A histeria com que a direita encarou o acordo a que chegaram os partidos de esquerda para apoiar um governo de António Costa é bem reveladora do que está em jogo. Tudo serviu para esconder a evidência do resultado das últimas eleições: a esquerda ganhou (apesar de tudo) e a direita perdeu (depois de tudo). E foi a constatação deste facto elementar que levou a esquerda a unir-se e a direita a desesperar, recorrendo a todo o tipo de diatribes, desde o puro e simples insulto, à descabelada ameaça da eminência de um PREC II, até às disparatadas acusações de ilegitimidade.
Como se o desejo de inverter o processo de empobrecimento e degradação da vida dos portugueses fosse um despautério (afinal, em que país vivem os dirigentes do PSD e CDS?), como se a ambição de devolver salários, pensões e reformas cortadas pelo governo cessante fosse um absurdo (afinal que interesses servia a direita no poder?), como se o anseio de ter serviços públicos universais e de qualidade fosse um desvario e como se o propósito de diminuir as desigualdades e injustiças sociais fosse um crime (de resto, tudo extravagâncias mais do que condicionadas pelo espartilho orçamental imposto por esta União Europeia dominada pela cartilha neoliberal).
Como se uma maioria parlamentar de esquerda não pudesse ter a mesma capacidade decisória que a maioria de direita que nos tem governado. Como se a direita tivesse o monopólio da governação e a esquerda estivesse condenada a um estado permanente de vassalagem política. Como se a responsabilidade e o patriotismo tivessem cor partidária. Como se não fosse essencial contribuir para a construção de uma Europa dos cidadãos que coloque os interesses económico-financeiros no seu devido lugar. Como se não fosse urgente reabilitar a democracia europeia, resgatando-a da permanente chantagem dos “mercados” que fazem da soberania popular uma caricatura e das eleições uma mera recomposição dos mesmos ditames. Lembremo-nos da afirmação taxativa do presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, sobre eleições do passado dia 4 de outubro, “A situação para Portugal não muda. A situação económica e financeira não muda de um dia para o outro devido às eleições. Por isso, não creio que haja razão para uma grande mudança de política neste momento.”, reiterando a posição assumida pelo ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble – “As eleições não mudam nada” – a propósito do anterior processo eleitoral grego.
A dirigente do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, em entrevista ao Público (13/11/2015), enunciou o fundamental sobre a atitude da direita portuguesa: “O enorme medo da direita é que se prove que afinal havia alternativa.” Mas para isso, a esquerda portuguesa tem que assentar num programa mínimo de convergência que, preservando a identidade e as reivindicações de cada uma das formações políticas, coloque o projeto comum como prioridade absoluta. Ater-se ao essencial (prescindindo mesmo, se necessário for, de alguns propósitos) é condição sine qua non para a durabilidade – não só desejável, mas vital – da esquerda. Como disse sabiamente José Pacheco Pereira a propósito deste “casamento” dos partidos da esquerda, “há uma coisa que os esposos devem ter clara na sua cabeça, escrita em letras de fogo, tatuada nas mãos e nos braços, para que estejam sempre a ver, é que o divórcio será muito mais gravoso e penoso.” (Público, 31/10/2015), acrescentando que, para que um governo de esquerda resulte, tem de “governar razoavelmente, onde o ótimo é inimigo do bom”. Se isso acontecer, Pacheco Pereira não tem dúvidas em considerar que “provocará um ponto sem retorno na vida política portuguesa.” A alternativa é uma irremediável perpetuação da direita mais revanchista no poder e o aniquilamento da capacidade da esquerda em protagonizar outros caminhos para a nossa sociedade.
Passos Coelho chama a este entendimento político, “autêntico reviralho”. Pois que seja!
Hugo Fernandez