A recente discussão e chumbo, na Assembleia da República, do projecto-lei apresentado pelo CDS-PP, que previa a suspensão do actual modelo de avaliação dos professores e a implementação de mecanismos para a resolução do problema, permitindo a pacificação do conflito existente entre o Governo PS-Sócrates e os profissionais da educação, é um exemplo sintomático do sentido da política do actual Executivo. O único comentário que o assunto mereceu a José Sócrates foi que Vejo muita gente do PS a achar que não devemos fazer alianças com o CDS, mas vi agora alguns elementos do PS a votar com o CDS, e não gostei (Público, 24/01/09). De que estaria ele a falar? Não certamente da educação e dos problemas do ensino público em Portugal. Mas não era precisamente isso que estava em causa? O que é que, afinal, move Sócrates e o seu partido? Reduzindo a questão a uma mera luta político-partidária, o PS demonstrou um absoluto desprezo pela contestação de toda uma classe profissional e uma completa insensibilidade pelos problemas do sector. Mais. Fazendo valer um poder absoluto que considera ter-lhe sido atribuído nas últimas eleições, reduziu a acção política ao pressuposto totalitário da omnisciência e infalibilidade, tendo como único objectivo a imposição, por todos os meios possíveis, dos seus diktat.
Desprezando sobranceiramente a clássica definição lincolniana da democracia como o poder do povo, pelo povo e para o povo, confunde-se maioria absoluta com absolutismo, com o quero, posso e mando mais desbragado, com o autismo mais obsessivo e com a pretensão mais absurda de ser dono da verdade, mesmo quando a quase totalidade dos representantes do sector da educação, provenientes de todas as áreas e orientações partidárias, incluindo mesmo destacados dirigentes e deputados socialistas, rejeitam a política seguida. A acção governativa deixa, assim, de ter como objectivo o bem comum no governo da polis, através do debate e da procura partilhada de soluções o agir comunicacional de que falava Habermas , para passar a ser um mero exercício discricionário de poder, autoritário na forma e totalitário na substância. Governar contra as pessoas não é próprio da democracia, mas sim das engenharias sociais características das piores ditaduras. Ora, é bom que o PS tenha consciência que ninguém votou nisto e ninguém plebiscitou o fim da democracia.
Ter maioria eleitoral absoluta significa, pelo contrário, ter maior empenho na procura de soluções bem fundamentadas, tendo a preocupação de ouvir o máximo de intervenientes possíveis, de obter toda a informação disponível, de analisar as propostas existentes, de discutir soluções, de procurar compromissos e entendimentos, já que se tem a responsabilidade exclusiva pela decisão governativa. Nunca pode significar auto-suficiência, nem ensimesmamento. Não é ter uma posição completamente autista, recusando todo e qualquer diálogo com os interessados e antagonizando sistematicamente as suas organizações representativas. Em democracia, a maioria absoluta responsabiliza pela decisão e, por isso, obriga ao aconselhamento e ao debate.
Por outro lado, maioria absoluta não significa um cheque em branco passado pelo eleitorado para, em todo o tempo e sobre qualquer assunto, o Governo poder fazer o que bem lhe apetece. Esta é uma visão francamente redutora do que é a democracia. Especialmente quando, como é o caso da Educação, há uma unanimidade inédita na reacção às medidas tomadas e um alerta geral sobre a degradação das condições de ensino nas escolas públicas. Até para se evitarem erros grosseiros e situações politicamente embaraçosas, de que é exemplo paradigmático a obstinação do ministro Mário Lino a propósito da localização do novo aeroporto de Lisboa e da sua tão famosa quanto caricata afirmação Alcochete, jamais!. Lembram-se?
Quanto às questões da Educação para o Governo PS-Sócrates, estamos conversados. Como diz a expressão popular, não sabe, não quer saber e tem raiva a quem saiba. Mas esta postura totalitária, por mais absurda que pareça, tem um significado muito mais profundo e preocupante. É que, como afirmou o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, O fascismo não é uma ameaça. O fascismo está entre nós. (Reinventar a Democracia, 1998). Com efeito, o fascismo societal de que fala, revela-se no sistemático predomínio dos factores de instabilidade e exclusão social, em vez da preocupação com a inclusão que o contrato social da modernidade pressupunha. Para este autor, O fascismo societal convive tanto mais facilmente com a democracia política quanto esta perde a capacidade para redistribuir recursos e oportunidades. Assim debilitada, a democracia passa a ser uma democracia de baixa intensidade. Ora, os sinais crescentes desta realidade, implementados pela acção premeditada do actual governo, denunciam intenções e procedimentos de extrema perigosidade para a nossa vida colectiva.
Não é por acaso que também José Gil intitula uma sua crónica na revista Visão (2/10/08), de A domesticação da sociedade. Esta espécie de servidão voluntária, de que falava La Boétie, resulta precisamente do mecanismo de perversão política usado pelo Governo PS-Sócrates para domar os espíritos, baseando-se na estratégia reiterada de ausência total de resposta a todo o tipo de protestos. ( ) Ausentando-se da contenda, tornando-se ausente acrescenta Gil o poder torna a realidade ausente e pendura o adversário num limbo irreal. Deixando intactos os meios da contestação, mas fazendo desaparecer o seu alvo, desinscreve-os do real. É uma técnica de não-inscrição. Perante a absoluta inutilidade da contestação e o impacto insuportável do nada, inicia-se o processo de interiorização da obediência. Mais tarde sobrevirá o amor à servidão ou, nas palavras premonitórias de António Vitorino no dia da tomada de posse do actual Governo, habituem-se!. Para o filósofo, estas São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento, e de fabricação de subjectividades obedientes., no que é designado por desactivação da acção, isto é, a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos psicóticos. O autor conclui que o português voltou à inércia e à passividade face às transformações inelutáveis que abalaram a sua existência como um destino. Parece estarmos perante uma espécie de Fado, Fátima e Futebol da pós-modernidade neo-liberal, naquilo que, numa conhecida obra, José Gil já tinha caracterizado de forma certeira como o medo de existir. O que é particularmente significativo e, simultaneamente assustador, é que José Gil dê como exemplo emblemático deste processo, precisamente o dos professores. Terá razão?
Hugo Fernandez