Se não fosse trágico, dir-se-ia uma anedota. António Filipe, o histórico deputado comunista e vice-presidente da Assembleia da República – que agora falhou a eleição para o Parlamento – concluiu, em declarações ao Diário de Notícias (21/2/22), que “Não é expectável que o PCP possa ter a influência política e social que já teve”. A justificação para esta lapalissada é a lacónica afirmação, “Não era o que desejávamos e lutámos para que assim não fosse, mas aconteceu que foi.” Por seu lado, a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, em entrevista ao Público (18/2/22), e refletindo sobre o que falhou nas eleições legislativas antecipadas de 30 de janeiro, reitera que “o partido não se arrepende de ter votado contra o Orçamento do Estado de 2022.” Culpa-se o clima de medo criado quer pela pandemia, quer pelo avanço da extrema-direita, com a consequente bipolarização política e a concentração de votos no PS. E é tudo.
Claro que o PS, perante a fraqueza dos partidos à sua esquerda (de que as eleições presidenciais e autárquicas foram sinais inequívocos) quis livrar-se dos parceiros da “geringonça” e forçar eleições, para conquistar a maioria absoluta. Contou para isso com a colaboração ativa do Presidente da República, que almejava acabar o mandato colocando o PSD, ou uma versão alaranjada do bloco central, no poder. Montada a armadilha, foi esticar a corda no momento oportuno. O OE para 2022 não era pior do que os anteriores, que mereceram a viabilização da esquerda à esquerda do PS. Mas a situação destes partidos era consideravelmente mais frágil. Quiseram ir a jogo sem terem condições para tal. Perderam. Perdemos.
Há uns anos, era usual fazer-se a distinção entre a esquerda “consequente” e a “inconsequente”, para explicar a diferença entre o PCP e o BE, por um lado, e o PS, por outro. Por pouco rigorosa que fosse a terminologia usada, essa divisão fazia sentido e correspondia a uma efetiva divisão no seio da esquerda. A demarcação passava pela postura oportunista de um PS onde, como acontece em todos os catch all party, os princípios tendem a adequar-se a uma vasta gama de interesses e raramente constituem obstáculos para um variado leque de opções, numa espécie de pragmatismo de alta flexibilidade. Foi, aliás, este ecleticismo ideológico que, ao longo da história, o levou a aliar-se mais frequentemente às forças de direita do que às outras formações de esquerda. Por outro lado, havia a esquerda “a sério”, que se pautava por uma análise rigorosa da realidade, pela defesa intransigente de princípios políticos justos e por uma luta inspirada “num profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas”, na definição certeira do conhecido filósofo político italiano Norberto Bobbio (Direita e Esquerda, Lisboa, Presença, 1995, p. 21). Habituamo-nos a ver nesta esquerda consequente um porto seguro e a garantia da defesa dos interesses dos desfavorecidos e injustiçados. E o povo de esquerda, como se viu, apreciava o papel do PCP e o BE na fórmula política encontrada em 2015. Era a pressão exercida por seu intermédio que permitia manter o PS alinhado com objetivos de esquerda, assegurando benefícios importantes para a população. Por isso, não percebeu nem aceitou o chumbo do Orçamento, penalizando fortemente estes partidos.
A gestão satisfatória da crise pandémica, a manutenção de um papel significativo do Estado social e do SNS, o aumento do salário mínimo, das pensões e das prestações sociais, o novo regime de passes e a baixa no preço dos transportes, os manuais escolares gratuitos, a redução de propinas e avanços na progressividade fiscal serão, para alguns, coisa pouca. Mas eram conquistas que estavam consolidadas. E, certamente, seria mais avisado esperar pelo fim da legislatura para o ajuste de contas político. Não é por acaso que foi na margem sul do Tejo, onde se concentra muito do eleitorado tradicionalmente comunista e bloquista, que houve maior transferência de votos para o PS (cerca do dobro da média nacional).
É por isso que as declarações do dirigente bloquista Jorge Costa, são incompreensíveis. Em nome de uma “posição de coerência”, assume a espantosa bravata, “Se soubéssemos o resultado das eleições, manteríamos o voto”, reiterando, “Se o Bloco fosse um partido eleitoralista, poderia ter cedido ao calculismo eleitoral e ter definido outro sentido de voto no OE”, mas que “o BE não procede segundo esses critérios” (Público, 4/2/2022). É certo que a “chantagem política” do PS nesta legislatura, os efeitos da bipolarização com o PSD – este último de braço dado com a extrema-direita – e a perspetiva do regresso ao pesadelo da troika neoliberal, deu uma maioria absoluta a António Costa que ninguém podia prever e um afundamento – que, esse sim, muitos anteciparam – da esquerda consequente. Mas o que irão conseguir agora PCP e Bloco, reduzidos à insignificância parlamentar é à irrelevância política?
Pouco sentido fará, aliás, questionar-se sobre “O que seria da esquerda a longo prazo, se se remetesse a essa posição de roda suplente do carro do PS?”, como faz Jorge Costa. Não se tratava de apoiar o PS, mas de respaldar as políticas que reconhecidamente beneficiavam os cidadãos. De defender um património que é principalmente da esquerda consequente – de que o BE faz parte – e não deixar fugir a oportunidade de continuar uma ação minimamente eficaz nas várias áreas da luta política. Isto não será coerência? É que coerência não significa dogmatismo, mas assertividade e eficácia na defesa dos princípios de sempre. Da mesma forma que uma prática política que não atende à teoria se pauta pelo simples oportunismo, uma teoria que não tem em consideração a realidade concreta, não passa de mera especulação ou voluntarismo estéril, por mais bem intencionado que seja. Como escreve a direção da revista Manifesto (publicação semestral da Associação Fórum Manifesto, fundada por Miguel Portas), “as soluções políticas de convergência à esquerda só não ficarão inscritas na história do nosso país como um simples parêntese, como um momento único e singular, se houver alternativas genuínas e com capacidade de convergir.” (Manifesto, inverno de 2021). Para se ser consequente é preciso, antes de mais, ser. E, como se sabe, a política tem horror ao vazio.
Claro que se pode alegar que, em 2002, PCP e BE tinham um número de votos semelhante ao que tiveram agora (cerca de meio milhão), passando em 2015, devido à sua luta contra a troika, para o dobro e impondo a derrota à direita. Mas não me parece que a situação que vivemos possa ser comparável à dessa época. A vitimização de Costa com o chumbo do OE para 2022 pelos partidos à sua esquerda, funcionou. Muito melhor, aliás, do que ele próprio esperava. Fez o seu jogo político e ganhou em toda a linha. Mas a falta de visão de PCP e BE que, não só caíram na armadilha, como foram incapazes de ler os sinais que o povo de esquerda lhes transmitia, isso sim, é o mais preocupante. Doravante ver-nos-emos confrontados com um PS em roda livre, com políticas mais restritivas e OE certamente piores do que o que aqueles partidos chumbaram: brilhante estratégia! E como ficará a mobilização para as lutas sociais e para os confrontos laborais que se adivinham?
No editorial do Le Monde Diplomatique (fevereiro de 2022), Sandra Monteiro fez, de forma muito lúcida, o rescaldo do que aconteceu: “Nas eleições legislativas de 30 de janeiro, o medo de ter ainda menos superou a vontade de ter um pouco mais.” O medo de uma vitória da direita coligada com a extrema-direita e o regresso dos “anos de chumbo” da troika, fizeram os votantes de esquerda escolher o mal menor, através do que ela apelidou de “votos anti austeridade”. E, num país em que 5% dos portugueses concentram 42% da riqueza nacional e onde 22,4% da população (cerca de 2,3 milhões de pessoas) vive na pobreza (sendo que quase metade destas, trabalha), “o ano de 2022 começa com piores condições para resolver os seus problemas.” E aqui, a culpa não morre solteira.
Esta esquerda permanecerá consequente. Mas será confiável?
Hugo Fernandez