O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos errou. E errou nas duas coisas onde jamais o poderia ter feito: no Direito e na Justiça.
Com efeito, no passado mês de março, os europeus foram surpreendidos com a inconcebível decisão de Estrasburgo em considerar que o uso de crucifixos nas salas de aula não violava o direito à educação, ou de os pais educarem os seus filhos de acordo com as suas convicções, dando razão ao recurso interposto pelo Governo italiano. Este veredito vem assim contrariar decisão anterior do mesmo órgão em 2009, na sequência da ação da italiana de origem finlandesa Soile Lautsi, que contestou a presença destes símbolos religiosos numa escola pública da localidade de Abano Treme, perto de Veneza, e o direito a educar os filhos de uma forma laica. A decisão inicial do tribunal europeu tinha considerado, com efeito, que esta circunstância podia significar uma agressão a alunos de outras religiões ou sem quaisquer crenças religiosas, no cumprimento, aliás, do disposto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em vigor desde 1953, e que no número dois do seu artigo nono, relativo à “Liberdade de pensamento, de consciência e de religião”,estipula que “A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou colectivamente, não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem.”
Este tribunal errou assim em matéria de Direito, porque renegou as normas internacionalmente aceites de direitos, liberdades e garantias, conforme se encontram estabelecidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada pela ONU em 1948 e que constitui a base doutrinária da sua jurisprudência, ao violar de forma flagrante os princípios iniludíveis da universalidade (abrangência universal dos direitos, independentemente da nacionalidade, sexo, raça, credo religioso ou convicção político-filosófica) e efectividade (obrigação da garantia dos direitos por parte do poder público e dos orgãos da administração do Estado) na aplicação da norma jurídica. Convém lembrar que no seu artigo VII, este documento das Nações Unidas é muito claro ao afirmar que “Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.” Com esta decisão, violam-se igualmente os princípios básicos constantes no documento internacional dos direitos humanos de 1948 da irrenunciabilidade dos direitos, já que não podem ser objecto de renúncia ou alienação e, principalmente, da sua inviolabilidade, implicando a responsabilização civil, administrativa ou criminal pelo seu desrespeito por determinações ou actos das autoridades públicas.
Mas o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos errou sobretudo no campo da Justiça, porque violou os mais sagrados princípios da Liberdade e da Igualdade, regras basilares que norteiam o nosso viver colectivo e que assentam na ideia simples de que, usufruindo todos dos mesmos direitos, a nossa liberdade tem como limite a liberdade dos outros. Ao promover uma discriminação, ao incentivar uma desigualdade no tratamento de cidadãos por causa das suas convicções religiosas – ou da ausência delas – foi parcial e avalizou, em iguais circunstâncias, uns em detrimento de outros. Quebrou assim a regra da equidade, isto é, considerar igual o que é igual e diferente o que se afigura diferente. Mais do que isso. Envolveu-se diretamente numa disputa doutrinária de que deveria estar arredado, preferindo os “cantos de sereia” ultramontanos de uma proclamada identidade cristã da Europa, em detrimento do tratamento igual de todas as crenças religiosas no espaço público. Imperdoável!
E se a decisão é espantosa, a sua justificação é verdadeiramente aberrante. Os 15 juízes (em 17) que votaram a favor da sentença consideraram que “um crucifixo colado a uma parede é um símbolo essencialmente passivo, cuja influência sobre os alunos não pode ser comparada a um discurso ou à participação em actividades religiosas” (Público, 19/3/2011), alegando que “não há nenhuma prova de que a visão de um crucifixo nas paredes da sala de aula possa ter influência sobre os alunos”. Trata-se de uma flagrante falácia. Certamente conhecedores da enorme importância do poder simbólico – cuja ação se exerce “por sinais capazes de produzir coisas sociais”, conforme a sugestiva explicação do famoso sociólogo francês Pierre Bourdieu na sua obra de referência O Poder Simbólico – os juízes escamotearam o facto da representação simbólica constituir instrumento integrante e indispensável à percepção da realidade e à construção de uma determinada visão do mundo, ainda para mais se tivermos em conta que se tratam de jovens em idade escolar, numa altura em que estes fatores identitários são de extrema relevância. Longe de constituir um mero epifenómeno social, a eficácia da representação simbólica explica-se por aquilo que Bourdieu refere como a “crença mobilizadora que ela suscita pela força da objetivação”, fator que certamente não é desconhecido dos magistrados europeus.
As reações entusiásticas do poder político e religioso não se fizeram esperar. O Ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Franco Frattini, em declarações ao diário La Repubblica, considerou que “a decisão sublinha, antes de mais, o direito de os cidadãos defenderem os seus próprios valores e a sua identidade” e o porta-voz do Vaticano, Frederico Lombardi, rejubilou, afirmando tratar-se de “uma decisão histórica e importante” (Público, 19/3/2011). Isto numa altura em que no Egito se discute, em sede de revisão constitucional, a possibilidade da separação da religião e do Estado, ou quando o imã de Meca, lugar cimeiro na hierarquia do Islão, critica fortemente os movimentos de contestação que eclodiram no mundo árabe e que, ao reclamarem a laicização e democratização do Estado, rejeitando a sharia (lei islâmica), estariam a promover o “caos religioso e moral” (Público, 26/3/2011). É obra!
Ecoa, a este propósito, o ensinamento do filósofo setecentista Immanuel Kant que, no seu projecto para A Paz Perpétua, lembrava que “O direito dos homens deve considerar-se sagrado, por maiores que sejam os sacrifícios que ele custa ao poder dominante”. É caso para dizer ita missa est, amen.
Hugo Fernandez