Já quase tudo foi dito sobre o caso de Alexandra Reis e como foi possível uma gestora ter sido agraciada por uma empresa pública (a TAP) com meio milhão de euros de indemnização (inicialmente seria o triplo) por um suposto despedimento que nunca se chegou a comprovar para, logo a seguir, ingressar nos quadros de outra empresa pública (a NAV) e finalmente ter sido chamada ao Governo – pasme-se – como secretária de Estado do Tesouro. E o pior é que, com toda a probabilidade, foi tudo feito no mais escrupuloso cumprimento da lei. Ora, como justamente sublinha Carmo Afonso na sua habitual crónica no Público (28/12/2022), “O sentimento de injustiça que ele suscita não tem acolhimento na lei, mas paira sobre demasiados princípios. […] Tem de se tornar clara a linha que separa um comportamento incorreto de um comportamento racional que procura otimizar as oportunidades que surgem.” Para além da enorme disparidade de rendimentos entre a gestora (uma vez que a suposta indemnização terá sido calculada com base na sua remuneração e no tempo que faltava para o termo do seu mandato) e os funcionários da TAP (com cortes salariais draconianos e cujo cálculo de indemnizações por despedimento – e foram aos milhares na reestruturação da empresa de que ela também foi responsável – nem de perto nem de longe se lhe pode comparar), há um problema de fundo que foi largamente ignorado; o dos “hipersalários” dos quadros empresariais dirigentes, em todo o mundo.
Neste ponto, importa atentar nas conclusões do economista francês Thomas Piketty que nos fala mesmo de níveis de remuneração “inéditos na história” (cf. Thomas Piketty, Le Capital au XXI siècle, Paris, Seuil, 2013, p. 477). A explosão das remunerações destes “super-quadros” dirigentes das grandes empresas sustenta a fórmula avançada por este autor – r>g – que significa que o rendimento de capital é maior que a taxa de crescimento do rendimento nacional, sendo que r é o rendimento do capital – medindo os proventos anuais de um capital, qualquer que seja a forma jurídica que tomam esses rendimentos (lucros, juros, rendas, dividendos, royalties, mais-valias, etc) – e g a taxa de crescimento da economia, equivalente ao crescimento do rendimento nacional. Quanto mais a taxa de rentabilidade do capital exceder a taxa de crescimento da economia (r>g), mais a riqueza se acumula no topo e mais desigual é a sua repartição. Quando a taxa de crescimento da produção mundial se situa entre 1,5-2% em média e a taxa de rendimento puro do capital (antes dos impostos), 4,5-5% em média, com tendência para aumentar esta discrepância (ibid., p. 561), isso dá-nos bem a medida não só da extrema desigualdade na distribuição de riqueza da atual fase de exploração capitalista (por ele designada “capitalismo patrimonial”), como para a grave distorção que induz no funcionamento das nossas sociedades.
Piketty dá-nos o exemplo paradigmático dos EUA que, seguindo a tendência da enorme acumulação da riqueza no 1% do topo dos rendimentos nos últimos 30 anos, essa acumulação é ainda mais espetacular no decil superior desse 1%, onde os 400 americanos mais ricos, com ativos combinados superiores a 2 biliões de dólares, possuíam no início da segunda década do século XXI, uma riqueza equivalente à dos 41 milhões de afro-americanos desse país, constituindo o que o autor francês designa por “classe de casta”, tal a disparidade de rendimentos, a concentração extrema da riqueza e o exclusivismo social que engendra. Em 2010, a percentagem na riqueza nacional dos 10% de americanos mais abastados ultrapassava os 70%, e a parte do 1% do topo rondava os 35%. Em contrapartida, os 50% mais pobres passaram dos 20% do rendimento nacional em 1980 para pouco mais de 12% em 2018 (cf. Thomas Piketty, Capital et Idéologie, Paris, Seuil, 2019, p. 52).
Como se atingem tais disparidades de rendimento? Enquanto as teorias económicas tradicionais consideram que os salários, independentemente do seu nível, são determinados pela produtividade do trabalhador (teoria da produtividade marginal), Piketty afirma que isso não faz qualquer sentido, pois o que conta é o poder negocial no mercado laboral (e a consequente influência social e política na comunidade) e não a produtividade. Os gestores de topo estão em condições de estabelecer os seus próprios salários, ao passo que a generalidade dos trabalhadores não têm essa possibilidade. Piketty dá-nos o exemplo de uma grande empresa multinacional que emprega 100 mil trabalhadores em todo o mundo e tem um volume de negócios anual de cerca de 10 biliões de euros, dispondo cerca de metade deste valor para a remuneração dos seus funcionários, isto é, uma média de 50 000 euros anuais por assalariado. Como refere o economista francês, “Pour fixer le salaire du directeur financier de la société (ou de ses adjoints, ou du directeur du marketing et de son equipe, etc.), il faudrait en principe estimer sa productivité marginale, c’est-à-dire sa contribution aux 5 milliards d’euros de valeur ajoutée: est-elle de 100 000 euros, 500 000 euros ou 5 millions d’euros par an? Il est évidemment impossible de répondre précisément et objectivement à cette question. […] On voit bien que l’estimation obtenue serait inévitablement extrêmement approximative, avec une marge d’erreur beaucoup plus importante que la rémunération maximale envisageable pour ce poste, y compris dans un environnement économique totalement stable.” (Piketty, Le Capital, p. 526), acrescentando mais adiante, “En tout état de cause, compte tenu de l’impossibilité d’estimer précisément la contribution de chacun à la production de l’entreprise considérée, il est inévitable que les décisions issues de tels processus soient en grande partie arbitraires, et dépendent des rapports de force et des pouvoirs de négociation des uns et des autres.” (ibid., p. 527). É certo que o critério das qualificações e competências específicas impõe certos limites à fixação de salários. Mas, como sublinha Piketty, “notamment au sein des hiérarchies managériales des grandes sociétés, les marges d’erreur sur les productivités individuelles deviennent considérables.”, para concluir, “Le pouvoir explicatif de la technologie et des qualifications devient alors de plus en plus faible, et celui des normes sociales de plus en plus fort.” (ibid., p. 530); grassa o compadrio e o amiguismo. Pode-se então encarar com normalidade que o percentil superior das remunerações atinja 30% ou mais da massa salarial numa empresa? Trata-se, obviamente, de um absurdo!
A fixação destes “hipersalários” pouco tem a ver com qualquer lógica racional de produtividade, sendo difícil descortinarmos as variações e volumes observados na remuneração dos quadros dirigentes e a performance das respetivas instituições. São sobejamente conhecidos os casos de prémios avultados a gestores que levaram as suas empresas à falência ou de indemnizações chorudas na sequência de decisões estratégicas desastrosas, para já não falar do aproveitamento de prolongadas situações de monopólio ou de generosas concessões públicas de financiamento a empresas “grandes demais para falir”; o que se passou com a crise financeira de 2008 é um exemplo paradigmático de tais situações. Os supergestores ou superexecutivos corporativos atribuem-se a si próprios chorudos salários e compensações. Por isso, qualquer ideia de esforço ou mérito, alicerçados na teoria económica da produtividade marginal – que faz corresponder as remunerações à produtividade de cada um – é, neste contexto, um mito. Pelo contrário, e a partir de determinado nível, é o poder político e social das classes possidentes que determina a concentração da riqueza e os números astronómicos dos rendimentos destes dirigentes. A contribuição que dão para a valorização das empresas é, em grande medida, uma falácia. A sua principal preocupação é aumentar os seus proventos, despedindo trabalhadores e encarecendo os produtos e serviços que colocam no mercado, em implacáveis processos de reestruturação e em despudoradas derivas especulativas. Da mesma forma, os salários baixos pagos aos trabalhadores têm a ver com uma avaliação social negativa e o pouco peso político que têm na sociedade, e não com qualquer apreciação racional sobre a penosidade, a complexidade do trabalho ou as competências requeridas. É o poder negocial e a apreciação social das partes envolvidas que verdadeiramente determina as decisões remuneratórias. Até porque os comités de remunerações são constituídos por quadros dirigentes, eles próprios com elevados níveis salariais, limitando-se as assembleias de acionistas a sufragar as suas decisões. Como conclui António Guerreiro, “A grande mentira implícita nos hipersalários da burguesia remunerada em excesso é a de que refletem um valor de mercado e a eles acede por mérito quem detém competências e conhecimentos raros que geram valores enormes.” (Público, 30/12/2022).
Como vimos, nada mais falacioso. A sua origem radica, verdadeiramente, numa arbitragem endógena de interesses e benefícios que têm mais a ver com a afirmação do poder das empresas em causa perante as suas concorrentes – uma espécie de potlatch empresarial – em que o que se perde em investimento produtivo, se pensa vir a ganhar em reconhecimento, prestígio e afirmação. As despesas de representação e o exclusivismo social sobrepõem-se às lógicas mercantis e à eficiência empresarial. Esta concentração de rendimentos no topo da estrutura de remunerações não corresponde a qualquer meritocracia de desempenho, mas a um verdadeiro estatuto de privilégio. O empreendedorismo transforma-se, assim, em escandalosa sinecura. Mais do que desigualdades funcionais, como é o caso das disparidades de remuneração em função de competências ou responsabilidades acrescidas no seio da organização – ou seja, pelo efeito de exigências funcionais que indexem as retribuições à respetiva contribuição para os resultados da empresa – o que temos é uma competição pela notoriedade. A um princípio racional de justificação e legitimidade, passamos rapidamente ao exclusivismo do arbítrio e do desperdício sumptuário. Estaremos, em pleno século XXI, a reconstituir a sociedade estamental do Antigo Regime?
Até o insuspeito – porque assumidamente liberal – analista político Pedro Marques Lopes, numa crónica na Visão (19/1/2023) intitulada “Os salários dos gestores e o capitalismo”, cita o blogue de esquerda Ladrões de Bicicletas, onde se lê que, em Portugal, “Entre 2010 e 2017, os gestores de topo viram o seu rendimento aumentar 49,7%, ao mesmo tempo que o rendimento médio dos trabalhadores diminuiu 6,2%. O rácio médio entre o salário dos gestores e o dos trabalhadores passou de 24:1 para 33:1. […] Em 2021, os presidentes-executivos das principais empresas cotadas na bolsa portuguesa continuavam a receber, em média, 32 vezes mais do que os trabalhadores.” Aduzindo também o exemplo “particularmente chocante” do CEO da Jerónimo Martins, cujo salário é 262 vezes superior à média dos trabalhadores da empresa, Pedro Marques Lopes chega à seguinte conclusão: “Não há forma de o maior defensor do capitalismo conseguir provar a um trabalhador de uma empresa, em que a disparidade salarial é tão gritante, que há qualquer lógica nisto e que essa diferença é boa para a comunidade. E não há forma porque é exatamente o seu contrário.” Nem mais!
Hugo Fernandez