Quando, nos inícios de maio passado, Marcelo Rebelo de Sousa elogiou a prestação económica do Governo de António Costa, confirmando a sustentabilidade das contas públicas, a ex-ministra das Finanças do PSD, Maria Luís Albuquerque fez questão de declarar que “o Presidente da República não é uma entidade independente e técnica, porque não é suposto ser, e eu não citaria o Presidente da República neste contexto”, preferindo ouvir outras entidades mais “independentes”, como “a UTAO, o Conselho de Finanças Públicas, as próprias agências de rating, a Comissão Europeia ou o Fundo Monetário Internacional” (Dinheiro Vivo, 6/5/2017). Certamente foi esta anunciada independência e tecnicidade que a fez, enquanto representante política de Portugal, ter alinhado com o ultraortodoxo ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble (apenas a Espanha esteve também ao lado de Schäuble), contra o acordo feito entre a própria chanceler Angela Merkel e o primeiro-ministro grego Alexis Tsipras, em fevereiro de 2015, para uma reformulação dos termos do programa de financiamento à Grécia, país que se encontrava praticamente em situação de insolvência e a braços com uma gravíssima crise social, episódio que é relatado no mais recente livro do ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, Adults in the Room: my Battle with Europe’s Deep Establishment (cf. Público 12/6/2017). Esta posição da ministra portuguesa e do homólogo espanhol é tanto mais incompreensível – a não ser por motivos claramente ideológicos – quanto o que estava em cima da mesa era a possibilidade dos países sujeitos a resgate financeiro poderem usufruir de algum alívio na carga imposta pelos memorandos da troika aos seus povos. Lamentável. Todos nos recordamos, aliás, da desfaçatez com que Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, reagiu à vitória do Syriza na Grécia: “Não pode haver escolha democrática contra os tratados europeus já ratificados” (Le Figaro, 29/1/2015).
No mesmo sentido, uma publicação do FMI a ser brevemente editada, Fiscal Politics, de que um outro ex-ministro das Finanças do PSD, Vítor Gaspar, é um dos coordenadores, lança, logo na introdução, o seguinte repto: “O que pode ser feito para reduzir a influência da política nas decisões orçamentais?” (Público, 18/4/2017). Descrita por Christine Lagarde, no prefácio, como “um primeiro passo para integrar decisivamente as matérias de economia política nas análises do FMI.”, este livro aponta como solução para os “constrangimentos” dos “ciclos eleitorais”, da “ideologia” e da “fragmentação” (entendida como pluralidade de atores políticos) – tudo fatores próprios da vivência democrática, sublinhe-se – a imposição de “regras”, “claramente definidas, simples, transparentes, consistentes e flexíveis” de que são exemplo os limites do défice, do endividamento e da inflação. Sabemos como estas regras, aplicadas seletivamente a favor de uns países e em detrimento de outros, têm presidido às políticas europeias e contribuído para o descalabro económico e social da Europa comunitária. Trata-se, por isso, de reiterar, pela enésima vez, a cartilha neoliberal.
Os óbvios sinais de decadência da União Europeia e, em especial, dos países integrantes do Eurogrupo, já começam, ainda assim, a fazer soar as campainhas de alarme. Não é por acaso que Mario Draghi, presidente do BCE, numa intervenção e debate que teve com membros do Parlamento holandês em Haia nos inícios de maio, defendeu a política monetária empreendida, em especial no seu efeito no crescimento económico e no emprego, muito para além, portanto, do que tem sido normalmente considerado prioritário na ação do Banco: a estabilidade financeira e o controlo de preços (taxa de inflação). Como sublinha o economista Ricardo Cabral, “julgo ser a primeira vez, na história do BCE, que o seu máximo responsável explicita, de forma tão direta, como é importante para a política monetária do BCE promover o crescimento económico e o crescimento do emprego.” (Público, 15/5/2017). Em linha, diga-se de passagem, com as recentes declarações de Wolfgang Schaüble numa entrevista à revista Der Spiegel, em que apoia a perspetiva avançada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, da necessidade de mais verbas para os países europeus mais fragilizados (ainda que apenas para auxiliar processos de “reformas estruturais”), a merecer o seguinte comentário de Ricardo Cabral: “é de saudar o pragmatismo. É bom que o Tratado Orçamental morra «de uma morte desonrosa» (…) e é positivo para a zona euro a existência de maiores transferências orçamentais entre países ricos e pobres.” (ibid.)
Recorde-se que a política austeritária que tem sido seguida a nível da zona euro aponta no sentido inverso, assentando em três pilares cristalinamente enunciados por Rui Tavares: “que o estímulo dado pelos Estados às economias após a crise de 2008 deveria ser retirado o mais depressa possível; que a zona euro não precisava de mecanismos de correção para os chamados «choques assimétricos» entre centro e periferia; e que, para países como Portugal, a cura para a crise estaria no corte dos «custos unitários do trabalho» (para ganhar competitividade) e na diminuição das despesas do Estado (para ganhar «credibilidade» junto dos mercados).” (Público, 26/5/2017). Conhecem-se os efeitos altamente recessivos destas políticas, especialmente quando houve governos – como, em Portugal, o Governo Passos/Portas – que quiseram ir “mais longe do que a troika”. Com a atual convergência de esquerda no nosso país e a inversão destas políticas, tornou-se evidente que há alternativas à lógica neoliberal seguida até agora. Como refere Rui Tavares, “Com Portugal e outros países periféricos a crescer acima da média da União Europeia, há outro mito que pode estar ferido de morte: o de que não podemos crescer nem convergir dentro da zona euro. (…) Com as políticas certas, dentro e fora do país, Portugal pode desenvolver-se e a zona euro tornar-se menos desigual.” (ibid.). É uma questão de opções políticas, isto é, de economia política.
Tal como foi uma escolha política o rumo económico seguido na construção da Europa comunitária, como nos revela o episódio do “maldito” Relatório Maldague, agora relembrado por um dos seus autores, o académico inglês Stuart Holland (cf. Público, 8/5/2017). Corria o já longínquo ano de 1975, quando um “grupo de sábios” se reuniu em Bruxelas, a pedido da Comissão das Comunidades Europeias. O grupo, presidido pelo belga Robert de Maldague, comissário do Plano, tinha como mandato, atribuído pela Direção-Geral de Economia e Finanças da Comissão, elaborar um relatório sobre os Fatores Estruturais da Inflação. Nas palavras de Holland, “A lógica implícita consistia em fazer uma declaração sobre a necessidade de reformas estruturais dos mercados de trabalho, reduzindo os custos e os benefícios da mão-de-obra, para que as empresas europeias pudessem manter a sua competitividade apesar da quadruplicação dos preços do petróleo depois do aumento decretado pela OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo] em setembro de 1973”.
Mas não foi nada disso que foi feito. Pelo contrário, a equipa dirigida pelo chevalier de Maldague entregou um relatório que, logo na introdução, revelava a seguinte preocupação: “Se o pleno emprego, e uma melhor distribuição de recursos e de lucros para investimento não podem ser salvaguardados, medidas que apenas restrinjam a procura vão chocar cada vez mais com as expetativas sociais de uma melhoria na qualidade de vida.”, avisando que, “A não ser que sejam levadas a cabo reformas de longo alcance, há um grande risco de que métodos autoritários – de forma aberta ou dissimulada – possam gradualmente controlar as nossas sociedades democráticas.” Com efeito, pretendia-se alcançar o objetivo de “Assegurar o funcionamento de uma economia de mercado, sem colocar em risco o real progresso social registado no pós-guerra.” Para isso propunha-se “a introdução de um sistema de redistribuição dos lucros excessivos, através da taxação ou da integração dos assalariados na partilha dos lucros, (…) maior responsabilização das grandes empresas, (…) a competitividade deveria ser baseada nos direitos sociais, na concertação social e na inovação, em vez de reduzir os custos da agenda de integração.” Identificavam-se, por outro lado, os grandes obstáculos para atingir esse desiderato: “Isto implica uma ação urgente, aos níveis nacionais e comunitário, para lidar com o comportamento das grandes empresas na formação de preços, no emprego e nos mercados de capitais, onde agora ocupam uma posição dominante.”, esclarecendo que “Estes fenómenos são manifestações claras de uma transformação profunda na forma como a democracia funciona nos nossos países”. A conclusão do relatório não podia ser mais transparente (e premonitória): “A escolha é clara: ou a comunidade e os Estados-membros têm a necessária lucidez e coragem para estar à altura da tarefa; ou vão continuamente aplicar políticas tradicionais que resultarão numa série crescente de crises, profundas e brutais, económicas, sociais e, em última instância, políticas.” Perante estas conclusões, a Comissão apressou-se a recolher o máximo de exemplares do documento a que teve acesso, “trancou-os na cave do Berlaymont [edifício sede da Comissão, em Bruxelas] e destruiu-os.” Claro que a proibição do relatório (de que sobraram alguns exemplares), teve o efeito contrário, tendo sido divulgado em vários jornais europeus da época. Mas o que ficou evidente, no seio do que viria a ser a União Europeia, foi a profunda divisão entre uma corrente ideológica neoliberal, emergente em meados da década de 70 do século passado, e… (imagine-se!) a doutrina democrata cristã, de que o próprio Robert de Maldague era um representante “da velha cepa”.
Tornou-se famosa a formulação de Antonio Gramsci, no contexto do pós-I Guerra Mundial, “O velho mundo está a morrer, o novo mundo tarda em aparecer, e nesta meia-luz surgem monstros”. É que, como um dia disse eloquentemente o nosso Nobel da Literatura, José Saramago, “O grande problema do nosso sistema democrático é que permite fazer coisas nada democráticas democraticamente”.
Hugo Fernandez