Com o título “Os verdadeiros donos do dinheiro”, a revista Visão (19/9/2019), num artigo assinado por Rui Barroso e Paulo Zacarias Gomes, traz-nos revelações impressionantes sobre o efetivo centro do poder mundial. Estas são as histórias dos superpoderosos que gerem fortunas que rivalizam com a economia de países e que têm a capacidade real de influenciar governos e determinar políticas públicas. Para termos um ponto de comparação, Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, com uma fortuna avaliada em 100 mil milhões de euros (quase metade da riqueza produzida em Portugal num ano) está muito longe dos montantes de qualquer uma das 12 instituições financeiras, na sua esmagadora maioria norte-americanas, que ascendem aos biliões de euros; “Se fossem países, estariam na lista das maiores economias do mundo”, lê-se no artigo citado. Tratam-se de gigantes empresariais que têm a seu cargo um valor equivalente a um terço do PIB mundial. Ditando os destinos da economia global, estas grandes empresas de gestão de ativos não param de crescer, e “são estes grandes gestores «os mercados» que mostram o seu humor no sobe-e-desce nas bolsas e que ajudam a criar expetativas relativamente às decisões de bancos centrais e de governos”.
Ao contrário da Amazon, da Apple ou da Microsoft, estamos perante empresas praticamente desconhecidas da opinião pública, como a BlackRock, a Vanguard ou a State Street Global Advisors, sintomaticamente designadas big three. Para se ter uma ideia da escala do que falamos, o montante de 5,25 biliões de euros administrado pela BlackRock – a maior das 3 referidas – supera o PIB do Japão e apenas é ultrapassado pelo PIB da China e dos EUA. A Vanguard, com 4,26 biliões, é superior ao PIB da Alemanha e a State Street, com uma carteira de 2,20 biliões, situa-se praticamente ao nível do PIB da Índia. O seu negócio é a aplicação de enormes fluxos de capital no financiamento de milhares de empresas em que participam e onde a sua influência acionista é decisiva, por exemplo, na escolha da administração, na fixação de salários e dividendos, ou na definição de estratégias empresariais (em Portugal são acionistas de empresas tão estratégicas como a EDP, a Galp, a REN ou os CTT, com mais de 2,1 mil milhões de euros colocados na Bolsa nacional). Mas o seu papel é igualmente decisivo no fornecimento de liquidez aos bancos e, de uma forma geral, na especulação financeira internacional. Ora, é a existência destes colossos financeiros e a possibilidade de, em caso
de colapso, estes fundos de investimentos poderem arrastar consigo a economia mundial – como já aconteceu em 2008 – que constitui o verdadeiro “risco sistémico” para a estabilidade global.
Tamanha concentração de riqueza traduz-se, sobretudo, numa capacidade ímpar de condicionar a ação governativa a nível planetário e num poder desmesurado sobre os destinos da humanidade. Não sendo escrutinável, nem sujeito a mecanismos de regulação económica e mediação política, transforma-se num poder absoluto e discricionário, constituindo uma séria ameaça à nossa vida coletiva. Como podem as democracias sobreviver a tal estado de coisas? Nesta situação de financeirização das existências, o pensamento neoliberal hegemónico dilui a dimensão política na esfera económica, encarando todas as dimensões da vida social – e individual – numa lógica de mercado e de valorização comercial, em que “mesmo no domínio das ideologias e das convicções políticas tudo se compra e tudo se vende.”, como refere Boaventura de Sousa Santos no seu livro Pneumatóforo : escritos políticos (1981-2018) (Coimbra, Almedina, 2018, p. 195). E, a este propósito, o sociólogo coimbrão acrescenta: “Daí a corrupção endémica do sistema político, uma corrupção não só funcional como necessária. A democracia, enquanto gramática social e acordo de convivência cidadã, desaparece para dar lugar à democracia instrumental, a democracia tolerada enquanto serve os interesses de quem tem poder económico e social para a pôr ao serviço dos seus interesses.” (ibid., p. 195-196). Democratizar a democracia – sugestiva expressão que constituiu título do livro de Sousa Santos de 2002 (e que tinha como subtítulo “os caminhos da democracia participativa”) – torna-se, desta forma, um imperativo da sobrevivência dos preceitos básicos da cidadania e de um mínimo de dignidade das nossas sociedades.
Por isso, tomamos em devida consideração o desafio lançado pelo pensador social inglês Richard Tawney no prefácio à edição de 1951 da sua famosa obra Equality, publicado no já longínquo ano de 1931: “It may well be the case that democracy and capitalism, which at moments in their youth were allies, cannot live together, once both have come of age. When that contingency arises, it is necessary to choose between them.” (Richard H. Tawney, Equality, London, George Allen & Unwin, 1952, p. 15).
Hugo Fernandez