O nosso país costuma sobressair pelos piores motivos. No entanto, no que se refere aos transplantes de órgãos vitais, esse não é o caso. Com efeito, Portugal assume uma posição de destaque a nível mundial, chegando a liderar nas transplantações de fígado e de rim ex aequo com países como os E.U.A. Todos nos devíamos orgulhar disso. Porém, nem todos compartilham esse sentimento.
Por incrível que isso possa parecer é a própria tutela da Saúde, pela mão do ministro Paulo Macedo, que reprova tal performance e, a pretexto da redução de custos, pretende travar esta dinâmica de sucesso. A razão, enunciada em entrevista televisiva à TVI no passado dia um de setembro, surpreende pelo assombro: “é preciso perceber se o País pode sustentar o atual número de transplantes”. Tal afirmação, especialmente vinda de quem vem, é de uma enorme gravidade. Antes de mais pela mesquinhez da linguagem contabilística utilizada, quando estamos a falar de salvar vidas humanas. Não se trata de luxos, nem de mordomias ou futilidades. Trata-se de doentes que, sem este tratamento, terão uma qualidade de vida miserável e, a breve prazo, estarão condenados a morrer. Parece, por outro lado, evidente que, no domínio da saúde, a maior poupança que um país pode fazer é conseguir manter os seus cidadãos saudáveis. Como disse Fernando Macário, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação, “O transplante não é uma despesa, mas um investimento na vida e na qualidade de vida.” (Visão, 8/9/11). Trata-se, portanto, de uma questão básica de sociabilidade e de civilização.
Podemos, ainda assim (e mesmo contra as evidências) pensar que Paulo Macedo está apenas a intentar um esforço diligente na salvaguarda do Serviço Nacional de Saúde. Mas será esta verdadeiramente uma prioridade a considerar? Não haverá muitas outras situações no SNS onde, sem prejuízo para os utentes, é possível minimizar custos? Ou será que toda esta área de intervenção é demasiado apetecível – dada a sua natureza vital – para continuar a ser assegurada, sem intuitos lucrativos, pelo Estado? É que, ao reduzir para metade o valor dos apoios para estas cirurgias (cujo pagamento, aliás, tem sido sucessivamente adiado), o Ministério da Saúde desresponsabiliza-se pela continuação, na quantidade e qualidade alcançadas, deste serviço, empurrando equipas médicas e doentes – aqueles que tenham rendimentos suficientes para isso, bem entendido – para o sector privado de saúde. As palavras de Fernando Macário não deixam, a este respeito, margem para dúvidas: “é preciso recompensar os profissionais que têm de manter uma enorme disponibilidade e um elevado grau de competências, sob pena de escaparem para os hospitais privados”. Tratar-se-á, afinal, de uma questão de discriminação social, o que não deixa de ser igualmente intolerável.
Na sequência das declarações de Paulo Macedo, os responsáveis máximos pela transplantação em Portugal apresentaram a sua demissão. Como alegou, na ocasião, João Pena, presidente demissionário da Autoridade para os Serviços de Sangue e Transplantação, “demiti-me porque não colaboro com uma pessoa que não tem respeito pela vida humana” (Expresso, 3/9/11), acrescentando, “não posso aceitar que o ministro seja indiferente à morte de pessoas em lista de espera”. E João Pena faz um apelo veemente: “Este senhor tem de ser posto fora; não pode estar a cuidar de doentes”.
Para José Sócrates as pessoas eram um enorme incómodo. Para o governo de Passos Coelho serão, pura e simplesmente, dispensáveis?
Hugo Fernandez