Desde sempre o pensamento liberal assentou em dois axiomas fundamentais. Por um lado, a primazia absoluta do interesse individual sobre qualquer tipo de preocupação societária na prossecução de um, ainda que meramente esboçado, “bem comum”, já que se acreditava que o livre jogo das conveniências particulares subjazia necessariamente – por ação da famosa “mão invisível” smithiana (e que Karl Marx ironicamente designou no Capital por “auspícios de uma providência engenhosíssima”) – à prosperidade geral. Trata-se, portanto, de uma ordem social espontânea, nascida da exclusiva prossecução das vantagens pessoais, que fazem do indivíduo o centro da organização social e da sociedade a mera soma dos interesses de cada um, com o único limite de não perturbarem vontades alheias – o que não deixa de se revelar, está bem de ver, uma autêntica quadratura do círculo.
Por outro lado, a crença na indiscutível racionalidade e fundamentação das decisões dos agentes económicos que, por via da “economia de mercado” e da regra do laissez faire, podiam adquirir os proventos almejados. Como dificilmente se concebia que alguém atuasse contra si próprio e desbaratasse as vantagens que uma opção racional deste tipo lhe poderia trazer, rapidamente esta constatação sociológica se converteu numa certeza filosófica: a da superioridade lógica do liberalismo relativamente a todas as outras formas de organização da sociedade, decorrente dos benefícios automaticamente gerados pela relação de contratualidade livremente estabelecida entre os sujeitos, que assumiriam os seus compromissos segundo o princípio matricial da responsabilidade.
Os indivíduos desenvolvem assim uma relação meramente instrumental com a comunidade onde estão inseridos para melhor realizar os seus propósitos, numa perspectiva egocêntrica e assimétricade conveniências e proveitos,de conflitualidade e resultados variáveis mas, em todo o caso, sempre promotores de acentuadas injustiças sociais. Salvaguardando o simples facto de, levada às últimas consequências, esta filosofia política provocar a desagregação da sociedade e levar ao atomismo dos indivíduos e à impossibilidade de uma existência minimamente civilizada – doravante sujeita à absoluta barbaridade e arbítrio da “guerra de todos contra todos” de que nos falava Thomas Hobbes –, é mais do que duvidosa a possibilidade da compatibilização dos múltiplos interesses individuais em presença. E assim o sistema liberal promoveu – como outros sistemas anteriores de dominação – um processo de selecção social, desta feita baseado na posse do capital e dos meios de produção necessários à acumulação e reprodução da riqueza daqueles que, por determinadas razões históricas (que não desenvolveremos agora), se tornaram os seus protagonistas. Daqui decorre que, na impossibilidade de contentar toda a gente – dada a escassez dos recursos existentes – e como o contentamento de alguns implica a sujeição de todos os outros – sujeição desde logo referente a condições de posse profundamente distintas – acaba por se fechar o círculo da injustiça social na relação entre indivíduo e sociedade. A satisfação dos interesses individuais, implicando a selecçãodos indivíduos a satisfazer, provoca uma divisão social inevitável entre os que têm e os que não têm.
Advém, por isso, a exploração. A própria natureza da “economia de mercado” – vulgo capitalismo – implica a maximização dos lucros pela minimização dos custos (incluindo aqueles relativos à mão-de-obra). Numa pura lógica de soma-zero, os ganhos de uns resultam necessariamente no prejuízo dos outros. Quanto mais exploração houver, melhor são atingidos os objectivos daqueles que controlam os mecanismos do sistema. Claro que esta crua realidade é encoberta pelo mito da igualdade de oportunidades e justificada pela estafada narrativa do mérito próprio e da persistência da vontade individual – cabalmente ilustrada pela figura do self-made man –, abstraindo convenientemente a diferenciação de posições que cada um ocupa na escala social e as vantagens e constrangimentos que daí resultam. Estamos assim perante uma variante do princípio da responsabilidade anteriormente enunciado, já que se imputa a asserção de irresponsabilidade, de incompetência, de falta de perseverança e, no fundo, de inutilidade, a quem não se encaixa neste figurino (ou quem contesta tal credo). Os principais culpados do insucesso social passam a ser os próprios falhados, como a cínica complacência de Adam Smith amplamente demonstra: “The real tragedy of the poor is the poverty of their aspirations” [A verdadeira tragédia dos pobres é a pobreza das suas aspirações].
Claro que há limites para a exploração capitalista, limites que podemos classificar de endógenos e de exógenos. Os primeiros referem-se, desde logo, às incidências de ordem sistémica, quer ao nível do próprio processo produtivo como os referentes ao funcionamento do “mercado”, dada a limitação de recursos e capacidades de produção disponíveis, bem como as restrições de caráter concorrencial, necessariamente limitativas do lucro a auferir (Marx designava-a por “baixa tendencial da taxa de lucro”). O segundo tipo de limites tem a ver com a pura e simples necessidade de garantir a reprodução da força de trabalho (limite mínimo) e um nível aceitável de consumo que permita o escoamento do que é produzido. Muito do que foi e é a história da divisão internacional do trabalho e a separação genérica do mundo entre os países desenvolvidos do hemisfério norte e subdesenvolvidos do hemisfério sul passa por esta complexa equação. Indiscutíveis são, em todo o caso, os efeitos da pressão exercida sobre o sistema capitalista pela luta dos próprios explorados na melhoria das suas condições de trabalho e de vida, luta que paradoxalmente obstou a que o processo imposto tenha atingido situações disruptivas…até ver. De facto, e esta é uma das suas características fundamentais, o capitalismo tem assimilado a contestação e tem sobrevivido a múltiplas crises precisamente porque o seu desenvolvimento tem resultado, apesar de tudo, em alguma melhoria – altamente desigual e injusta, é certo – dos padrões de vida da generalidade da população. Só que este contrato social dificilmente se poderá manter se o desregulamento da globalização neoliberal fizer perigar o ténue equilíbrio criado (e se pensarmos que atualmente menos de 20% da população mundial vive acima de qualquer índice de pobreza).
É este aspeto que diferencia a atual crise do capitalismo. Antes de mais o desequilíbrio sistémico provocado pela absoluta supremacia do capital financeiro sobre todos os setores do aparelho produtivo (o que se convencionou designar por “economia real”). Assumindo o caráter predador de uma máquina de fazer dinheiro fácil e imediato (não produtivo) e baseado numa realidade largamente virtual – mas com efeitos bem concretos – o capital financeiro vive da desestruturação da própria actividade económica, quer eliminando todas as regras que a suportavam, quer suprimindo as empresas e áreas produtivas que hesitem em cumprir integralmente os respectivos serviços das dívidas que, por seu lado, apresentam índices cada vez mais absurdos. Para além dos inúmeros problemas decorrentes de uma sobrefinanceirização da economia que representa mais de 4/5 do total da riqueza em circulação, este enorme poder assente numa espiral especulativa de operações bancárias e bolsistas de que foi exemplo concludente o crédito fácil atribuído a quem efetivamente não tinha rendimentos suficientes, por exemplo, para compra de habitação, o que, permitindo assegurar no imediato a existência de um nível de consumo alinhado com a oferta, criou uma realidade ilusória que acabou na gigantesca crise do subprime norte-americano, que deu origem a sobre-endividamentos e falências generalizadas em todo o mundo.
Assiste-se simultaneamente ao agravamento sem precedentes da exploração – desemprego maciço, perda de direitos e crescente exclusão social – e ao concomitante aniquilamento das expetativas sociais em nome do acréscimo da competitividade à escala global. Esta espécie de “novo modelo social” imposto pelo poder financeiro tende a afunilar ainda mais os benefícios em alguns em detrimento de todos os outros, concentrando a riqueza e o poder numa elite cada vez mais restrita. O problema é que não se dá nada em troca à generalidade da população. Pelo contrário, o alastramento do desemprego e da precariedade laboral leva a uma permanente diminuição dos rendimentos salariais, vendo-se os trabalhadores completamente arredados de quaisquer ganhos de produtividade realizados. Assiste-se assim a uma contração dos mercados tradicionais e a um abaixamento dos níveis de consumo decorrentes de uma permanente desvalorização do fator trabalho, agravado pela enorme redução das despesas públicas e pela insolvência de muitos países, a braços com crescentes – e, na verdade, impossíveis de liquidar – dívidas soberanas que, tendo a sua origem em grande parte na conversão de dívidas privadas nomeadamente de instituições bancárias (o caso português do BPN é por demais evidente) traduzem-se, isso sim, na obtenção de créditos para financiamento desse mesmo setor financeiro. Desta forma, são os contribuintes que acabam por sanear os resultados da especulação financeira. Num estudo da União Europeia publicado em 2008, os governos da Europa subsidiaram entidades bancárias e demais instituições financeiras em 3,5 triliões de euros (correspondente ao PIB alemão da altura), expediente que de então para cá, como é sabido, se tem vindo a acentuar e a transformar-se em regra de conduta.
Dominados pelo poder financeiro, os governos são claramente cúmplices deste estado de coisas. Por um lado, constata-se a desresponsabilização das autoridades na supervisão dos mercados e a proliferação dos paraísos fiscais. Note-se, a título de exemplo, que as transferências de capitais portugueses para os offshores atingiram nos primeiros cinco meses deste ano 1,3 mil milhões de euros, o que representou um aumento inacreditável de 700% em relação ao ano de 2010. Por outro lado, os cortes no investimento estatal e o desmantelamento dos serviços públicos, o aniquilamento das prestações sociais e o aumento da carga fiscal – situação que o sociólogo esloveno Slavoj Zizek caracterizou como de “emergência económica permanente” – bem como a total privatização da economia e mesmo das condições básicas da própria existência humana (fala-se da privatização da água; o que se seguirá? A privatização do vento?), transfiguraram a exploração capitalista naquilo que o geógrafo inglês David Harvey, na sua obra The New Imperialism, designa por “acumulação capitalista por expropriação”. O financiamento público do setor financeiro é feito à custa dos rendimentos diretos da população (redução dos salários e aumento da carga fiscal) e indiretos (fim das prestações sociais e dos serviços públicos). Para além de assegurarem os lucros dos especuladores capitalistas, as populações passaram a abonar também os seus prejuízos. Estamos claramente perante um novo e mais gravoso patamar de exploração.
A realização do interesse próprio através da livre transação de produtos, serviços, trabalho, propriedades ou valores numa “economia de mercado” apenas sujeita aos constrangimentos contratuais, tal era a visão clássica do pensamento liberal que acabava por transformar o egoísmo possessivo numa espécie de “bem comum” que tinha como resultado a prosperidade geral. O grau mínimo de cooperação assim exigido depressa se revelou, na nova ordem neoliberal, uma quimera inalcançável, convertendo-se na mais despudorada e brutal competição que, quanto maiores os interesses em vista, mais desenfreada se torna. A suposta racionalidade da atividade económica passou a ser uma ilusão. A economia globalizada originou todo o tipo de disfuncionalidades, desinformação, depredação especulativa, fraude e corrupção, que toldou definitivamente a tão apregoada responsabilidade das “públicas virtudes” (porque os “vícios privados” sempre foram considerados parte integrante do sistema, como já no século XVIII Bernard de Mandeville havia justamente assinalado). A própria fiabilidade e previsibilidade das transações pressupostas no compromisso contratual do liberalismo inicial, indutoras de investimento e de dinamismo produtivo, deixaram de ter significado por força da desagregação normativa, da dissolução dos laços de confiança e da imediaticidade e incerteza – flexibilidade no novel jargão economicista – dos movimentos financeiros internacionais.
Afinal Marx tinha razão, “o capitalismo pode destruir-se a si mesmo”, como afirmou em entrevista recente ao Wall Street Journal,Nouriel Roubini, o famoso economista turco-americano da Universidade de Nova Iorque que previu a actual crise mundial.
Hugo Fernandez