Desta vez foi Jeff Bezos, sucedendo a Richard Branson, a lançar-se no espaço pelo simples luxo de o poder fazer, num absoluto desperdício de centenas de milhões de dólares para estar uns escassos 10 minutos a observar a Terra de cima. A futilidade dos propósitos e a insignificância do resultado alcançado escondem a importância simbólica do ato. Não representando qualquer avanço científico, nem demonstrando qualquer utilidade social, mas servindo apenas para a satisfação de uma megalómana frivolidade privada, a recente viagem espacial de Bezos, tal com a anterior de Branson, demonstram, de forma cabal, o estatuto de que gozam os super-ricos no nosso mundo. É neste aspeto que estes acontecimentos adquirem um significado bem mais importante do que aparentam.
Por um lado, trata-se de afirmar a excecionalidade destas personagens face ao comum dos mortais, naquilo que o filósofo António Guerreiro qualifica como um “gesto de soberania sobre todos os poderes e contingências terrenas” (Ípsilon, Público, 23/7/21). Como refere, por sua vez, o jornalista Vítor Belanciano, estas viagens exibem “a fantasia capitalista levada ao extremo.”, isto é, “a transformação do espaço numa nova fronteira para uma classe de pessoas cujas fortunas cresceram tanto, que este tipo de expedições narcisistas parece agora representar um novo símbolo da sua opulência. Ter muitos carros, iates, casas, propriedades ou mulheres já era.”, concluindo, “O espaço e Marte são agora os novos símbolos distintivos desta elite.” (Público, 25/7/2021). Com efeito, é de distinção – do que é estruturalmente diferente – que se trata, se tivermos em conta o fenómeno da constituição das “classes de castas” de que fala o economista francês, Thomas Piketty, no seio do que designa por “capitalismo patrimonial”. Ter o que mais ninguém pode ter, fazer o que mais ninguém pode fazer, ser o que mais ninguém pode ser (com a exceção de mais uns poucos igualmente privilegiados).
Claro que, como justamente sublinha Vítor Belanciano acerca deste esbanjamento multimilionário, a questão “Não é como o gastam, mas como o ganham”. E aqui, é toda o funcionamento das sociedades atuais que temos que tomar em consideração. O brutal aumento das desigualdades a nível mundial e o deslaçar dos vínculos sociais engendrados pelo neoliberalismo globalizado, deram origem a uma “sociedade sociopata”, como a designa o sociólogo norte-americano Charles Derber. Sobressai, nestas circunstâncias, a necessidade acrescida de legitimação do statu quo e de justificação das clivagens existentes. Tal é feito através de dois expedientes doutrinários que convergem no mesmo propósito ideológico: a justeza da acumulação desmesurada de riqueza e a relevância da função dos seus detentores.
Ressurge a litania dos self-made man e do mito da responsabilidade própria e mérito individual pelo percurso de vida seguido, visão decorrente de um processo mental mistificador de abstratização do social e de supressão de qualquer referência relacional, ou seja, daquilo que constitui a própria natureza da sociedade. Há muito que Max Weber revelou o que verdadeiramente está em causa neste tipo de postura: “The fortunate [person] is seldom satisfied with the fact of being fortunate”, refere o sociólogo alemão, acrescentando, “Beyond this, he needs to know that he has a right to his good fortune. He wants to be convinced that he ‘deserves’ it, and above all, that he deserves it in comparison with others.”, para concluir, “He wishes to be allowed the belief that the less fortunate also merely experience [their] due.” [itálicos no original] (cit. in Michael Sandel, The Tyranny of Merit, New York, Farrar, Straus and Giroux, 2020, p. 42).
Acresce a necessidade de enaltecimento do papel social de tais magnatas. Nas palavras de Vítor Belanciano, “Os muito ricos precisam de uma razão pública para existir, daí que nos queiram fazer acreditar que o futuro está a ser desenhado pela sua ação, enquanto à nossa volta milhões permanecem sem vacinação, as questões ambientais se agravam e as desigualdades crescem imparavelmente.” Às possibilidades infinitas alardeadas por Richard Branson a propósito da sua corrida espacial, correspondem os constrangimentos efetivos das limitações terrenas decorrentes de uma sociedade sumamente desigualitária. Aqui, pelo contrário, qualquer pretensão de justiça social encontrará a oposição firme destes próceres, sendo liminarmente apodada de impossível e remetida para o domínio do irrealismo (própria, afinal, de gente com a “cabeça nas nuvens”!).
A conclusão disto tudo, como afirma António Guerreiro, é que Jeff Bezos, “Olhará a Terra sem se sentir culpado de a degradar.” E assim ficamos.
Hugo Fernandez