O título do presente texto é uma expressão genial tomada de empréstimo de António Guerreiro, na sua habitual rubrica “Estação Meteorológica” do Ípsilon (suplemento do Público, de 8/jan/2016), quando nos fala do “refrão neoliberal que convida cada indivíduo a transformar-se em empreendedor de si mesmo (um «Eu, S. A.»).” Esta é a ideologia mercantilizada do neoliberalismo triunfante.
A ideia liberal de que o mercado gera mais riqueza para todos, reforçando, com isso, a liberdade individual, é uma falácia que se transformou em doxa. Primeiro porque coloca os intervenientes no mercado – quer enquanto produtores, quer enquanto consumidores, quer na sua interação uns com os outros – ao mesmo nível, isto é, com as mesmas possibilidades à partida, o que é manifestamente falso, dada a própria desigualdade de condições engendrada pelo sistema de exploração capitalista. Em segundo lugar, porque transforma (por artes mágicas!) o interesse próprio em mecanismo de virtude social, a busca intencional do lucro em padrão de distribuição automática – a famosa “ordem espontânea” de que falava o economista austríaco Friedrich Hayek – do qual todos beneficiarão, segundo o princípio de “deixar o mercado funcionar e deixar também que o prémio que cada um obtém seja apenas definido pelo valor que cada um paga, voluntariamente, pelo serviço do outro de forma legítima, isto é, sem que ninguém ultrapasse a lei.” (Orlando Simões, “Liberalismo”, in João Cardoso Rosas e Ana Rita Ferreira (org.), Ideologias políticas contemporâneas, Coimbra, Almedina, 2013, p. 135), como se a relação que resulta da variabilidade (em quantidade e qualidade) de bens postos à disposição das pessoas e a disparidade dos meios para os adquirir (quer de possibilidades de acesso, quer de posses para o efeito) fosse uma simples fantasia.
Acresce um outro problema a esta litania mercantilizada. O mercado, entendido nos termos liberais, em vez de reforçar as interações sociais e a coesão das comunidades, isola os indivíduos na busca incessante do proveito próprio – o “individualismo possessivo” de que falava o cientista político canadiano Crawford Macpherson –, atomizando as sociedades e aniquilando o próprio indivíduo e a sua liberdade. Na competição pelo sucesso, cada um passa a ser inteiramente responsável pela sua situação (como se vivesse no vácuo) e assume todas as culpas do seu fracasso. Regressamos, assim, à barbárie das arenas romanas e à pungente saudação dos gladiadores, “Ave, Caezar, morituri te salutant” (“Ave, César, aqueles que vão morrer saúdam-te”). Este é que é o verdadeiro “caminho da servidão” a que Hayek se referia num sentido exatamente oposto.
O que a fase contemporânea do capitalismo demonstra é a transformação das sociedades com economia de mercado em “sociedades de mercado”, como as denomina o filósofo político norte-americano Michael Sandel no seu livro What money can’t buy. The moral limits of markets, Cambridge, Harvard University Press, 2012 (trad. port., Presença, 2015), por via da total mercantilização da vida coletiva e das existências individuais. São múltiplos os exemplos aí apresentados, desde os prosaicos 2 dólares oferecidos aos alunos com uma taxa de sucesso reduzida para os obrigar a ler um livro, ou pagar a alguém para guardar lugar numa fila (por 15 a 20 dólares por hora há empresas que se dedicam ao ramo, contratando sem-abrigos para a porta do Congresso americano para quem queira assistir às sessões), ou pagar até 8 dólares por dia para ter acesso às faixas de rodagem prioritárias e circular com mais rapidez, ou alugar espaço no corpo (testa, cabelo, ou outra!) para publicidade (pode ultrapassar os 700 dólares), ou pagar uma cela de prisão mais cómoda por 82 dólares por noite, a casos bem mais imorais e obscenos como o pagamento de chorudas maquias para assegurar a entrada em universidades prestigiadas sem possuir os requisitos académicos para o efeito, pagar o acesso a bens e serviços de atendimento prioritário, açambarcar e revender senhas para consultas médicas ou bilhetes para espetáculos, comprar o direito de abater espécies animais protegidas, incentivar a prática de casamentos forjados, recorrer a barrigas de aluguer ou esquemas de adoção em famílias carenciadas ou países pobres, comprar seguros de vida de pessoas idosas ou doentes, pagando os prémios anuais enquanto as pessoas forem vivas, para beneficiar dos respetivos reembolsos após a sua morte, pagar o direito de imigração para os EUA por 500 mil dólares (exatamente o mesmo expediente dos famosos vistos gold do governo de Passos Coelho e de Paulo Portas), tornando assim desejáveis indivíduos que podem ser altamente perniciosos para a coletividade, fomentar o marketing municipal na atribuição do nome de marcas comerciais e patrocinadores privados a edifícios, monumentos e infraestruturas públicas ou zonas emblemáticas das cidades, e todo o tipo de negócios que o empreendedorismo mais descabelado tem engendrado.
De facto, uma sociedade que aceita que tudo se vende e que tudo se compra, que atribui um preço a todos os atos do quotidiano, é moralmente repugnante e eticamente insana, recordando-nos o exemplo aduzido pelo historiador Luís Bernardo da “perda da capacidade coletiva de atribuir valor sem recurso a metáforas contabilísticas.”, na ausência de “outros modos de valoração que não se refiram ao mercado” [Luís Bernardo (org.), Correntes invisíveis - neoliberalismo no séc. XXI, Lisboa, Deriva/Le Monde Diplomatique (ed. port.), 2015, pp. 192-193], pelo menos com a eficácia desejável na contestação ao modelo hegemónico. Quando se assiste a esta discriminação social assente na maior ou menor capacidade financeira ou predisposição para pagar, entramos naquela lógica societária que, muito apropriadamente, Sandel designa por “transacionar em moralidade” (op. cit., pp. 96-97).
Um caso recente veio reavivar esta problemática. Martin Shkreli, o multimilionário de 32 anos, considerado “o homem mais odiado da América”, tem como salutar negócio comprar os direitos dos medicamentos há muito no mercado e subir drasticamente os seus preços. É o caso de um medicamento para tratar doenças infeciosas (usado, por exemplos, em doentes com HIV), cujo preço por comprimido era de cerca de 13,5 dólares, e que este magnífico empreendedor aumentou para 750 dólares. Acusado de total falta de escrúpulos e do mais elementar sentimento de humanidade, Shkreli defendeu-se, alegando que deveria ter aumentado ainda mais o preço pois “Os meus investidores esperam que eu maximize os lucros” (Público, 28/12/2015). Tudo legal, seguindo a estrita lógica concorrencial do “mercado livre”. É este o mundo em que vivemos!
Da mesma forma, não causa qualquer embaraço ao pensamento hegemónico neoliberal a circunstância de que as 62 pessoas mais ricas do mundo detenham 1,76 biliões de dólares (valor equivalente ao PIB do Canadá!), correspondente a idêntico montante possuído por 3,6 mil milhões de pessoas (que representam a metade mais pobre da população mundial), concentrando ainda mais a riqueza do que acontecia em 2010, quando esta relação era entre 388 bilionários e igual porção dos mais carenciados, conforme foi denunciado pela ONG britânica Oxfam em recente relatório feito a partir dos dados do banco helvético Credit Suisse (Diário de Notícias, 19/1/2016). O brutal agravamento da desigualdade social revelado por estes números – que não sofreram qualquer contestação – explica, aliás, que a riqueza detida por apenas 1% da população com mais rendimentos tenha superado em 2015, pela primeira vez, a riqueza dos restantes 99%. A Oxfam refere que a simples taxação dos paraísos fiscais permitiria um encaixe anual de 174 biliões de euros, o que certamente contribuiria para a promoção de maior justiça social a nível planetário, se para isso houvesse vontade.
Mas como é possível que tal estado de coisas perdure? Atentemos, a este propósito, nas avisadas palavras de José Pacheco Pereira: “Uma coisa a esquerda deve compreender com toda a clareza: a direita venceu a batalha ideológica nos últimos anos. (Público, 16/1/2016). Para o historiador, esta “É uma vitória muito perigosa e pegajosa, porque se coloca no terreno daquilo a que os sociólogos chamam “background assumptions”, molda o nosso pensamento sem trazer assinatura, parece a “realidade” quando é uma construção ideológica.” E isso torna tudo mais complicado e difícil de reverter.
Hugo Fernandez