Para esta crónica tomei de empréstimo o título homónimo de um filme do cineasta francês René Clair, de 1944, em que, graças à misteriosa personagem Pop Benson, o repórter Larry Stevens consegue antecipar 24 horas os acontecimentos, o que lhe vai granjear grande fama e proveito, quer em furos jornalísticos, quer em apostas desportivas; até ao dia em que prevê a própria morte. A perspetiva aqui adotada prende-se sobretudo com a capacidade de antecipação das situações e com a necessidade de prevenir males futuros a partir das lições do passado.
O pensador social inglês Richard Tawney, no prefácio à edição de 1951 da sua célebre obra Equality, cita o jornal The Times de 1 de julho de 1940, nas vésperas do que ficará conhecida como a “Batalha de Inglaterra”, em plena II Guerra Mundial, para ilustrar as perplexidades a que chegaram as democracias liberais num tempo de crise como era aquele que então se vivia: “If (…) we speak of democracy, we do not mean a democracy which maintains the right to vote, but forgets the right to live and work. If we speak of freedom, we do not mean a rugged individualism which excludes social organisation and economic planning. If we speak of equality, we do not mean a political equality nullified by social and economic privilege. If we speak of economic reconstruction, we think less of maximum production (though that too will be required) than of equitable distribution.” (Tawney, 1952: 10). Para Tawney, o dilema que estava colocado à sociedade da época aparecia de forma muito clara: “It may well be the case that democracy and capitalism, which at moments in their youth were allies, cannot live together, once both have come of age. When that contingency arises, it is necessary to choose between them.” (Richard Tawney, Equality, London, George Allen & Unwin, 1952, p. 15).
Penso que vivemos num contexto em que o dilema enunciado por Richard Tawney em meados do século passado adquire uma atualidade e premência indiscutíveis. Com efeito, num rápido relance pela nossa história recente, verificamos que a ordem demoliberal que governou as sociedades ocidentais no pós II Guerra Mundial e que permitiu edificar o Estado social na segunda metade do século XX, o que, apesar das suas insuficiências, resultou em benefício da generalidade da população, foi abruptamente interrompida pela onda neoliberal que, a partir da década de 80 do século passado, tratou de nos levar a um regresso tormentoso à selvajaria manchestariana da centúria de oitocentos, certamente com outros mecanismos tecnológicos assim como ideológicos, mas com idênticos propósitos de acumulação desregulada – e despudorada – de riqueza nas mãos de uns poucos e de aprofundamento brutal das desigualdades sociais. Nestas circunstâncias, assistimos a uma inexorável subjugação da democracia aos ditames do capitalismo. Emerge, uma vez mais, a questão da escolha.
Não é novo este dilema. Desde a sua implantação, o liberalismo tem sido confrontado com a pressão das aspirações democráticas que, mesmo num contexto de exploração capitalista, permitiram, ainda que à custa da determinação e sacrifício de muitos, conquistas cívicas deveras significativas e upgrades civilizacionais que se constituíram como verdadeiro património da humanidade. Mas, como nada é eterno e muito menos garantido, encontramo-nos hoje perante um daqueles momentos decisivos da história, em que as escolhas que forem feitas determinarão de forma inelutável o nosso futuro imediato. Já nem falo das consequências ambientais desastrosas resultantes da perpetuação de um extrativismo galopante ou da perpetuação de conflitos destrutivos para gáudio de alguns. Mas refiro-me, por exemplo, à subserviência inacreditável da UE aos interesses privados das grandes companhias farmacêuticas que, num estado de emergência pandémica em que milhares de pessoas estão a morrer todos os dias, e apesar da investigação feita para o fabrico das vacinas contra o covid-19 ter sido, em grande medida, financiada por dinheiros públicos comunitários, se vê sujeita a ter que negociar lotes e prazos de entrega, inclusive à revelia das condições contratuais previamente assinadas, que garantiam uma cobertura atempada e generalizada da população europeia. Como é possível que não haja, ainda que de forma pontual e com caráter de exceção – e mesmo com algum tipo de ressarcimento – uma intervenção dos Estados soberanos na requisição das patentes e no fabrico alargado das vacinas, em defesa do interesse comum dos seus cidadãos?
A ordem neoliberal hegemónica convoca-nos, mais do que nunca, a tomar posição em defesa da democracia. Mas a escolha está cheia de alçapões e dificuldades. Talvez aquele que se apresenta como o desafio maior para as forças políticas democráticas, tem a ver com a vaga populista que tem assolado o mundo nesta última década. A sua especificidade radica numa autêntica armadilha ideológica: conseguir dar voz ao ressentimento das populações relativamente ao “sistema”, fazendo a apologia de posições ultra retrógradas e apologistas do statu quo. Na explicação de Boaventura de Sousa Santos, a extrema-direita ganha terreno precisamente “por meio da exploração do mal-estar social que a subordinação crescente da democracia ao capitalismo provoca. Ou seja, exploram as mesmas condições sociais que mobilizam os movimentos anti sistémicos de esquerda.” A grande diferença é que, “enquanto para estes o mal-estar social decorre precisamente da sujeição da democracia às exigências do capitalismo, exigências cada vez mais incompatíveis com o jogo democrático, para os movimentos de extrema-direita o mal-estar decorre da democracia e não do capitalismo.” (Boaventura de Sousa Santos, “O antissistema e a defesa da democracia”, Jornal de Letras, 10/2/2021, pp. 23-25).
Creio também que é esta a razão principal pela qual camadas de população desfavorecidas e marginalizadas pela ordem hegemónica aderem com tanta facilidade às mensagens populistas. É que, na simplificação maniqueísta a que o pensamento dominante nos conduziu – com a litania tóxica das “fake news”, da “pós-verdade” e dos “factos alternativos” [ou, na linguagem académica dos especialistas britânicos em comunicação política, Andrew Chadwick e Christian Vaccari, “desconsideração intencional pela verdade” (cit. em Carla Baptista, “Os 3D das presidenciais: desigualdade, desinformação e demagogia”, Le Monde Diplomatique, ed. port., fevereiro de 2021, pp. 12-13)] – a contestação ao “sistema” significa, sobretudo, a contestação à democracia, deixando incólume o capitalismo e as dinâmicas mais exploradoras e alienantes da globalização neoliberal. Ao erigirem como bandeira política falsos problemas com forte carga simbólica, escondem realidades estruturais bem mais decisivas, mas, simultaneamente, menos percetíveis. É assim que se concentram as atenções, por exemplo, em determinados grupos populacionais, esquecendo-se as relações sociais que determinam a vivência de todos.
Servindo-se dos mecanismos de representação política da democracia, estes aprendizes de ditadores, uma vez no poder (e, normalmente com o conluio dos partidos tradicionais de direita), exercem uma autoridade totalmente arbitrária e violadora dos direitos, liberdades e garantias constitucionais dos cidadãos: privatização dos serviços públicos essenciais, defesa da prisão perpétua – quando não pena de morte –, castração física e esterilização de pedófilos e mulheres que pratiquem a interrupção voluntária da gravidez, mutilação de infratores – “a alguns ladrões não faria mal cortarem as mãos”, declarou, pressuroso, André Ventura num debate televisivo – segregação das minorias, deportação de imigrantes, intolerância, racismo, negacionismos e fundamentalismos vários. A conclusão que Boaventura de Sousa Santos tira é perentória: “Acossada pela ideologia global da extrema-direita, a democracia morrerá facilmente no espaço público se não se traduzir no bem-estar material das famílias e das comunidades. Só assim a democracia impedirá que o respeito dê lugar ao ódio e à violência, e a dignidade dê lugar à indignidade e à indiferença.” (Santos, op. cit.).
Certamente isso explicará fenómenos eleitorais nacionais tão extraordinários como o facto da votação no candidato presidencial André Ventura ter atingido, no concelho de Moura, o triplo da média nacional, e que nas freguesias da Póvoa de São Miguel (PS) e Sobral da Adiça (CDU) tenha vencido. Neste último caso, o presidente da Junta, Bruno Monteiro, eleito com maioria absoluta (59% dos votos) explica o sucedido com “a campanha de desinformação do próprio candidato, que faz passar uma mensagem que não é verdadeira e ilude as pessoas. É uma mensagem racista, xenófoba e que faz com que as pessoas acreditem que anda meio povo a trabalhar para outro meio”. (Diário do Alentejo, 5/2/2021). No mesmo sentido, para Francisco Parra, presidente da Junta de Freguesia de Safara e Santo Aleixo da Restauração (PS), onde Marcelo Rebelo de Sousa ganhou as eleições presidenciais com apenas 28 votos de diferença relativamente ao candidato do Chega, muitos eleitores aproveitaram as eleições para “um voto de protesto”, explicando que “Estamos um bocadinho esquecidos, ninguém olha por nós. Possivelmente as pessoas pensaram que assim seria uma forma de termos visibilidade”. (ibid.). Não nos esqueçamos que, dos 30 concelhos em que Ventura teve maior votação, 28 são no interior, tendo ficado em 2º lugar em todos os distritos desta zona do país.
Estes resultados eleitorais beneficiam das distorções e impasses a que chegou o próprio regime democrático, potenciadores da atuação dos movimentos políticos extremistas. Comumente, o populismo é caracterizado a partir de três ideias fundamentais: a oposição entre “o povo” e uma “elite” sempre considerada corrupta, o discurso em nome do povo e da sua suposta “vontade” e o facto de apresentar aquilo que António Costa Pinto define como uma “ideologia fina”, isto é, “sem coerência, eclética, e por vezes contraditória e mutante.” (António Costa Pinto, O regresso das ditaduras?, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020, pp. 89-90). Estas dicotomias simplistas, decorrentes de um processo de descomplexificação – amiúde grotesco – da realidade, induzem uma sensação de identidade e empatia em amplas camadas da população, revelando-se sumamente eficazes. Não haja, no entanto, dúvidas, quanto ao caráter do populismo de extrema-direita: servindo-se da democracia e dos mecanismos da representação política, seguem princípios autoritários e promovem a pessoalização do poder. E, uma vez instalados na governação, a sua primeira vítima é, precisamente, a democracia.
O próprio jogo político-partidário tem contribuído, sobremaneira, para semelhante desenlace. Na sua obra Capital et Idéologie, o afamado economista francês Thomas Piketty chama-nos a atenção para a alteração do sentido de voto nos últimos 30 anos no mundo ocidental e à lenta decomposição da dicotomia direita-esquerda classista do pós-II Guerra (cf. Thomas Piketty, Capital et Idéologie, Paris, Seuil, 2019, pp. 1000-1009). Correspondendo à redução das desigualdades de rendimento e património, bem como ao incremento de políticas públicas de proteção aos mais desfavorecidos e à progressividade dos impostos, próprias do Estado-providência, na sequência das destruições provocadas pelas duas guerras mundiais (1914-1945) – e contrastando fortemente com a enorme concentração de capital e aprofundamento da desigualdade social ocorrida ao longo do século XIX até 1914 – as décadas de 1950-1980 vão assistir à competição de tipo classista entre a esquerda e a direita, em que os partidos do primeiro espectro político se apoiavam nas camadas socialmente mais desfavorecidas, enquanto que os segundos obtinham a maioria dos seus sufrágios naqueles que se situavam numa situação social mais estável e favorecida.
Mas, no período que vai de 1990 a 2020, este estado de coisas vai sofrer uma profunda alteração na generalidade das democracias ocidentais. Para Piketty, assiste-se, doravante, a uma inversão dos papéis: a esquerda eleitoral representa cada vez menos os interesses dos trabalhadores, para representar cada vez mais os setores sociais mais escolarizados e urbanizados, os quadros diplomados – o que ele chama “esquerda-brahmane” – que viram a sua ascensão social assente no processo de globalização, Em contrapartida, as classes populares, crescentemente arredadas do bem-estar social, ou se afastam da competição eleitoral, engrossando as percentagens da abstenção, ou potenciam o crescimento dos movimentos populistas e de extrema-direita – pretensamente antissistema – que se aproveitam deste desnorte. À direita – o que ele apelida de “direita comerciante” – juntam-se crescentemente camadas populares que não se reveem nas elites “bem-pensantes”. Não é por acaso que nas últimas eleições presidenciais que ditaram o afastamento de Donald Trump, “Nos cem condados que dispõem das melhores escolas do país, Joe Biden recolheu 84% dos votos. Nos cem condados que beneficiam do rendimento médio mais alto, obteve 57%. Há trinta anos, os republicanos ganhavam confortavelmente nestas duas categorias.” (Thomas Frank, “Paranoias americanas”, Le Monde Diplomatique, ed. port., fevereiro de 2021, p. 26).
A desfocagem ideológica assim produzida faz com que as políticas públicas de governos de direita ou de esquerda, que se alternam no poder, sejam cada vez mais indiferenciadas, alinhando ambos pela mesma bitola da desregulação neoliberal, abstendo-se de resolver os problemas das populações e agravando as desigualdades sociais existentes. O mundo globalizado funciona em benefício dos dois grupos dominantes, aqueles que dispõem do capital educativo ou financeiro mais elevado (elites intelectuais e financeiras). Juntando-se a isto o peso dos fluxos migratórios, impõem-se crescentemente as clivagens de tipo identitário, os conflitos etno-religiosos e as derivas nativistas. Como justamente refere Piketty, “le sentiment d’abandon des classes populaires face aux partis sociaux-démocrates (au sens large) a constitué un terreau fertile pour les discours anti-immigrés et les idéologies nativistes. Tant que la manque d’ambition redistributive qui est à l’origine de ce sentiment d’abandon n’aura pas été corrige, on voit mal ce qui empêcherait ce terreau d’être exploité toujours davantage.” (op. cit., pp. 1002-1003).
O resultado está à vista. O consulado trumpista nos EUA e a ascensão política da extrema-direita ou dos seus sucedâneos iliberais europeus, constituem provas cabais desta evolução. Denunciando o que designa por “le nouveau récit hyperinégalitaire” (Piketty, op. cit., p. 1112), Piketty conclui: “La révolution conservatrice des années 1980, l’effondrement du communisme soviétique et le développement d’une nouvelle idéologie de type néopropriétariste ont conduit le monde vers des niveaux impressionnants et incontrôlés de concentration des revenus et des patrimoines en ce début de XXI siècle.” (ibid., p. 1111). E isso tem consequências. Ecoam, lapidares, as palavras do The Times desse longínquo ano de 1940, evocadas por Richard Tawney: “se falamos de democracia, não falamos só do direito de voto, esquecendo o direito a viver e trabalhar. Se falamos de liberdade, isso não significa o estrito individualismo que exclui a organização social e o planeamento económico. Se falamos de igualdade, não nos referimos a uma igualdade política anulada pelo privilégio social e económico. Se falamos de reconstrução económica, pensamos menos na maximização da produção (embora isso também venha a ser necessário) do que numa distribuição equitativa.” [tradução minha].
É imperioso a esquerda fazer a sua escolha e resgatar a democracia do capitalismo. Até insuspeitos e prestigiados liberais como Thomas Marshall ou Ralf Dahrendorf, não hesitaram em defender que a cidadania “está, por definição, ao abrigo dos caprichos do mercado.”, proclamando, “A cidadania não é um conceito económico.” (Ralf Dahrendorf, Ensaios sobre o liberalismo, Lisboa, Fragmentos, 1993, p. 178). Não nos esqueçamos que o grande objetivo de André Ventura é a instauração de uma nova república, a IV, a dele, aquela que tão elucidativamente designou por “ditadura da gente de bem”. Ora, pegando nas palavras de Daniel Oliveira, “Quem não percebe o momento histórico que vive tende a não construir o futuro histórico que deseja.” (Daniel Oliveira, Manifesto, nº5, Outono e Inverno 2020/21, p. 47). Se persistirmos numa espécie de cegueira ideológica e de conversa fechada, a democracia não será mais que uma farsa. E, como sabemos, são demasiadas as ocasiões em que a farsa e a tragédia se confundem na história.
Hugo Fernandez