Na conhecida formulação do Manifesto Comunista de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels defenderam que “O executivo do Estado moderno não é mais do que uma comissão para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa.” (Marx, Engels – Obras Escolhidas, tomo I, Lisboa, Ed. “Avante!”, 1982, p. 109). Talvez nunca como nos dias de hoje tal juízo seja tão pertinente, dada a evolução recente do sistema capitalista. Em termos sinóticos, podemos constatar que o capitalismo contemporâneo passou por duas fases sequenciais: uma primeira, com início nos anos 80 do século passado, pôs o Estado e as políticas públicas ao serviço dos interesses económico-financeiros, por intermédio dos princípios ideológicos neoliberais dos consulados Reagan-Thatcher – desregulamentação financeira, privatização dos serviços públicos e um grau extremo de exploração laboral (com o inevitável agravamento das desigualdades sociais); vemos agora, após o breve sobressalto da crise financeira dos inícios do século XXI, o próprio mundo empresarial a assumir as responsabilidades governativas, submetendo organicamente os interesses comunitários aos interesses privados. Se a primeira destas fases nasceu nos EUA e se estendeu ao continente europeu, a segunda teve origem na Europa, com Sílvio Berlusconi, tendo sido exportada – com estrondo! – para o Novo Mundo, através da governação de Donald Trump. Doravante, deparamo-nos com o retorno a uma espécie de “acumulação primitiva de capital” – basicamente uma economia de saque e coação – que foi característica da emergência do capitalismo, há duzentos anos. Mas com uma diferença assinalável; dispensada a intermediação da classe política, é a casta empresarial, alcandorada no poder, que gere diretamente os seus interesses.
Esta nova fase de desenvolvimento capitalista, que denominamos (à falta de melhor designação) de “tardo-capitalista”, não significa que o capitalismo esteja em crise, mas sim que entrou num novo período, potencialmente disruptivo, é certo, mas ainda generalizadamente funcional. Sobre a dissolução ou regeneração do sistema, só o futuro nos poderá elucidar. O que temos como certo é que a emergência deste paradigma de poder implica, desde já, uma luta política muito resoluta. Ainda que as disfuncionalidades apresentadas possam vir a ser fatais para a sobrevivência do sistema, o preço a pagar pela implantação deste modelo radical de empresarialização das sociedades é, mesmo em termos civilizacionais, demasiado alto para que a prioridade dada à sua contestação seja escamoteada. Não podemos hesitar em combater um inimigo óbvio, em detrimento de adversários porventura mais próximos e concorrenciais, mas, ainda assim, menos letais. Lembremos a cegueira sectária da Internacional Comunista do início dos anos 30 do século XX que, subestimando de forma inacreditável o avanço do nacional-socialismo na Alemanha, elegeu os trabalhistas e sociais-democratas como os seus principais inimigos – apelidados então de “sociais-fascistas” (cf. Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos. História Breve do Século XX (1914-1991), Lisboa, Presença, 1996, pp. 110-111). Palmiro Togliatti, o líder comunista italiano, chegou a ser admoestado por Moscovo, quando sugeriu que a social-democracia não seria o principal inimigo da esquerda, pelo menos em Itália: estávamos em 1933 (a Itália vivia sob uma ditadura fascista desde 1925)!
Assistimos assim à emergência de um novo paradigma de poder. Não é por acaso que, quando se dirigiu pela primeira vez ao Congresso do EUA no último dia do passado mês de fevereiro, Donald Trump tenha reafirmado a intenção de avançar com uma “grande, grande redução de impostos” para as empresas norte-americanas, para “que elas possam competir em qualquer lado e contra todos”. Para além desta “reforma tributária histórica”, como a caracterizou, prometeu “fazer com que seja fácil para as empresas negociarem nos EUA e muito mais difícil sair”, anunciando também que iria pedir ao Congresso para aprovar um investimento em infraestruturas no valor de um bilião de dólares (embora nunca tenha explicado como vai garantir esse financiamento).
Claro que no “fact checking” do discurso presidencial feito pela agência noticiosa AP e pelo jornal The New York Times (cf. DN, 2/3/2017), muitas das afirmações proferidas pelo atual inquilino da Casa Branca apenas podem ser entendidas no âmbito do que se tem vindo a designar por “pós-verdade”, ou seja, o rol de mentiras descaradas a que o consulado trumpista nos tem habituado. Falando sobre a criação de empregos – "Desde que fui eleito, a Ford, Fiat-Chrysler, General Motors, Sprint, Softbank, Lockheed, Intel, Walmart e muitas outras anunciaram que iriam investir milhares de milhões de dólares nos Estados Unidos e que iriam criar dezenas de milhares de novos empregos para americanos"–, Trump chama a si o mérito de decisões que há muito tinham sido tomadas, em alguns casos, mesmo antes das eleições presidenciais, como a decisão da Intel de construir uma fábrica de componentes eletrónicos no Arizona, tomada ainda durante a presidência Obama. No caso da Sprint, o recente anúncio de novas contratações por parte desta empresa de telecomunicações segue-se a um processo maciço de despedimentos que faz com que o saldo de empregos criados seja largamente negativo. Em anterior ocasião, Trump tinha dito enormidades como “Vou ser o maior criador de empregos que Deus alguma vez criou.”, afirmação que obviamente não merece comentários. Um outro exemplo dos embustes da administração Trump diz respeito ao orçamento para a Defesa, com o presidente a prometer “um dos maiores aumentos na despesa com Defesa nacional da história americana", quando as contas verdadeiras são que, nos últimos anos, o Congresso aumentou por três vezes o orçamento da Defesa em valores superiores aos 10% propostos por Trump: 14,3% em 2002, 11,3% em 2003 e 10,9% em 2008, segundo os próprios dados do Departamento da Defesa citados pela AP. Elucidativo!
A desregulação da economia que Trump promete efetivar, bem como a possiblidade dada aos empresários de uma total liberdade na administração da força de trabalho, serve às mil maravilhas os interesses do capitalismo financeiro globalizado, fazendo ressoar o célebre dito de um magnata de Detroit, “o que é bom para a General Motors é bom para os EUA” ou as palavras de Ronald Reagan, “o governo não é a solução, mas o problema”. Um exemplo flagrante do nepotismo promovido pelo clã Trump foi a inacreditável posição “oficial” da administração americana na promoção das roupas da marca “Ivanka Trump”, com uma das principais assessoras da Casa Branca, Kellyanne Conway, a sugerir explicitamente, em entrevista ao canal Fox News, “Saiam e comprem coisas de Ivanka. Eu vou sair e comprar algo. É um linha de roupa maravilhosa. Eu tenho algumas peças. Vou fazer publicidade gratuita. Saiam e comprem.”, após o próprio presidente se ter queixado da rede comercial Nordstorm, que retirou esta marca das suas lojas, alegando a pouca procura dos seus produtos: “Minha filha Ivanka recebeu um tratamento tão injusto da Nordstrom. Ela é uma ótima pessoa, sempre me estimulando a fazer o correto! Terrível!”, escreveu Trump na sua conta pessoal e no perfil da Presidência dos EUA no Twitter. Terrível, de facto, o estado a que se chegou! Este descarado favorecimento dos interesses privados de familiares próximos do presidente por parte do governo norte-americano, para além de um comportamento eticamente abjeto e de uma indescritivel indigência intelectual, revela uma faceta ainda mais grave do poder da oligarquia governativa dos EUA.
O editor executivo do semanário norte-americano Workers World, John Catalinotto, revela-nos quem acompanha Donald Trump nesta sua missão (cf. Seara Nova, nº 1737, 2016). Atentemos em alguns exemplos: no Department (que traduziremos por Ministério) do Trabalho temos Andrew F. Puzder, multimilionário e dono da cadeia de restaurantes de fast food CKE, que empregam 70 mil pessoas. Foi, desde sempre, opositor à introdução de um salário mínimo e do pagamento de horas extraordinárias. No Ministério da Economia, Wilbur Ross, especulador financeiro que tem uma fortuna avaliada pela revista Forbes em perto de 3 mil milhões de dólares, é conhecido como o “rei das falências” e acusado de não cumprir as suas obrigações fiscais. Steven Mnuchin, multimilionário e ex-dirigente do Goldman Sachs (banco para o qual trabalhou durante 20 anos) e que omitiu 100 milhões de dólares de rendimentos da sua declaração de impostos é, agora, Ministro das Finanças. Juntamente com Gary Cohn, outro ex-dirigente da Goldman Sachs e atual responsável pelo Conselho Económico Nacional, asseguram a ligação – será melhor dizer, dependência – da Casa Branca relativamente a este polémico gigante financeiro. O secretário de Estado, Rex Tillerson, era o presidente da multinacional petrolífera Exxon, para já não falar do próprio Donald Trump que, a contragosto, deixou os seus múltiplos interesses empresariais a cargo de familiares, que depois contratou como seus conselheiros (o mesmo Trump que, como se sabe, se gaba de não cumprir as obrigações fiscais e que recusa a divulgação das suas declarações de impostos).
Outras personalidades com ligações igualmente controversas, estão presentes no executivo de Trump: Betsey De Vos, filha de multimilionário e casada com outro, o herdeiro da Amway Corp (avaliada em 5,5 mil milhões de dólares), foi responsável pela promoção do ensino privado em alternativa à escola pública no Estado de Michigan; é agora ministra da Educação. Scott Pruit, empresário da indústria mineira, não acredita que as alterações climáticas tenham o contributo da ação humana; é o atual responsável pela Agência Ambiental, instituição governamental que, desde logo, prometeu desmantelar, bem como`eliminar as mais importantes regulamentações em matéria ambiental. Olhando para estes e outros exemplos do elenco governativo norte-americano, Catalinotto conclui: “O novo presidente dos EUA está rodeado de milionários e patrões.” Aliás, a estimativa da fortuna combinada da equipa ministerial de Donald Trump, segundo a NBC, é de cerca de 14.500 milhões de dólares, o equivalente aos rendimentos da terça parte mais pobre dos norte-americanos – 43 milhões de pessoas (Visão, 26/1/2017). Se isto não é o sistema…?
A referência, neste contexto ideológico, ao “povo” como ultima ratio num suposto confronto com as elites, não pode deixar de ser profundamente demagógica e revelar uma hipocrisia sem limites [e não é a própria Marine Le Pen que se apresenta, precisamente, como a “candidata do povo contra o dinheiro”? (DN, 6/2/2017)]. Para o antropólogo indiano Arjun Appadurai, a mensagem económica com que Trump se apresenta aos americanos é muito simples: “deixem os ricos ser ricos e alguma coisa sobrará para vocês.” (Público, 18/12/2016). E, por isso, a retórica do “make America great again”, significa sobretudo a total submissão aos ditames da plutocracia reinante. As intenções proclamadas do “America first” parecem, aliás, esvair-se nos meros interesses privados do próprio Trump; como sugere Rui Tavares, “Calou-se na questão chinesa mal a China lhe aprovou a marca comercial «Trump» por dez anos.” (Público, 6/3/2017). Em todo o caso, será no aprofundamento da desigualdade e exclusão sociais, que Trump prometeu ao seu eleitorado combater, mas que o ADN da sua Administração irá certamente agravar – ainda que se possam verificar ocasionais melhorias económicas – que estará a chave para a derrota desta versão hard do modelo societário neoliberal. E ainda que as forças políticas sociais-democratas e liberais não sejam, no atual statu quo, os inimigos principais da esquerda, não se pode deixar de lhes assacar as enormes responsabilidades que tiveram na construção da situação em que vivemos, alimentando as disfuncionalidades do “capitalismo de casino” e abrindo caminho à ascensão de partidos e personalidades de extrema-direita. É que, como diz Viriato Soromenho-Marques, “Trump é um esquisso a cores berrantes da tragédia crescente em que se transformou a política contemporânea nos últimos 30 anos. Quando a política deixou aos mercados (os mesmos que agora exultam com as guloseimas fiscais que Trump lhes irá oferecer no curto prazo) a condução dos assuntos do mundo. Sem regulação e em roda livre.” (DN, 22/2/2017).
Hugo Fernandez