A escolha está, desde há muito, feita. O valor do lucro sobrepõe-se, de forma decisiva, ao valor do trabalho. A exploração substitui a decência, o preço do capital impõe-se à vida dos cidadãos. Não admira, aliás, que o sistema capitalista engendre tal ordem de coisas. Faz parte da sua natureza. O que talvez surpreenda é que, passados dois séculos da sua implantação, se assista, na sua versão neoliberal, à reposição de soluções próprias da centúria de oitocentos.
Com efeito, as medidas de austeridade que os governos da União Europeia têm vindo a adoptar seguem um sentido único. Favorecimento dos mercados, incentivo à especulação financeira, sujeição a todo o tipo de interesses e desmandos empresariais, preservação dos lucros mais fabulosos. Pelo contrário, assiste-se a um acentuado empobrecimento da generalidade da população, a uma desvalorização inexorável do factor-trabalho, a índices de exploração que começam, em alguns países, a assemelhar-se aos existentes nas primeiras unidades fabris de Manchester e de Birmingham ou das workhouses inglesas dos inícios da revolução industrial. Até o famoso exército de reserva laboral, constituído por um lumpen-proletariado de precários disponíveis para todo o serviço, em quaisquer condições e a qualquer preço de que nos falava Karl Marx, se vai rapidamente reconstituindo, alimentado pelo galopante desemprego que ameaça fazer submergir as nossas sociedades na indigência generalizada e na mais extremada e obscena desigualdade social. Talvez por isso, quando eclodiu a presente crise mundial, alguns epígonos do pensamento único dominante tenham mesmo admitido o retorno da luta de classes (como se esta alguma vez tivesse deixado de existir!).
O espectro do desemprego faz do direito ao trabalho e do trabalho com direitos uma simples miragem, sendo cada vez mais encarado como uma mera ingenuidade ou uma utopia delirante de alguns radicais. Seguindo o modelo do chamado capitalismo selvagem de há duzentos anos, a lógica subjacente à ordem neoliberal visa a exploração máxima dos trabalhadores, assegurando a mera sobrevivência de cada um, exclusivamente com vista à reprodução da força de trabalho. Deduzindo o preço do trabalho dos lucros a alcançar, os patrões pretendem impor, então como agora, um nível baixíssimo de remunerações e a manutenção de uma mão-de-obra barata e subserviente. Foi assim que, no século XIX, foi possível uma enorme acumulação de capital e a expansão inexorável do sistema capitalista, alimentado também pela situação de escravatura e esbulho desenfreado dos vastos territórios coloniais na posse das grandes potências industriais europeias.
Nem sempre, no entanto, isto foi assim. A longa e difícil luta dos trabalhadores e das suas organizações representativas ao longo da segunda metade do século XIX e inícios do XX, permitiu não só a melhoria das suas condições de trabalho e de vida (redução do horário de trabalho, aumento dos salários, descanso semanal e férias pagas, etc) como obrigou os governos liberais que governavam a Europa ao reconhecimento dos seus direitos e à adopção de políticas de protecção social (legalização dos sindicatos, legislação laboral, pagamento de reformas, protecção na doença e desemprego, etc). Passada a II Guerra Mundial e no âmbito do chamado Estado-Providência, houve um aumento considerável do nível de vida das classes trabalhadoras e um desenvolvimento efectivo das sociedades, que se traduziu numa dinâmica que, por um lado, possibilitava aos operários uma participação mais activa na vida das empresas (com experiências de gestão partilhada, trabalho colaborativo ou unidades autónomas de produção) e um consequente aumento da produtividade e, por outro, uma capacidade generalizada de consumo que levava ao próprio aumento da produção e dos respectivos lucros das empresas. Mais uma vez se assistia à expansão do sistema capitalista que, desta feita, possibilitava uma assinalável prosperidade colectiva (embora, obviamente, extremamente desigual).
O movimento da globalização e a instalação nos centros de poder da ideologia neoliberal e neoconservadora, a partir dos anos 80 do século passado, provocou uma profunda distorção dos mecanismos económicos existentes, agravando exponencialmente as tendências mais nefastas do sistema capitalista e da sua lógica implacável de maximização dos lucros. Com uma economia dimensionada a nível mundial e a uma escala que não se conhecia até então, multiplicaram-se exponencialmente os mercados de mão-de-obra e de consumo baratos, tornando dispensáveis os equilíbrios sociais que os países desenvolvidos tinham alcançado e, portanto, tornando dispensável a sua população trabalhadora. Sucederam-se o encerramento de empresas, as deslocalizações e o alastramento do desemprego. Mais do que isso. A possibilidade de auferir lucros astronómicos com as diferenças cambiais e a especulação financeira, relegaram a própria economia real isto é, aquela que efectivamente produz bens e serviços para um plano secundaríssimo, incentivando procedimentos de gula desenfreada e da mais completa falta de escrúpulos para com as populações que sofrem as suas consequências. Os capitalistas passaram não só a explorar os trabalhadores no mercado de trabalho, como se permitiram atingi-los na sua vida privada, sugando os seus parcos haveres numa espiral de consumismo desregulada e, em muitos casos, desonesta. Sucedeu-se o crédito fácil, a especulação imobiliária, os sistemas fraudulentos de seguros e de saúde, os fundos de pensões. Os casos Madoff, Freddie Mac, Fannie Mae ou Lehman Brothers aí estão para o demonstrar. Esta bolha especulativa foi a receita para o desastre de 2008 e para a maior crise social de que há memória, dada principalmente a sua dimensão planetária. É certo que, mais uma vez, o capitalismo conseguiu atenuar a baixa tendencial da taxa de lucro, permitindo a realização de gigantescas mais-valias nos contextos mais improváveis. Só que, como se verifica hoje, quando o nível das dívidas se torna insustentável, através de aplicações aventureiras que maximizam, no imediato, os lucros a níveis milagrosos e remetem os custos para a posteridade, deixa de haver liquidez para o financiamento da economia real, a recessão económica sobrevém e o desemprego explode. Este enorme custo social pode, a prazo, acabar por matar da cura.
Não deixa aliás de ser muito significativa a desvalorização com que, mesmo a nível simbólico, o trabalho é considerado, passando-se a usar eufemismos linguísticos que transformam trabalhadores em colaboradores e patrões em empregadores. Ou que fazem desaparecer o próprio vocábulo trabalho por artifícios como projecto ou desafio. Ou que remetem as medidas de restrição orçamental adoptadas pelos Governos para o domínio inócuo das opções técnicas e dos imperativos financeiros indelevelmente registados no célebre slogan neoliberal do there is no alternative e não das opções políticas e ideológicas que norteiam a sua acção. Ou que transformam a mentira em inverdades e que pretendem iludir, por exemplo, o facto dos enormes défices públicos existentes resultarem, em grande parte, da injecção de somas astronómicas de capital no salvamento das instituições financeiras e bancárias que, essas sim, foram as principais responsáveis pela crise.
Por cá assistimos ao desfiar de um conjunto de medidas de incentivo à economia por parte do governo PS-Sócrates, que reduz salários, corta o pagamento de horas extraordinárias, congela carreiras, flexibiliza horários e funções, deslocaliza compulsivamente trabalhadores, deteriora as condições de trabalho, debilita a contratação colectiva, reforça a precariedade, faz da proliferação de contratos individuais e da alocação individual da produtividade ao salário auferido (segundo objectivos impostos e não negociados, está bem de ver) a regra, procede à redefinição da justa causa para o despedimento e reduz as indemnizações pagas aos trabalhadores em caso de despedimento, facilitando o desemprego, conforme, aliás, é expressamente reconhecido pelo jurista António Monteiro Fernandes (Público, 9/12/2010), reconhecido especialista e professor universitário de Direito do Trabalho, que em 2007 coordenou o Livro Branco das Relações Laborais. Em consequência de tudo isto aí está a taxa de desemprego a atingir máximos históricos de 11,1% entre Maio e Setembro de 2010, de acordo com os dados recentemente divulgados pelo Eurostat (em 2000 era de apenas 3,9%, recorde-se). Isto para além do efeito cumulativo do corte brutal nas despesas sociais (pensões, abonos, custos com a educação e a saúde), do anémico investimento público ou da subida do IVA em dois pontos percentuais, para um recorde de 23%, um dos mais altos da Europa (só atrás da Dinamarca, da Suécia e da Hungria com 25%).
A cereja em cima do bolo é o perverso esquema daquilo que a jornalista São José Almeida designa por novo tipo de trabalhador (Público, 18/12/2010), que financiará o seu próprio despedimento através da criação de um fundo destinado a pagar as indemnizações para esse efeito (agora, sublinhe-se, reduzidos a 12 salários em vez dos 15 previstos na legislação anterior, para trabalhadores com carreiras contributivas que muitas vezes atingem trinta e mais anos de casa), fundo esse que será financiado pela massa salarial dos trabalhadores de cada empresa. Perfeito! Fosse beliscado um cabelo de um patrão e, como diz o aforismo, cairia o Carmo e a Trindade com a Torre de Belém às costas.
Ora o mesmo governo que empreende esta política anti-social e que vem agora quebrar o acordo estabelecido com os sindicatos e as entidades patronais de subida do salário mínimo para 500 euros a partir de 1 de Janeiro de 2011 é o mesmo que permite todo o tipo de diatribes aos detentores do capital, nomeadamente a imoral antecipação da distribuição de dividendos das empresas cotadas em Bolsa, para evitarem um quadro fiscal menos favorável previsto pelo Orçamento de Estado para o próximo ano, permitindo assim a atribuição aos accionistas de mais-valias superiores àquelas que poderão esperar futuramente. Tal é feito no exacto momento em que se exige à generalidade da população portuguesa múltiplas e pesadas restrições, chumbando-se desde logo um projecto de lei parlamentar de iniciativa do PCP que previa a sua taxação. A histeria sobre a eventualidade da aprovação desse diploma foi tão grande que levou mesmo à ameaça de demissão por parte do líder parlamentar socialista, Francisco Assis, perante o evidente incómodo que esta situação provocava na sua bancada e o risco de haver posições divergentes. É a mesma lógica neoliberal que preside ao protelamento de qualquer taxação das transacções bolsistas e à obscena manutenção dos paraísos fiscais para onde, segundo dados da própria Direcção-Geral dos Impostos, só no ano de 2009, terão sido transferidos, livres de qualquer contribuição, cerca de 700 milhões de euros. Ou à manutenção de uma posição de privilégio fiscal atribuída aos Bancos que só pagam 15% de IRC, quando qualquer pequena empresa é obrigada a pagar uma taxa de 25% apesar de, por outro lado, usufruírem de lucros fabulosos (calculados em cinco milhões de euros por dia). Não é certamente por acaso que alguém com a responsabilidade da directora do DCIAP, Cândida Almeida, reconhece que Há muitíssima evasão fiscal em Portugal (I, 14/12/2010), sublinhando que a fuga aos impostos por parte do mundo empresarial é um dos crimes que mais tem aumentado em Portugal.
Não haja, porém, qualquer dúvida que este regime austeritário, como lhe chama Sandra Monteiro (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, Novembro de 2010) poderá resultar não apenas em economias submersas em recessões prolongadas e sociedades mais desiguais e com menores níveis de bem-estar, mas também democracias tão irreconhecíveis que se tornam irrelevantes, senão mesmo dispensáveis. Talvez por isso, o economista Daniel Bessa aluda, sem qualquer espécie de pejo, em entrevista ao jornal Público (9/12/2010), que a redução do défice Noutros tempos, resolvia-se com uns militares
, não hesitando em considerar, aliás, que A economia está a ser aniquilada pelo Estado social. Reencontramos aqui o velho lema liberal que considera que a protecção no desemprego perpetua o desemprego e constitui mesmo a sua principal causa, ideia falsa assente no igualmente falso mito económico da chamada escola neo-clássica segundo o qual os mercados auto-regulados isto é, entregues a si próprios alcançariam naturalmente um equilíbrio entre a oferta e a procura, através dos mecanismo da livre concorrência. Se este mecanismo não está a funcionar e o desemprego está, pelo contrário, a crescer exponencialmente, isso deve-se, segundo estes mesmos economistas, à inaceitável intromissão de forças externas ao mercado (por exemplo, o Estado), ou à definição de políticas públicas de protecção laboral e de regulamentação da actividade económica (por exemplo, legislação do trabalho incluindo as denominadas medidas activas, como a reconversão profissional, a aposta na formação, o aconselhamento e o apoio económico salário mínimo, direitos dos trabalhadores). Para além deste sistema estar longe de corresponder à realidade, são óbvias as intenções enunciadas. Ora bastava revalorizar o trabalho, incentivar a produção e aumentar o consumo para que o processo se invertesse. Nada disto, porém, é feito. Esquece-se, aliás, que o acesso ao emprego significa para cada indivíduo muito mais do que um mero cálculo racional, já que não se pode esquecer a motivação da actividade produtiva como factor essencial de integração social e de bem-estar individual. Por isso, pelo menos na maior parte dos casos, o subsídio de desemprego (ainda para mais miserável) dificilmente constituirá um óbice à procura activa de emprego
desde que ele esteja efectivamente disponível, tenha um mínimo de condições e seja remunerado com justiça.
Pelo contrário, os governos apostam sempre na política da mão-de-obra barata, na desprotecção ao trabalhador (com ou sem trabalho) e no extremar da desigualdade social. Autêntica regressão civilizacional, este é verdadeiramente o que o filósofo e sociólogo esloveno Slavoj Zizek caracteriza como estado de emergência económica permanente (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, Novembro de 2010). Sublinhe-se que, desde os anos 80 do século passado, o processo imparável de desvalorização do trabalho na Europa provocou uma transferência do valor acrescentado dos salários para os lucros na casa dos 10% do PIB, com a agravante desta redistribuição não resultar em investimento produtivo, mas ter sido aplicada na especulação financeira (cuja retribuição é muito maior e mais rápida
enquanto dá!). Esquece-se, porém, que são os salários e não os lucros (pelo menos em igual medida) que, através do consumo, sustentam a procura global. Esquece-se também que, em média, como refere Carvalho da Silva (Visão, 25/11/2010), os custos salariais não representam mais do que 13% dos custos de produção. Aliás, o dirigente da CGTP revela que, durante o primeiro semestre deste ano, vinte e dois grupos económicos portugueses obtiveram um aumento de 8,5% dos seus lucros em relação a igual semestre do ano passado, o que representa um encaixe de 2,9 mil milhões de euros, isto é, 84% do total dos cortes de despesa previstos pelo Governo para este ano.
A lógica da política económica em curso no nosso país é simultaneamente a da permanente desvalorização do trabalho e do aumento contínuo dos lucros, assumindo-se abertamente que os cortes salariais e a quebra de rendimentos no sector público e o consequente efeito de arrastamento no sector privado, como afirma o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, reforçará a competitividade da nossa economia (Jornal de Negócios, 18/10/2010). A resposta foi-lhe dada por milhões de trabalhadores na maior greve geral verificada no nosso país, no passado dia 24 de Novembro. Como se pôde ler nessa ocasião num dos cartazes dos Precários Inflexíveis (movimento criado em 2007 para alertar para a situação dos trabalhadores precários), PEC? Eles é que vivem acima das nossas possibilidades. Nem mais!
Hugo Fernandez