O afastamento de Donald Trump da presidência dos EUA foi o fator mais decisivo das últimas eleições americanas. Isso significa que a maioria dos votantes rejeitou o seu mandato. Tudo ficou, então, resolvido? Não, tudo está por resolver. Não nos podemos esquecer que, na sua tentativa de reeleição, Trump conseguiu somar mais 7 milhões de votos àqueles obtidos em 2016 (tornando-se, assim, o segundo candidato presidencial mais votado da história dos EUA; o primeiro é, justamente, Joe Biden). Quase metade dos eleitores americanos identificaram-se com o personagem e a sua governação. Destes contam-se milhões de trabalhadores, mulheres, negros, hispânicos e, certamente, muitas pessoas provenientes de extratos sociais que estão longe de poderem ser considerados privilegiados. O que pode explicar isto?
Partimos do seguinte postulado: os EUA – o “mais importante laboratório social do mundo”, segundo o historiador José Pacheco Pereira (Público, 10/10/2020) – são o expoente máximo do capitalismo, com graus elevadíssimos de exploração e injustiça social. Quaisquer que sejam as explicações para a situação que aí se vive, estamos em crer que a desigualdade e discriminação intrínsecas à sociedade norte-americana assentam em três C’s matriciais que concorrem para a existência de largas dimensões de disfuncionalidade no seu seio: Cor, Classe e Cultura. Estes três fatores genéticos da realidade estadunidense ajudam a explicar muitos dos feitos, dos mitos, das frustrações e da revolta que, a cada passo da história, entrevemos num país que, para todos os efeitos, constitui um ícone da civilização ocidental.
Comecemos pela questão racial. A América assistiu, na sua origem, ao extermínio dos índios (cerca de 15 milhões) e à escravatura [4 milhões de indivíduos trabalhavam nas plantações do sul dos EUA em 1860, constituindo a maior concentração de escravos observada na história (cf. Thomas Piketty, Capital et Idéologie, Paris, Seuil, 2019, p. 251)]. São essas realidades que justificam a teoria do “racismo sistémico” desenvolvida pelo sociólogo norte-americano Joe Feagin. Com efeito, os EUA foram criados a partir da opressão extrema em termos raciais, sendo “o único país industrializado que tem a escravatura como base. E esses escravos criaram uma quantidade impressionante de riqueza para os colonos brancos e seus descendentes.”, acrescentando que, “Se traçarmos uma linha temporal, percebemos que 340 ou 350 anos da História dos EUA foram de opressão extrema em termos raciais.” (I, 30/11/2020). Daí o caráter verdadeiramente fundacional do racismo na sociedade americana, o que, aliás, explica a permanência de discriminações raciais legais até épocas tão tardias quanto a década de 60 do século XX, tendo em Donald Trump e seus apoiantes, dignos sucessores.
É sabido como a questão esclavagista provocou uma sangrenta guerra civil de 4 anos (1861-1865) entre os Estados do Norte (abolicionistas) e do Sul (esclavagistas), provocando perto de 700 mil mortos (mais do que a totalidade dos mortos militares de todas as guerras travadas pelos EUA). O equilíbrio entre as duas partes tinha sido mantido, desde 1820, pelo chamado Compromisso do Missouri, que estabelecia, nas zonas recém-conquistados do Oeste (o mítico Far West), uma linha de demarcação entre os territórios “livres” (onde a escravatura era proibida) a Norte, e os territórios esclavagistas, a Sul. Mas, perante a pressão do movimento pró-abolicionista, o Congresso norte-americano aprovou, em 1854, uma resolução que atribuía a cada novo Estado da União a decisão sobre o estatuto que pretendia adotar, provocando inúmeras controvérsias. Foi neste contexto que o Partido Republicano fez eleger para a presidência o abolicionista Abraham Lincoln.
Inicialmente, não era intenção dos Estados do Norte exigirem aos do Sul a abolição imediata da escravatura e, muito menos, qualquer reivindicação de igualdade racial. Do que se tratava, no início do mandato de Lincoln, em 1860, era do estatuto a atribuir aos novos territórios do Oeste, que estavam a ser colonizados em larga escala e que tinham um potencial económico gigantesco. A bem da unidade nacional, Lincoln, oriundo do Illinois industrial (cuja cidade de Chicago permanece um dos principais centros fabris e financeiros do país), recusava estender o regime esclavagista aos novos Estados, seguindo um modelo económico e ideológico fundado no mercado de trabalho livre e concorrencial, no ajustamento espontâneo da exploração, do consumo e da maximização dos lucros, e na consequente integração no espaço económico continental e mundial de todos os territórios da União, propondo aos Estados do Sul, em contrapartida, um processo de emancipação dos escravos extremamente gradual, que se podia prolongar até ao final do século, sempre acompanhado das devidas compensações financeiras aos respetivos proprietários. Os sulistas, por seu lado, temiam o isolamento no todo nacional e a marginalização do seu modelo económico esclavagista-protecionista, bem como a fuga dos escravos para os novos Estados livres. A radicalização das posições e a recusa de qualquer concessão por parte da Confederação sulista, acabou por desencadear a Guerra da Secessão americana (sobre todo este processo, cf. Piketty, op. cit., parte II, em especial pp. 275-294).
As palavras de Abraham Lincoln em resposta ao seu rival nas eleições presidenciais de 1860, o congressista e senador Democrata do Illinois, Stephen A. Douglas, quando este alegou que a famosa prescrição inicial da Declaração da Independência – “that all Men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty, and the Pursuit of Hapiness” – apenas se aplicava aos brancos e europeus, não se destinando nem aos negros, nem aos índios ou aos emigrantes provenientes da Ásia, são verdadeiramente esclarecedoras. Reconhecendo que os “pais fundadores” não tinham intenção de afirmar que todos os homens eram iguais em todos os aspetos, nem que o gozo de iguais condições seria imediato ou sequer previsível, Lincoln respondeu-lhe: “Certainly the negro is not our equal in color – perhaps not in many other respects; still, in the right to put into his mouth the bread that his own hands have earned, he is the equal of every other man, white or black. […] All I ask for the negro is that if you do not like him, let him alone. If God gave him but little, that little let him enjoy.” (cit. em Sanford A. Lakoff, Equality in Political Philosophy, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1964, p. 2). Ficava, desta forma, enunciada uma das principais contradições da sociedade americana.
A questão de classe é igualmente central na construção deste país, adquirindo particular acuidade nos tempos que correm. É sabido como Donald Trump conseguiu federar todo o tipo de descontentamentos, que vão das vítimas da globalização, da desregulação neoliberal e dos efeitos concorrenciais dos acordos internacionais de comércio livre, ao colapso financeiro de 2008 e da gigantesca recessão que se lhe seguiu, à perda sucessiva de rendimentos e ao crescimento exponencial das desigualdades, às complexas consequências sociais (marginalização de largas camadas da população) da automatização, robotização e informatização generalizadas da economia e vida social. Todos estes fatores contribuíram para a crescente dicotomia entre ricos e pobres, entre urbanos e rurais, entre integrados e desadaptados, ao verdadeiro nascimento de duas Américas de características crescentemente antagónicas, uma dinâmica, cosmopolita, próspera e progressista, e uma outra, tradicionalista, conservadora, profundamente religiosa e nacionalista.
Alguns indicadores bastam para ilustrar a situação a que se chegou. Nos EUA, o 1% dos mais ricos detêm 40% da riqueza produzida no país, sendo que os menos afortunados têm o seu rendimento limitado a cerca de 10%. Há perto de 1 milhão de indigentes sem-abrigo e um em cada seis americanos vive abaixo do limiar da pobreza. Os EUA contam ainda com quase 20 milhões de pessoas que abusam de drogas e a maior população prisional do mundo, com 2,2 milhões de detidos. Para muitos pequenos agricultores e trabalhadores fabris brancos que consideram que é o seu trabalho que verdadeiramente sustenta a nação estadunidense, mas que, apesar disso, não conseguem obter o reconhecimento social que pensam que lhes é devido e, sobretudo, a quem faltam os estudos e um diploma académico que lhes permita ascender na sociedade, sobrevém a aversão e o ódio para com a suposta “elite” social e política. Como explica José Pacheco Pereira, para aqueles a quem Hillary Clinton classificou como “deploráveis”, “há aqui duas perdas: ser branco e já não ter os privilégios de o ser, face aos negros, aos latinos e a todos os «não americanos»; e ser trabalhador manual, não ter um diploma e por isso ser marginal na sociedade, estar fora da elite.” (Público, 10/10/2020).
Para Pacheco Pereira, nos EUA (e, de facto, um pouco por todo o lado), “O lubrificante deste ressentimento são as redes sociais, porque dão um meio de expressão e contacto para todos aqueles que se sentem excluídos do discurso respeitável e encartado.”, com absoluto “desprezo pelo saber profissional e pelas hierarquias assentes no conhecimento, cujos efeitos vão desde a disseminação das teorias conspirativas até aos comportamentos anticientíficos”. Este pretenso “igualitarismo”, sumamente desclassificado, parte do princípio de que qualquer um pode dizer o que quiser, com idêntica valia, quer se tratem de informações verdadeiras ou falsas, quer se possua ou não conhecimento sobre o que se diz. Assistimos áquilo que Pacheco Pereira caracteriza como “a tribalização da verdade, a perda do valor dos factos, a indiferença pela realidade objetiva”. Num país onde estudar e concluir um curso universitário é o grande diferenciador social, esta América branca, pobre, ultraconservadora, hiper-religiosa e rural ainda considera o conhecimento científico – e a cultura, de uma forma geral – como algo de pecaminoso e corruptor das almas.
Chegamos, assim, ao terceiro fator constituinte da realidade americana: a cultura. Para lá de todo o discurso meritocrático, da imagem dos self-made men e da apologia da América como “terra das oportunidades”, a concentração do investimento educativo num reduzido número de escolas de elite, a enorme disparidade social no acesso à educação, sempre em benefício dos mais ricos, e uma grande opacidade nos critérios de admissão académica, são particularmente evidentes nos EUA. Os mecanismos usados para manter o statu quo ultrapassam mesmo quaisquer pruridos ideológicos. Num artigo significativamente intitulado “Medo branco nos Estados Unidos – a fuga das escolas” (Le Monde Diplomatique, ed. port., setembro de 2020), o professor de estudos americanos e ciência política no Carleton College (Northfield, Minnesota), Richard Keiser, dá-nos conta da ameaça sentida pela população branca com o crescente fenómeno do sucesso escolar dos ásio-americanos e da necessidade sentida pelos primeiros na redefinição dos critérios do mérito, para que possam manter intacta a sua primazia social. Dá-nos como exemplo a Mission High School de Silicon Valley, classificada como a melhor escola secundária da Califórnia; se, em 1984, os alunos brancos representavam 84% dos seu corpo discente, em 2010 já só eram 10%, enquanto os alunos ásio-americanos, impulsionados por aquilo que é visto como a sua “obsessão pelos resultados escolares”, ascendiam a 83%. De forma paradoxal, os filhos das classes média e alta de raça branca estão a deixar as melhores escolas californianas, destronados pelos critérios avaliativos e as taxas de admissão das universidades de elite, em que sobressaem as crianças e jovens de origem chinesa e indiana. Como refere Keiser, “Os que pensavam ser a elite da nação consideram-se agora descriminados, devido ao facto de os seus filhos jogarem futebol ou irem à praia enquanto os seus colegas ásio-americanos sacrificam o tempo livre em troca de programas de preparação extra-escolar”.
Segundo Keiser, em 2013, dois professores das escolas do norte da Califórnia chegaram à seguinte constatação: «A “identidade asiática” está intimamente ligada aos valores do perfecionismo, do esforço no trabalho e do sucesso escolar e universitário. Por oposição, a “identidade branca” está mais ligada às noções de imperfeição, de preguiça e de mediocridade académica». Donde a tendência acrescida entre os pais brancos para inscreverem os seus filhos em escolas públicas menos competitivas.” e em apresentar as suas fraquezas como virtudes: “A sua definição de excelência já não se limita apenas aos resultados, valoriza também a diversidade dos centros de interesse, a abertura de espírito e a procura de uma certa «normalidade», por oposição aos excessos da ambição e do carreirismo.” Curiosa inversão de valores! Do culto do trabalho, sentido de disciplina e fidelidade aos modelos familiares, princípios previamente tão exaltados (e que serviam para confrontar as minorias negras e latinas com o exemplo de sucesso dos ásio-americanos como prova cabal da tão proclamada “igualdade de oportunidades”), passou-se a encarar o aluno brilhante como um ser associal e de quem convém manter as distâncias. O politólogo Richard Keiser conclui: “Esta reorientação estratégica das classes médias e superiores brancas responde ao medo de que os privilégios de nascimento associados desde há séculos à sua cor de pele estejam em perigo.” Ainda assim, e apesar de, em 2019, a Google ter recrutado mais mulheres e homens ásio-americanos do que brancos, é “incontestável que os brancos, e mais particularmente os homens, continuam a dominar as cúpulas do capitalismo norte-americano.”
Se pensarmos na cultura não apenas no sentido académico, mas num âmbito mais geral, o panorama é ainda mais sombrio. Dir-nos-íamos na eminência de entrar no Reino das Trevas. Como é possível que, em pleno século XXI, Kamala Harris, a vice-presidente eleita dos Estados Unidos, no primeiro discurso de vitória após a jornada eleitoral de 3 de novembro, tenha sentido a necessidade de defender o papel da Ciência como uma das prioridades do seu mandato? O que é facto é que, na América contemporânea (e com um inestimável contributo da Administração Trump e das forças mais fanáticas e obscurantistas da atualidade), campeiam todo o tipo de teorias da conspiração. Uma das mais espantosas é a do movimento QAnon, que acredita que as elites norte-americanas – em que se incluem desde artistas, a cientistas, a responsáveis empresariais, como Georges Soros ou Bill Gates, ex-presidentes, como os próprios Bush e os Democratas em geral – representam um “deep state” que controla o mundo e os destinos da América e se baseia numa rede satânica de tráfico e abuso sexual de crianças, às quais é tirado o sangue para ser bebido como forma de rejuvenescimento dos poderosos! Não nos podemos esquecer que a empresária Marjorie Taylor Greene, candidata Republicana e adepta fervorosa do QAnon, acabou de ser eleita para o Congresso norte-americano pelo Estado da Georgia com 222 mil votos, 75% do total. Pululam simultaneamente as mais absurdas teses negacionistas, como por exemplo os “terraplanistas”, que contestam a morfologia do nosso planeta, ou aqueles que recusam reconhecer as alterações climáticas, considerando que o conhecimento científico é uma falsidade (ou, no mínimo, uma questão de opinião) e que só o mais estrito fundamentalismo cristão pode aspirar ao estatuto de Verdade.
Fruto, em grande medida, do desnorte e revolta por parte daqueles que foram excluídos do sistema, quer por incapacidade de compreensão – e consequente rejeição – dos seus mecanismos e regras de funcionamento, quer em consequência das próprias disfuncionalidades de uma sociedade fragmentada e entrópica, todas estas circunstâncias acabaram por ser terreno fértil para a apologia mais descarada de princípios racistas, xenófobos, supremacistas, negacionistas, homofóbicos e fundamentalistas, que tiveram em Donald Trump a expressão política cimeira, figura tão grotesca quanto representativa de uma desqualificação coletiva – e, nessa medida, sumamente infame – mas que, por essas mesmas circunstâncias ontológicas, perde o estatuto de aberração (explicável por razões fortuitas) para se tornar fenómeno sistémico (apenas compreensível em termos estruturais). Atentemos, por isso, nas lúcidas palavras do filósofo António Guerreiro, num artigo justamente intitulado “Os palhaços políticos” (Ípsilon/Público, 6/11/2020): “as coisas são muito mais complicadas do que parecem à primeira vista e devemo-nos abster de pensar que cerca de metade da população dos Estados Unidos não tem a lucidez para ver e perceber o que para o resto do mundo é uma evidência.”
Em qualquer caso, como lembrou recentemente Benjamin Ferencz, o último procurador vivo dos Julgamentos de Nuremberga, “Para que o mal vença, só é preciso que os bons não façam nada.” (Visão, 26/11/2020).
Hugo Fernandez