Segundo a reflexão do filósofo basco Daniel Innerarity sobre a atual ordem mundial e aquilo que ele caracteriza como “ o ocaso da vontade política”, encontramo-nos perante “uma forma global que multiplica as liberdades individuais e restringe a liberdade política (o mundo como resultado de decisões políticas livres), que oferece uma abertura ilimitada, mas sem alternativas, que dá a palavra a todos mas recusando qualquer referência crítica, que domestica satisfazendo necessidades.” (Ler, nº154, verão 2019, p. 80). O resultado último deste processo está no conformismo face à realidade e a aceitação passiva de um statu quo que se apresenta como inevitável. Sob a capa da “modernização” e da adaptação sagaz aos novos tempos, sacraliza-se uma reverência – tão arcaica, afinal – à força do destino e ao “there is no alternative” (TINA) das décadas de ferro neoliberais. Emerge o instinto de sobrevivência, o deslaçamento das solidariedades, o medo e a violência. Impõe-se o casuístico, o autorreferencial e o tribalismo político; campeiam os fenómenos identitários e populistas.
A perceção do real é sistematicamente filtrada pela alienação mediática e pela inculcação de uma ficção societária. Não se trata de novas interpretações da realidade, nem de uma preocupação perscrutadora da sua lógica de funcionamento, mas da construção de um avatar de existência coletiva que, assente numa assunção radical da individualidade, simplifica sobremaneira a complexidade das relações sociais, construindo narrativas lineares e esquemas de explicação fáceis e que, sobretudo, falseiam os dados do problema. Sobre este aspeto, Innerarity não deixará de sublinhar que “O combate político desenrola se sem ter a realidade pelo meio e gira em torno de ficções úteis. […] Daí a proliferação dos «relatos» e mesmo das teorias conspirativas.”, autênticas “metáforas mobilizadoras” para os populistas. O professor da Universidade de Saragoça conclui: “a verosimilhança é mais importante que o verdadeiro. Estas construções narrativas cumprem uma função semelhante à do mito nas sociedades primitivas.” (ibid. p. 81). A espetacularização das várias dimensões da existência individual e coletiva encontra terreno fértil nas redes sociais e nos media que, sem objetividade ou rigor – mas com extremo oportunismo – entretêm um público ávido de emoções básicas e com reduzido esforço intelectual, que uma boa história, ainda que ficcionada, pode proporcionar, em detrimento de uma história verdadeira.
Esta “era dos coletivos de solidão”, de que fala Boaventura de Sousa Santos, faz parte de um processo histórico que teve a sua origem na afirmação da sociedade civil perante o Estado, para se chegar aos dias de hoje em que a própria sociedade é contestada em nome da autonomia individual. Mas, para o jurista coimbrão, “a autonomia que proclama é uma autonomia uberizada, isto é, a autonomia de indivíduos que não têm condições para ser autónomos. A autonomia da autoescravatura.” (Jornal de Letras, 23/10/2019). Para Boaventura, este modelo civilizacional tem uma implicação imediata: a substituição do conceito de responsabilidade social pelo conceito de culpa. Desta forma, os problemas existentes deixam de ser questões políticas e passam a ser problemas de polícia (com a tendência crescente para a criminalização dos protestos sociais) ou terapêuticos (e daí a moda avassaladora dos expedientes self-help e a busca atormentada de uma qualquer felicidade obrigatória) traduzindo, afinal, o emergir de uma “era não relacional”. Como explica este académico, “Assim, diferenças e hierarquias, que até há pouco eram consideradas chocantes e revoltantes, tendem hoje a ser percebidos como triviais e até aceitáveis porque expressão de características inatas em relação às quais a sociedade pouco pode fazer.” (ibid.). É o mito do merecimento a pontuar a crescente discriminação e desigualdade sociais.
Aquilo que o célebre filósofo francês da pós-modernidade, Jean-François Lyotard, designou como “o fim das grandes narrativas” (cf. a sua mais conhecida e influente obra, A Condição Pós-Moderna, de 1979), e a ideia da crise de uma conceção positiva da história que, ancorada no racionalismo emancipador do Iluminismo, desembocou na busca de concretização das várias utopias sociais, do liberalismo ao comunismo – o “princípio da esperança”, invocado por Ernst Bloch – tem vindo a dissolver os ideais coletivos num individualismo desesperado e aniquilador de qualquer noção de progresso histórico. A mercantilização das existências provocou, a partir das últimas décadas do século XX, uma insidiosa assimilação da realidade pela simulação, uma metamorfose – profundamente ideológica, sublinhe-se – onde, como explica Perry Anderson, “a forma estética e a função publicitária se interpenetram naturalmente, e um artifício lúdico modela indistintamente objetos e pessoas”, a justificar o seguinte comentário deste historiador e sociólogo inglês: “Consumida a modernidade, a história atinge a sua imobilidade na dinâmica voragem de um turbilhão.” (Perry Anderson, O Fim da História: de Hegel a Fukuyama, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993, p. 74). A desmoralização desta sociedade virtual reduz a indignação à dimensão da ofensa pessoal, dos “«perpetuamente ofendidos» da era das redes sociais – poderíamos também chamá-los moralistas seculares – aqueles que descobrem todos os dias que alguém disse algo, pensa algo, ou fez algo que os ofende”, na sugestiva descrição do jurista e politólogo, José Pedro Teixeira Fernandes (no artigo de opinião “O populismo ambientalista”, Público 1/10/2019), inquietação, porém, inócua, porque desprovida de qualquer demanda coletiva e, dessa maneira, de horizonte político. A questão ambiental e a sua perceção vulgarizada são um exemplo paradigmático de semelhante deriva.
Quando António Guerreiro nos lembra que “Uma vez instalado este imaginário catastrofista, foram evacuadas a grande velocidade as reminiscências dos tempos modernos, que nos falavam de emancipação, progresso, liberdade, esperança.”, está a alertar-nos para a circunstancia cada vez mais indesmentível, segundo a qual “passámos em pouco tempo de uma política com pouquíssima ecologia a uma ecologia de boa vontade à qual falta política. E essa falta torna vãs todas as boas intenções.” (Público/Ìpsilon, 20/10/2019). O filósofo defende, nesse sentido, o que designa por ecopolítica: “Uma ecopolítica à altura dos desafios com que estamos confrontados terá de ser capaz de mostrar que as situações ecológicas, políticas, sociais, económicas, institucionais, tecnológicas e psíquicas estão em total conexão umas com as outras. Sem agir sobre todas estas dimensões, o «impasse planetário» mantém-se.” (ibid.). A este propósito, não deixa de ser simultaneamente caricata e esclarecedora a troca de argumentos entre Emmanuel Macron e os gilets jaunes, na tentativa por parte do primeiro-ministro francês de justificar o brutal aumento dos combustíveis em França com a necessidade de encontrar formas menos poluentes de energia, como se o próprio poder fosse exemplo de preocupações ambientais efetivas e as políticas públicas não reproduzissem diligentemente um sistema económico que perpetua a catástrofe ecológica.
Uma coisa é certa; a predação acelerada dos recursos existentes é intrínseca à lógica de exploração do capitalismo globalizado e está indissoluvelmente ligada ao agudizar das desigualdades sociais por via da obtenção desenfreada do lucro (extração da mais-valia) e da acumulação crescente do capital. Não há nada aqui de estruturalmente novo, pelo menos desde a Revolução Industrial. Apenas o grau das assimetrias e a extensão da devastação e das alterações climáticas constituem fatores agravantes. Ora, como afirmou o escritor libertário norte-americano e fundador da escola da ecologia social, Murray Bookchin, “É tão fácil convencer o capitalismo a limitar o crescimento como persuadir um ser humano a deixar de respirar” (cit. in Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Lisboa, Edições 70, 2012, p. 125). Por isso, como justamente refere Perry Anderson, “A revolução ambiental não ocorrerá sem um novo sentido de responsabilidade igualitária.” (ibid., p. 127).
Discursos apocalíticos ou messiânicos resolverão verdadeiramente o problema? Estaremos eternamente condenados ao atomismo social da irresponsabilidade e da ganância? Persistiremos no caminho do colapso, ou provaremos que os ideais coletivos de justiça social e de equilíbrio ambiental constituem as duas faces da mesma moeda do nosso futuro?
Hugo Fernandez