CATALUNYA
A 12 de fevereiro último, começou no Supremo Tribunal Espanhol, em Madrid, o julgamento de 12 governantes e líderes sociais catalães cujo único crime – político, está bem de ver – foi a organização de um referendo sobre a independência da Catalunha. Estes dirigentes políticos catalães, no pleno exercício das funções governativas para as quais foram eleitos, conduziram todo o processo de forma absolutamente pacífica e no estrito cumprimento das regras democráticas consagradas em qualquer parte do mundo. Existindo uma questão fraturante a condicionar os destinos da região autónoma, havia que consultar a vontade dos seus cidadãos. Foi o que fizeram a 1 de outubro de 2017. E foi isso que os conduziu à prisão.
Tratou-se de uma decisão extemporânea, de um ato inconsiderado de uma qualquer fação extremista? Não. A questão é antiga e cala fundo na comunidade catalã. Região possuidora, desde sempre, de língua e cultura próprias, bem como de um forte sentimento identitário, o seu caráter autónomo foi, na história mais recente, reconhecido (juntamente com outros nacionalismos periféricos) pela II República espanhola (1931-36), mas prontamente reprimido pela ditadura franquista (1939-1975). Acabou por ficar consagrado na formulação dúbia da Constituição de Espanha de 1978, onde, no seu artigo 2º, se “reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões” que integram o território espanhol, ainda que, simultaneamente se proclame a “indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”, uma solução de compromisso que, como refere Filipe Vasconcelos Romão, “Em termos políticos, terá como consequência a organização de Espanha na forma de Estado autonómico, um meio termo entre o federalismo, defendido pela esquerda e pelas alas moderadas dos nacionalismos catalão e basco, e o unitarismo, pretendido pela direita nacionalista espanhola.” (Filipe Vasconcelos Romão, Espanha e Catalunha, Choque Entre Nacionalismos, Silveira, Letras Errantes, 2017, pp. 28-29).
Desde o período da transição democrática, após a morte de Francisco Franco, até ao começo do nosso século, a indefinição de propósitos e o impasse das expetativas teve um início de resolução durante o consulado de José Luis Rodríguez Zapatero, dirigente do PSOE e chefe do Governo espanhol de 2004 a 2011, ao aprovar uma reforma do Estatuto da Catalunha que era enquadrado numa lógica mais federal para o todo nacional e que foi aprovado, em 2005, por 85% dos deputados do Parlamento da Catalunha, por 73% dos eleitores catalães, em consulta realizada para o efeito em junho de 2006, assim como pela maioria absoluta dos representantes ao Congresso dos Deputados, em Madrid, também no ano de 2006. Inconformado com estes resultados, e na pior tradição centralizadora do regime franquista, o Partido Popular (PP), que liderava, à época, a oposição, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (TC), solicitando a fiscalização constitucional do documento sufragado. Em 2010, o TC veio dar razão a este recurso, tendo chumbado 41 artigos do referido Estatuto. Tudo se agravou. Voltaram ressentimentos antigos e extremaram-se posições. A atitude sobranceira e irresponsável dos governos do PP de Mariano Rajoy (2011-2018) de pura e simplesmente ignorar a questão catalã, desconsiderando as pretensões autonomistas em nome de um discurso nacionalista espanhol radical, convenientemente escudado numa defesa inflexível da Constituição de 1978, levou a uma rutura do pacto constitucional por parte dos catalães em nome do “direito a decidir”.
Desde então, à reivindicação política de uma autonomia acrescida por parte dos catalães, responde o poder de Madrid com a irredutibilidade do poder imperial, a brutalidade da violência policial e a intransigência das forças partidárias de direita, do PP ao Ciudadanos, secundados pelos falangistas do Vox. E também das autoridades judiciais que, ao pretenderem judicializar uma questão essencialmente política, criminalizaram a possibilidade do debate democrático e da decisão cidadã. Mais do que o reconhecimento, como direito fundamental, do preceito internacional da autodeterminação dos povos, a recusa do referendo é uma flagrante violação dos mais elementares princípios da democracia a que o Estado espanhol está vinculado, tanto pela sua história recente, como pela sua condição de país integrante da União Europeia. Daí a justa interrogação de José Pacheco Pereira: “Em que países da Europa é que seria hoje possível fazer um processo por «sedição»? Dois: a Rússia e a Espanha.” (Público, 16/3/2019).
Este diferendo só pode ser resolvido através da consulta livre e democrática das populações envolvidas. Como, de resto, o exemplo da Escócia amplamente demonstrou. Ganha quem tiver mais votos. É esta a regra de ouro da democracia. Só então se poderá gritar bem alto “Visca Catalunya lliure!”
Hugo Fernandez