Não há pior defeito num decisor político do que a obstinação. Porque, ao contrário da convicção, a obstinação é uma atitude sobretudo irrealista e, nessa medida, perigosamente irracional. Enquanto a convicção labora em quadros mais ou menos alargados de inteligibilidade das sociedades em que está inserida e aponta alternativas e soluções para os seus problemas, a obstinação distancia-se dessa realidade e constrói um cenário profundamente autista e autorreferencial. Confrontando a realidade, procura substituir-se-lhe, criando todo o tipo de mitos e distorções ideológicas que passam a justificar os mais perversos empreendimentos governativos. É a política em circuito fechado, alimentada pelo espírito de fação no seu estado mais puro.
Em última análise, é esta atitude que está na base da construção dos universos totalitários que, em qualquer caso, só pode estar nos antípodas da vivência democrática. Atente-se, a este propósito, na apresentação que Pacheco Pereira fez do recém-publicado livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar, transcrito no jornal Público (2/6/2013), onde se pode ler “Esta história (…) é, para utilizar uma palavra contemporânea, a história de um ajustamento. Salazar, o seu grupo e as pessoas à volta deles ajustaram o Portugal que existia à sua ideia de Portugal, aos seus mitos, às suas conceções, às suas ideias. Este ajustamento, chamemos-lhe assim, foi feito com enormes custos sociais, humanos e políticos.”
O governante obstinado persegue objetivos muito determinados. Raras vezes claros, nunca justificados. Sente-se um iluminado e, por isso, acima dos demais. Perante as circunstâncias e dados da realidade apresenta uma posição distanciada e arrogante. Na verdade, se esta não é mais do que um incómodo no desenrolar das suas elucubrações, aquele assume-se como uma espécie de aprendiz de feiticeiro, um demiurgo de evidências inconfessadas e de interesses obscuros. O seu desassombro espanta, o seu desprezo pelos outros assusta. É este o retrato que melhor caracteriza os nossos atuais governantes e, em particular, o seu elemento mais paradigmático: falamos, evidentemente, do ministro Vitor Gaspar.
A sobranceria com que apresenta orçamentos retificativos para corrigir cálculos e previsões sistematicamente erradas, o desplante com que impõe as medidas mais duras à população – por exemplo, o que há tempos designou como “brutal aumento de impostos” –, a descarada surpresa com que encara os dados da contração económica, do galopante aumento do défice e da dívida pública, da destruição do nosso tecido produtivo, do desemprego e da miséria crescentes, como se estes indicadores não resultassem das decisões por ele tomadas, indiciam a mesma atitude experimentalista e de distanciamento da realidade. Só esta postura delirante pode explicar o espantoso Documento de Estratégia Orçamental, emanado do Ministério das Finanças, que prevê para os próximos anos – e mantendo a mesma receita económico-financeira que nos trouxe até aqui – um crescimento do PIB de 2,2% (tem estado nos 2,3% negativos), uma taxa de desemprego de 16,7% (os últimos números, para este ano, apontam para os 17,9%), um défice de 0,2% (foi de 6,4% em 2012 e no primeiro trimestre de 2013 atingiu os 8%) e uma dívida externa de 115% (quando, neste momento, atinge os 126% e em 2014 deverá superar os 132% do PIB, muito acima do que o próprio FMI considera economicamente reembolsável).
A postura rigidamente tecnocrática que assume fere a própria legitimidade democrática do cargo, enquanto ministro de um governo que resultou do sufrágio popular. Quando, no início de maio, foi questionado no Parlamento pela deputada Ana Drago acerca das negociatas das empresas públicas e dos famosos swaps, mostrou-se sumamente incomodado com o facto de estar no governo enquanto representante político dos cidadãos, a quem tem a obrigação de prestar contas: “Não fui eleito coisíssima nenhuma”, afirmou com indisfarçável orgulho. Num comentário certeiro sobre estas palavras, Daniel Oliveira dirá “Gaspar não tem um mandato. Tem uma missão. Não faz escolhas políticas. Toma decisões técnicas. Não tem um programa de governo a seguir. Aplica modelos. Não depende da lei, da legitimidade do voto, da democracia. Limita-se a executar o que não se questiona, porque a dúvida não tem qualquer validade na cabeça de um fanático. E não há pior fanático do que aquele que se julga um mero executor da fria técnica. A história está cheia deles e dos seus sinistros legados.” (Expresso online, 5/5/2013).
A prossecução de uma política austeritária suicida, o agravamento de uma espiral recessiva que parece não ter fim, a ruína do país e dos portugueses, são as marcas indeléveis da sua ação ao serviço do governo de Passos Coelho. Mas a revelação pública do que o afligiu nos últimos tempos prende-se, afinal, com algo bem mais prosaico: os desaires futebolísticos do Benfica! Com todo o respeito que possamos ter por essa instituição desportiva, parece-me que, face à gravidade da atual situação económica e social portuguesa, um ministro das Finanças devia claramente ter outras preocupações em mente. E que isso tenha sido afirmado num almoço na Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola, no passado dia 29 de maio, parece-me por demais absurdo.
E que dizer do inesperado protagonismo meteorológico no desempenho económico do país? É que, por mais que isso nos espante, foi com o clima que Vìtor Gaspar explicou a queda do investimento e a recessão de 4% no início deste ano. Considerou o ministro, em pleno Parlamento, que tal indicador estava “adversamente afetado pelas condições meteorológicas que, no primeiro trimestre, afetaram a atividade da construção” (Público, 8/6/2013). Será parvo? Estará doido? Não, está a gozar connosco. Como sente um olímpico desprezo pelo comum dos mortais, não lhe merecemos nenhum respeito. Ignorando os seus concidadãos, considera que não lhes deve qualquer tipo de justificação minimamente razoável.
Por uma vez se descompôs. Gaspar ficou zangado, muito zangado. O ministro não gostou que um jornalista português fizesse, na sua presença, uma pergunta ao presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, sobre a situação política em Portugal, numa conferência de imprensa, nos finais de maio, no Ministério das Finanças. Questionou o jornalista Anselmo Crespo, da SIC, “Eu gostava de saber se foi ou não foi pedido pelo Governo português para se discutirem nas próximas reuniões do Eurogrupo um ajustamento do défice do próximo ano de 4 para 4,5% e se é esse o tipo de ajustamento que poderá vir a ser necessário. Gostava também de lhe perguntar como vê a crise da coligação e se de alguma forma fica preocupado com as divergências que existem na coligação e na eventualidade de uma crise política em Portugal”. Após uma resposta evasiva e “politicamente correta” do político holandês, Gaspar teceu o seguinte comentário: “Relativamente à questão da existência de um pedido do Governo português, confesso que não consigo deixar de registar a deselegância de fazer a pergunta a um político estrangeiro na presença do representante do Governo português mandatado para conduzir essas negociações. Parece-me que ter essa atitude em Portugal e no Ministério das Finanças é uma atitude de uma enorme deselegância”. Não era a substância que lhe interessava, nem a circunstância, por demais evidente, da soberania nacional estar nas mãos da troika estrangeira – hipotecada que foi pelo governo português – que, por isso, determina a evolução do país e detém verdadeiramente as respostas que interessam aos portugueses. O que o agastou foi o facto de ter sido tão flagrantemente ignorado. Tinha, afinal, acabado de ser remetido para a sua real dimensão histórica – a irrelevância. A sua reação lembra-nos o que Luís da Silva Pereira Oliveira escreveu na obra Privilégios da Nobreza e Fidalguia de Portugal, de 1806, a propósito da superioridade do estatuto nobre: “ao Nobre faz injuriar quem o nomear, dizendo hum fulano; porque semelhante prolação supõe-no incógnito, e sem distinção da gentalha.” Foi isso que manifestamente desagradou ao ministro. Paciência.
Hugo Fernandez