“Declaração de guerra”; foi assim que Manuel Alegre se referiu ao famigerado relatório do FMI tornado público nos inícios de janeiro (Diário de Notícias, 10/1/2013). Portugal, Rethinking the State – selected expenditure reform options é o título deste documento que, pura e simplesmente, propõe a aniquilação da nossa sociedade e nos lança na barbárie neoliberal. O retrocesso civilizacional aí plasmado denota uma total incompreensão do que é o chamado “modelo social europeu” e do que representam os valores da liberdade e da democracia pelos quais a humanidade se tem batido há séculos. Atira-nos para uma “guerra de todos contra todos” (“bellum omnia omnes”), própria de um “estado natural”, de que nos falava o filósofo inglês Thomas Hobbes na sua célebre obra de teoria política Leviathan de 1651, situação a que só o estabelecimento de um “pacto social” podia pôr cobro. Transforma as desigualdades existentes em ferretes estigmatizantes impeditivos de qualquer expetativa de consecução da igualdade de direitos e de oportunidades. Aprofunda as injustiças sociais a um ponto que julgávamos já não serem sequer pensáveis, quanto mais possíveis. Polariza de tal maneira as disparidades de condição, que destrói o próprio sentimento de pertença a uma mesma sociedade. Viola todos os direitos e anula qualquer veleidade de cidadania.
O que aí se propõe é uma autêntica catástrofe social. São medidas como o corte no abono de família a 280 mil beneficiários, que constituem o 3º escalão deste apoio (isto é, agregados familiares com rendimentos entre 5869 euros e 8803 euros por ano, pouco acima do salário mínimo, correspondentes a 20,5% do total dos apoios em 2011), que recebem por cada filho cerca de 26 euros por mês; corte no abono a jovens entre os 19 e 24 anos que frequentam a universidade; corte nas reformas para “estimular o envelhecimento ativo”; aumento da idade da reforma para 66 anos; cortes permanentes de 15% em todas as pensões (que, para quem aufere a partir de mil euros mensais, poderá chegar a uma redução nominal muito superior); redução da importância e durabilidade do subsídio de desemprego, alegando-se que oferece montantes “relativamente elevados” e tem uma duração “bastante longa”, o que, segundo o FMI, cria “um forte desincentivo ao regresso ao trabalho”; aumento das propinas universitárias (que já são das mais altas da Europa); aumento das taxas moderadoras na saúde de forma a cobrirem um terço da despesa com cuidados médicos já em 2014; eliminação de um dos escalões inferiores do IVA; despedimento até 140 mil funcionários públicos e, entre estes, de mais de 50 mil professores; redução do salário base dos funcionários públicos em 7% (sem contar com a redução de 5% atualmente em vigor) e eliminação dos subsídios de férias e de Natal nos anos em que a economia cresça abaixo dos 3% (meta que, dados os constrangimentos existentes, será impossível de alcançar por muitos anos);…até a supressão do subsídio de funeral para os mais carenciados!
Estamos assim perante um manifesto político-ideológico que visa aquilo que José Gil define como “uma sociedade em Regressão Sustentável” (Visão, 17/1/2013). É essa circunstância que explica, aliás, que o documento se centre nas três áreas fundamentais do Estado Social – Educação, Segurança Social e Saúde – e não haja nenhuma referência à regulação da atividade do setor empresarial público, institutos e fundações estatais (nomeadamente no controle das ineficácias, abusos e mordomias existentes), à renegociação das PPP ou ao combate à corrupção, elementos certamente essenciais à tão propalada “reforma do Estado”. Só a urgência da agenda ideológica pode também explicar a extrema fragilidade da análise e a manipulação grosseira de indicadores e realidades. O mesmo relatório que mereceu ao secretário de Estado, Carlos Moedas, o epíteto de “muito bem feito”, a fazer-nos duvidar não tanto da capacidade técnica do governante (que, apesar de tudo, supomos existir), mas da sua idoneidade ética, claramente posta em causa por uma fidelidade doutrinária acrítica – diríamos mesmo, acéfala! – a roçar a solicitude do fanatismo. Pelo contrário, apodando-o de “desonesto”, o reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa, explica que os autores do relatório incorrem precisamente nos erros que na universidade os alunos são ensinados a evitar: “Partir de um preconceito, de uma teoria, e depois mobilizar os números para a defender.” (Público, 11/1/2012).
São os índices da qualidade do ensino público que se baseiam em valores desatualizados de uma década (e que contrariam os resultados dos estudos recentes do PISA), é o custo dos contratos de associação entre o Estado e os estabelecimentos de ensino particular que está distorcido (sendo mais onerosos ao Estado nos 2º e 3º ciclos, onde se concentram 80% dos contratos de associação – o custo médio por turma nos colégios privados é superior em quase 19 mil euros àquele registado nas escolas públicas – e apenas menos 50 euros por aluno no ensino secundário do que nas escolas públicas, conforme as conclusões do estudo encomendado pelo próprio governo a uma equipa de trabalho liderada pelo social-democrata Pedro Roseta), é a constatação leviana dos melhores resultados escolares obtidos pelos alunos do ensino privado relativamente aos do ensino público, esquecendo convenientemente a respetiva origem sócio-económica (indicador que o Ministério da Educação e Ciência português decidiu introduzir na apreciação dos próximos rankings das escolas, precisamente para que estes resultados tenham um mínimo de rigor comparativo), é a taxa real de inatividade dos reformados que não foi considerada e que está no topo da escala europeia (segundo um estudo da UE de 2012, cerca de 21,9% dos idosos portugueses entre 65 e 69 anos, trabalhavam em 2011), são os valores da despesa do Serviço Nacional de Saúde que estão inflacionados, pois apesar de se reconhecer que, em percentagem do PIB, está abaixo da média dos países desenvolvidos (7%), considera-se que deve ainda baixar 2% para se tornar sustentável (quando, de acordo com dados do Ministério da Saúde, a despesa com a saúde em Portugal já desceu para 5,6% em 2010, 5,2% em 2011 e estima-se 4,9% em 2012), é o salário médio dos funcionários públicos com um valor desproporcionado de 1800€ e o dos trabalhadores do privado reduzido para os 700€, quando os números oficiais portugueses situam o primeiro abaixo dos 1400€ e o segundo nos 900€ (esquecendo, em todo o caso, as habilitações que uns e outros possuem e o simples facto de cerca de 47% dos trabalhadores do Estado terem formação superior).
São as incongruências constantes, como aquela que se refere ao subsídio de desemprego que se reconhece ser muito menor em Portugal do que na Europa dos 15, mas que deve ser restringido, ao fim de 10 meses, para um valor entre os 335 e os 419 euros (ou seja, rendimentos que se situam abaixo do que é considerado o limiar da pobreza), ou quando se propõe mais fiscalização no RSI e, no próprio documento, se elogia a sua eficácia por comparação com os restantes países considerados. São os índices desatualizados da Segurança Social que se referem a 2010, escamoteando os efeitos de dois anos de duríssima austeridade e dos sucessivos cortes entretanto efetuados. São os índices de educação sistematicamente errados (no documento é calculada a despesa na educação em percentagem do PIB em 6,2%, em 2010, quando, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, nesse ano, não ultrapassava os 5% – abaixo, aliás, dos 5,5% da média europeia e mesmo dos países da OCDE – tendo, no ano passado, e devido aos cortes já realizados no setor, baixado para os 3,8%). São os cortes nas denominadas “prestações familiares” que, segundo dados do Eurostat, se situam em Portugal a um nível muito inferior ao conjunto dos países da UE (1,4% do PIB contra 2,3%), ou, como se alega, “um dos maiores crescimentos na despesa pública com a Saúde” que, no entanto, se cifra em 2728 dólares per capita (ajustado à paridade do poder de compra), muito longe da média dos países da OCDE com 3268 dólares (cf. Público, 11/1/2013 e Diário de Notícias,12/1/2013).
Este relatório configura, isso sim, um outro projeto de sociedade: absoluta mercantilização da vida, total desproteção social (com os benefícios a dependerem estritamente dos recursos individuais), anulação de qualquer vestígio de solidariedade, ausência do mínimo sentido de comunidade. Torna-se mais fácil ser despedido, torna-se mais fácil perder a habitação, torna-se mais fácil não conseguir ter acesso aos cuidados básicos de saúde, torna-se mais fácil cair na miséria, enfim, torna-se mais fácil dispensar as pessoas e prescindir do valor intrínseco da sua existência. O que nos traz a nova ordem é tão só o arbítrio, a discriminação, a imprevisibilidade, a insegurança e o medo. O medo do desemprego e da indigência. A sensação de que o futuro é incerto e de que ninguém está a salvo. Precisamente o medo que atormentou a vida de Hobbes com o despoletar da violenta guerra civil inglesa durante a década de quarenta do século XVII (e que este invocava relativamente ao seu próprio nascimento prematuro nas vésperas do ataque da Armada espanhola a Inglaterra). Justamente os fatores de violência e de fragilidade existencial que a história da humanidade foi contrariando ao encetar o longo “processo civilizacional” de que nos fala Norbert Elias e que permitiu, ao invés, a construção de um mundo cada vez mais seguro, próspero, justo e solidário.
Este relatório, sendo um programa político encomendado pelo governo português ao FMI, tem a participação e cumplicidade evidentes dos responsáveis nacionais. Mas a sua aplicação é ilegítima. Com efeito, a representação política democrática baseia-se na eleição livre de propostas publicamente expressas. Assenta na confiança entre governados e governantes selada por um programa político que, tendo sido maioritariamente sufragado, terá que ser cumprido. As eleições não são um cheque em branco para, uma vez no poder, os agentes políticos poderem fazer o que bem lhes apetece. A sua ação deve ser condicionada pela vontade popular que, através da vigilânciasobre a atividade governativa, exerce uma espécie de magistratura de influência entre períodos eleitorais e que, no final do mandato, castiga ou premeia o trabalho desenvolvido. Mas quando se quebra, de forma grosseira e propositada, o pacto estabelecido, quando se labora no sentido inverso do que foi inicialmente proposto, quando reiteradamente se escondem propósitos e se escamoteiam intenções, quando se quebra totalmente a confiança no governo do país, então a população tem direito a exprimir a sua vontade. Se um mandato se torna abusivo, deve ser interrompido. A tirania não faz parte das regras do jogo da democracia.
O que o governo pretende não é uma “refundação do Estado”, conforme o eufemismo de Passos Coelho, mas uma completa mudança de regime. Ora, não se pode aceitar a total subversão da sociedade portuguesa sem sujeitar as profundas mudanças preconizadas a sufrágio. Terão que ser os portugueses a aceitar ou rejeitar o que se propõe, a bem do sistema democrático e da coesão social. Caso contrário, como avisa Boaventura de Sousa Santos, “estaremos a entrar numa sociedade politicamente democrática mas socialmente fascista, na medida em que as classes sociais mais vulneráveis (a grande maioria da população) verão as suas expetativas de vida dependerem da benevolência e, portanto, do direito de veto de grupos sociais minoritários mas poderosos.”, concluindo que “O fascismo que emerge não é político, é social e coexiste com uma democracia de baixíssima intensidade.” (Visão, 10/1/2013).
Hugo Fernandez