mais a taxa de rentabilidade do capital exceder a taxa de crescimento da economia (r>g), mais a riqueza se acumula no topo e mais desigual é a sua repartição. Quando a taxa de crescimento da produção mundial se situava, no final da primeira década do século XXI, entre 1,5-2% em média e a taxa de rendimento puro do capital (antes dos impostos), 4,5-5% em média, com tendência para aumentar esta discrepância (2013, op. cit., p. 561), isso dá-nos bem a medida não só da extrema desigualdade na distribuição de riqueza da atual fase de exploração capitalista – que Piketty designa por “capitalismo patrimonial” – como para a grave distorção que induz no funcionamento das nossas sociedades. A tendência é, assim, para que os trabalhadores se apropriem de cada vez menos parcelas da riqueza produzida, isto é, fiquem mais pobres.
Num livro recente (Thomas Piketty, Natureza, Cultura e Desigualdades, Lisboa, Objectiva, 2024), o economista francês reitera as conclusões já avançadas, traçando um quadro sombrio do cenário mundial. Analisando a dimensão da parcela dos 50% mais pobres no total do rendimento nacional, essa percentagem limita-se aos 5% ou 6% nos países mais desiguais do mundo (por exemplo, a África do Sul) – ou seja, o rendimento médio desta população é apenas um décimo da média nacional – enquanto que nos países mais igualitários do norte da Europa se situa nos 20% ou 25% (2024, op. cit., p. 24). Se nos referirmos à distribuição da propriedade (património imobiliário, financeiro e empresarial) as disparidades ainda são maiores do que as relativas à distribuição do rendimento. Como refere Piketty, “Em termos de rendimento, os 10% mais ricos oscilam entre 25% e 70%, na Suécia e na África do Sul, respetivamente. Em termos de património, a percentagem dos 10% mais ricos situa-se sempre entre 60% e 90%. Por outro lado, enquanto a percentagem dos 50% mais pobres varia entre 5% e 25% no que toca ao rendimento, quando se trata de património, é sempre inferior a 5%.” (2024, op. cit., p. 27). Por exemplo, na América Latina, os 10% mais ricos detêm 77% do património das famílias, em comparação com 1% dos 50% mais pobres; nos EUA, a proporção é de 72% para 2% (cf. 2024, op. cit., pp. 28, 41). Se nos limitarmos ao capital empresarial e aos meios de produção, a concentração é quase absoluta: a quota parte dos 10% mais ricos é de 80%, 90% ou mais, enquanto a dos 50% mais pobres é praticamente inexistente (cf. 2024, op. cit., p. 30). Se nos períodos de pós-guerra do século XX (em especial no pós 2ª Guerra Mundial), foi possível verificar-se alguma atenuação das desigualdades existentes por intermédio da implementação dos mecanismos de proteção social do Estado-providência no mundo desenvolvido (sobretudo na relação entre os 10% mais ricos e os 40% das classes intermédias), a deriva neoliberal implementada a partir da década de 80 e agravada com o movimento da globalização económico-financeira na transição para o século XXI, veio firmar a concentração extrema da riqueza a que atualmente assistimos.
Acresce um ponto fundamental, sublinhado por Piketty; é que “as questões da desigualdade e dos desafios climáticos e ambientais estão intimamente ligados. Não é possível conceber uma solução credível para o desafio do aquecimento global sem uma redução drástica das desigualdades e uma nova era de evolução para uma maior igualdade.” (cf. 2024, op. cit., p. 91). Em termos globais, a América do Norte (EUA e Canadá) é responsável por mais de 55% das emissões de gases poluentes, seguida da Europa e da China. Enquanto a média global das emissões por cada um dos 7 mil milhões de humanos é de cerca de 6 toneladas de carbono, na América do Norte ascende a 54 toneladas (cf. 2024, op. cit., pp. 92-93). Da mesma forma, as desigualdades existentes relativamente aos grupos já referidos de rendimento e riqueza são flagrantes. Segundo os dados do Relatório sobre a Desigualdade Mundial 2022, na Europa, os 50% mais pobres, produzem cerca de 5 toneladas de carbono e os 10% mais ricos emitem cerca de 29 a 35 toneladas por pessoa, enquanto que nos EUA esse valor já ultrapassa as 70 toneladas (cf. 2024, op. cit., pp. 94-95).
Tendo em conta esta situação, o ministro das Finanças brasileiro, Fernando Haddad, conseguiu que a declaração final da reunião dos ministros das Finanças do G20, a ter lugar no Brasil a 18 e 19 de novembro próximo, incluísse princípios de colaboração internacional no domínio da justiça tributária, avançando com a proposta da cobrança de uma taxa mínima de 2% aos multimilionários, taxa essa que permitiria a arrecadação anual de 250 mil milhões de dólares destinada ao combate à pobreza e às alterações climáticas. Os EUA, que têm 800 dos cerca de 2700 multimilionários do mundo (segundo a Forbes) já veio rejeitar taxativamente tal intenção, ao declarar, pela voz da sua secretária do Tesouro, Janet Yellen, que “A política tributária é muito difícil de coordenar internacionalmente e não vemos necessidade, nem achamos desejável, tentar negociar um acordo internacional sobre isso.” (Público, 2/8/2024).
A este propósito, o jornalista António Rodrigues cita o relatório da Oxfam, Igualdade Climática: um planeta para os 99%, de 2019 (o último ano antes da pandemia) em que se constata que os 1% mais ricos do planeta gerou a mesma quantidade de emissões de carbono que os 5000 milhões de pobres. Aliás, as viagens de jatos privados destes super-ricos, de que se destaca Elon Musk, contribuem para mais de metade das emissões de CO2 do transporte aéreo. Para António Rodrigues, “Muitos ricos acreditam que vivem num planeta diferente. Ou então, por indiferença, incúria ou malvadez não se preocupam com a suja pegada que deixam no planeta, nem com a subida da temperatura, nem das águas. […] Ou seja, esses 77 milhões de pessoas financiaram o luxo das suas vidas com a morte de mais 1,3 milhões de pessoas por doenças associadas ao calor.” Para o jornalista, “Já não se trata de os ricos pagarem a crise, os ricos tornaram-se a crise. Para pô-lo de uma forma fácil de transmitir pelas redes sociais: os ricos são o cancro do planeta.” (Público, 2/8/2024). Não se podia ser mais claro.
Thomas Piketty conclui o estudo que temos citado com a seguinte afirmação: “a partir do momento em que as consequências climáticas se fizerem sentir de forma muito mais palpável na vida de todos, é possível que as atitudes em relação ao sistema económico se alterem muito rapidamente na Europa e no resto do mundo.” (cf. 2024, op. cit., p. 97). Será?
Hugo Fernandez