Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Quinta-feira, 20 de Junho de 2013
IRRELEVANTE

 

Não há pior defeito num decisor político do que a obstinação. Porque, ao contrário da convicção, a obstinação é uma atitude sobretudo irrealista e, nessa medida, perigosamente irracional. Enquanto a convicção labora em quadros mais ou menos alargados de inteligibilidade das sociedades em que está inserida e aponta alternativas e soluções para os seus problemas, a obstinação distancia-se dessa realidade e constrói um cenário profundamente autista e autorreferencial. Confrontando a realidade, procura substituir-se-lhe, criando todo o tipo de mitos e distorções ideológicas que passam a justificar os mais perversos empreendimentos governativos. É a política em circuito fechado, alimentada pelo espírito de fação no seu estado mais puro.

Em última análise, é esta atitude que está na base da construção dos universos totalitários que, em qualquer caso, só pode estar nos antípodas da vivência democrática. Atente-se, a este propósito, na apresentação que Pacheco Pereira fez do recém-publicado livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar, transcrito no jornal Público (2/6/2013), onde se pode ler “Esta história (…) é, para utilizar uma palavra contemporânea, a história de um ajustamento. Salazar, o seu grupo e as pessoas à volta deles ajustaram o Portugal que existia à sua ideia de Portugal, aos seus mitos, às suas conceções, às suas ideias. Este ajustamento, chamemos-lhe assim, foi feito com enormes custos sociais, humanos e políticos.”

            O governante obstinado persegue objetivos muito determinados. Raras vezes claros, nunca justificados. Sente-se um iluminado e, por isso, acima dos demais. Perante as circunstâncias e dados da realidade apresenta uma posição distanciada e arrogante. Na verdade, se esta não é mais do que um incómodo no desenrolar das suas elucubrações, aquele assume-se como uma espécie de aprendiz de feiticeiro, um demiurgo de evidências inconfessadas e de interesses obscuros. O seu desassombro espanta, o seu desprezo pelos outros assusta. É este o retrato que melhor caracteriza os nossos atuais governantes e, em particular, o seu elemento mais paradigmático: falamos, evidentemente, do ministro Vitor Gaspar.

A sobranceria com que apresenta orçamentos retificativos para corrigir cálculos e previsões sistematicamente erradas, o desplante com que impõe as medidas mais duras à população – por exemplo, o que há tempos designou como “brutal aumento de impostos” –, a descarada surpresa com que encara os dados da contração económica, do galopante aumento do défice e da dívida pública, da destruição do nosso tecido produtivo, do desemprego e da miséria crescentes, como se estes indicadores não resultassem das decisões por ele tomadas, indiciam a mesma atitude experimentalista e de distanciamento da realidade. Só esta postura delirante pode explicar o espantoso Documento de Estratégia Orçamental, emanado do Ministério das Finanças, que prevê para os próximos anos – e mantendo a mesma receita económico-financeira que nos trouxe até aqui – um crescimento do PIB de 2,2% (tem estado nos 2,3% negativos), uma taxa de desemprego de 16,7% (os últimos números, para este ano, apontam para os 17,9%), um défice de 0,2% (foi de 6,4% em 2012 e no primeiro trimestre de 2013 atingiu os 8%) e uma dívida externa de 115% (quando, neste momento, atinge os 126% e em 2014 deverá superar os 132% do PIB, muito acima do que o próprio FMI considera economicamente reembolsável).

A postura rigidamente tecnocrática que assume fere a própria legitimidade democrática do cargo, enquanto ministro de um governo que resultou do sufrágio popular. Quando, no início de maio, foi questionado no Parlamento pela deputada Ana Drago acerca das negociatas das empresas públicas e dos famosos swaps, mostrou-se sumamente incomodado com o facto de estar no governo enquanto representante político dos cidadãos, a quem tem a obrigação de prestar contas: “Não fui eleito coisíssima nenhuma”, afirmou com indisfarçável orgulho. Num comentário certeiro sobre estas palavras, Daniel Oliveira dirá “Gaspar não tem um mandato. Tem uma missão. Não faz escolhas políticas. Toma decisões técnicas. Não tem um programa de governo a seguir. Aplica modelos. Não depende da lei, da legitimidade do voto, da democracia. Limita-se a executar o que não se questiona, porque a dúvida não tem qualquer validade na cabeça de um fanático. E não há pior fanático do que aquele que se julga um mero executor da fria técnica. A história está cheia deles e dos seus sinistros legados.” (Expresso online, 5/5/2013).

A prossecução de uma política austeritária suicida, o agravamento de uma espiral recessiva que parece não ter fim, a ruína do país e dos portugueses, são as marcas indeléveis da sua ação ao serviço do governo de Passos Coelho. Mas a revelação pública do que o afligiu nos últimos tempos prende-se, afinal, com algo bem mais prosaico: os desaires futebolísticos do Benfica! Com todo o respeito que possamos ter por essa instituição desportiva, parece-me que, face à gravidade da atual situação económica e social portuguesa, um ministro das Finanças devia claramente ter outras preocupações em mente. E que isso tenha sido afirmado num almoço na Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola, no passado dia 29 de maio, parece-me por demais absurdo.

E que dizer do inesperado protagonismo meteorológico no desempenho económico do país? É que, por mais que isso nos espante, foi com o clima que Vìtor Gaspar explicou a queda do investimento e a recessão de 4% no início deste ano. Considerou o ministro, em pleno Parlamento, que tal indicador estava “adversamente afetado pelas condições meteorológicas que, no primeiro trimestre, afetaram a atividade da construção” (Público, 8/6/2013). Será parvo? Estará doido? Não, está a gozar connosco. Como sente um olímpico desprezo pelo comum dos mortais, não lhe merecemos nenhum respeito. Ignorando os seus concidadãos, considera que não lhes deve qualquer tipo de justificação minimamente razoável.

            Por uma vez se descompôs. Gaspar ficou zangado, muito zangado. O ministro não gostou que um jornalista português fizesse, na sua presença, uma pergunta ao presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, sobre a situação política em Portugal, numa conferência de imprensa, nos finais de maio, no Ministério das Finanças. Questionou o jornalista Anselmo Crespo, da SIC, “Eu gostava de saber se foi ou não foi pedido pelo Governo português para se discutirem nas próximas reuniões do Eurogrupo um ajustamento do défice do próximo ano de 4 para 4,5% e se é esse o tipo de ajustamento que poderá vir a ser necessário. Gostava também de lhe perguntar como vê a crise da coligação e se de alguma forma fica preocupado com as divergências que existem na coligação e na eventualidade de uma crise política em Portugal”. Após uma resposta evasiva e “politicamente correta” do político holandês, Gaspar teceu o seguinte comentário: “Relativamente à questão da existência de um pedido do Governo português, confesso que não consigo deixar de registar a deselegância de fazer a pergunta a um político estrangeiro na presença do representante do Governo português mandatado para conduzir essas negociações. Parece-me que ter essa atitude em Portugal e no Ministério das Finanças é uma atitude de uma enorme deselegância”. Não era a substância que lhe interessava, nem a circunstância, por demais evidente, da soberania nacional estar nas mãos da troika estrangeira – hipotecada que foi pelo governo português – que, por isso, determina a evolução do país e detém verdadeiramente as respostas que interessam aos portugueses. O que o agastou foi o facto de ter sido tão flagrantemente ignorado. Tinha, afinal, acabado de ser remetido para a sua real dimensão histórica – a irrelevância. A sua reação lembra-nos o que Luís da Silva Pereira Oliveira escreveu na obra Privilégios da Nobreza e Fidalguia de Portugal, de 1806, a propósito da superioridade do estatuto nobre: “ao Nobre faz injuriar quem o nomear, dizendo hum fulano; porque semelhante prolação supõe-no incógnito, e sem distinção da gentalha.” Foi isso que manifestamente desagradou ao ministro. Paciência.



Hugo Fernandez

 



publicado por albardeiro às 11:20
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Novembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
13
14
15
16

17
18
19
20
22
23

24
25
26
27
28
29
30


posts recentes

Quando acordei, a cultura...

LIDERAR ESTUDOS GLOBAIS: ...

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

AJUSTE DE CONTAS

arquivos

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub