Como disse Montesquieu no seu L’Esprit des Lois, “La corruption de chaque gouvernement commence presque toujours par celle des principes”. Ora neste, como em muitos outros aspectos, os nossos governantes não param de nos surpreender. Numa entrevista recente do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, ao Diário de Notícias (27/2/2011) foram sobretudo estes – os princípios – que foram, mais uma vez, desbaratados. Seguindo uma lógica estrita de realpolitik, Amado não hesita em defender que “É absolutamente ridículo pretender desenvolver uma relação na base de uma avaliação das condições democráticas de cada país”, concluindo lapidarmente que “Uma política externa não se funda apenas em princípios mas também em interesses.” Considera, por isso, que a atual agitação no mundo árabe constitui “a situação mais grave com que nos confrontamos em termos internacionais após o fim da II Guerra Mundial.” Para além da significativa desvalorização de fenómenos como a derrocada do império soviético, no final dos anos oitenta do século passado, e de tudo o que isso implicou em termos de reorganização geoestratégica, o MNE português acaba por revelar a verdadeira raison d’être da sua particular preocupação: é que países como a Tunísia ou o Egipto, para além de serem considerados aliados do Ocidente na luta contra o terrorismo, eram sobretudo “aliados estratégicos na contenção relativamente às fontes de abastecimento energético, vitais para a economia ocidental.”, temendo-se a possibilidade de “perder regimes que, apesar de tudo, eram favoráveis estrategicamente aos nossos interesses.” Rematando com um expressivo “E não sabemos o que aí vem!”, Luís Amado acaba por desabafar, “Estão ali dois terços das reservas de energia com que vivemos!” Ficamos esclarecidos.
Esta posição do nosso MNE é, a vários títulos, exemplificativa do paradigma de relacionamento internacional imperante e de uma visão do mundo egoísta, predatória e absolutamente centrada nos grandes interesses económicos e financeiros daqueles que o dominam. Apesar de uma declaração formal de aceitação da “carta democrática” nesses países, a falta de entusiasmocom que a diplomacia europeia reagiu às revoluções que eclodiram no Norte de África e no Médio Oriente é suficientemente elucidativa dos receios e perplexidades levantadas, contrastando com a preocupação imediata relativamente à quebra dos equilíbrios de poder existentes e à contenção do fundamentalismo islâmico. Seguindo a lógica de que só regimes despóticos podem constituir barreira eficaz contra o extremismo religioso – num círculo vicioso maniqueísta e simplificador que Serge Halimi descreve nos seguintes termos: “o ditador proclama-se como a única barreira contra os islamitas; os islamitas como os únicos inimigos do ditador.” (Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, fevereiro de 2011) – o que os países ocidentais verdadeiramente induziram nessa parte do mundo foi o acentuar da exploração e do desvalimento, o desespero da humilhação extrema durante décadas, a desesperança na possibilidade de alteração dum quadro muito negro de existência, que governos corruptos e autocráticos de confiança trataram de perpetuar. Não é por acaso que o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, declarou “A alma árabe está esmagada pela pobreza e pelo desemprego”.
São estes fatores de opressão reiterada que estão na origem da revolta do mundo árabe. E foi esta situação que os países ocidentais falharam em perceber, obnubilados que estavam pelos ditames de uma cega razão instrumental e pela defesa intransigente de conveniências próprias e exclusivas. Aliás, se alguma lição podemos tirar dos acontecimentos de Tunes ou do Cairo é que o relacionamento internacional terá que passar doravante muito mais pelos princípios do que pelos interesses. Não é esta posição que é ingénua – como prontamente acusaram alguns – mas é a contrária que perdeu toda a credibilidade e se revelou, como se viu, profundamente desajustada da realidade.
Da mesma forma, assistimos ao desmoronar estrondoso da visão estereotipada da identidade árabe assente num inevitável e redutor discurso moral e religioso – linguagem que os regimes autocráticos da região se habituaram a controlar e que os países ocidentais se habituaram a reconhecer como a única existente nessa parte do mundo – contrastando claramente com os pressupostos eminentemente sociais e políticos do protesto, por exemplo, do movimento kefaia (“basta”), surgido no Egito em 2005 na sequência da divulgação pelos media oficiais da futura sucessão do ditador egípcio, Hosni Mubarak, pelo seu filho Gamal. Este movimento juntou um número crescente de contestatários provenientes de meios instruídos, urbanos, de quadros técnicos ou de profissões liberais, preocupados sobretudo com a injustiça e discricionariedade do regime despótico, com a falta de oportunidades de trabalho, com a corrupção generalizada e com a necessidade imperiosa de estabelecer um novo poder e uma sociedade mais justa. Durante dias a fio, foram jovens manifestantes seculares que ocuparam a praça Tahrir. Como disse Shahira, uma estudante de Economia egípcia, “Do que eu tenho a certeza é de que os jovens não vão tolerar mais nenhuma espécie de autoritarismo. Nem dos líderes religiosos.”(Pública, 20/2/2011), rejeitando assim quaisquer tendências extremistas de afirmação islâmica. Ou, como referiu outro dos líderes daquilo que já denominaram “ciber-revolução”, Ramy Raoof, “Se as pessoas querem fazer orações, vão à mesquita. Mas não queremos que ninguém nos diga o que devemos fazer na nossa vida. E também não aceitamos que nos peçam para sofrer nesta vida, porque seremos felizes na outra, depois da morte. Nós queremos aproveitar a vida agora.” (Público, 13/2/2011). Significativo!
É de desenvolvimento democrático que falamos, sendo que ambos os termos têm que corresponder a realidades percetíveis pela generalidade da população árabe como, em tempos, o foram pelos povos do chamado mundo ocidental. Não com a preocupação de seguir modelos idênticos – mimetismos sempre desaconselháveis, como a história da humanidade tem largamente demonstrado – mas alcançando resultados similares, que garantam direitos e liberdades básicas e que se traduzam em igual dignidade de vida para todos. Porque, como refere Ana Santos Pinto, investigadora do IPRI-UNL, “O processo político no Egito tem, agora, a oportunidade de contrariar a perceção de incapacidade democrática no genoma árabe-muçulmano.” (Público, 13/2/2011). Terá que ser possível ser muçulmano, árabe e egípcio, homem ou mulher e, simultaneamente, cidadão livre. Com uma nova geração escolarizada, universitária, altamente qualificada, familiarizada com as tecnologias mais avançadas e com elevadas expetativas de realização profissional e pessoal, o futuro pode ser outro. É que, como sublinha o jornalista Paulo Moura na revista Pública (20/2/2011), “Cento e oitenta mil jovens árabes nasceram depois da Guerra Fria, depois do «fim da História» e do «choque das civilizações». Não se lembram do 11 de Setembro (…) nasceram com a Internet.” Esta enorme pressão demográfica – na Tunísia, por exemplo, 40% da população tem menos de 25 anos – aspira apenas a uma vida normal. Nas palavras da jovem egípcia Shahira, “Gostava de criar uma empresa, de viajar, de ser independente. Gostava de viver num país normal, onde as pessoas pudessem aplicar a sua energia, investir e obter resultados.” Para Bassem Samir, diretor da Egyptian Democratic Academy e do site CyberACT, “Nos países árabes, porque falamos a mesma língua, estamos todos ligados. Pode dizer-se que o movimento é só um. O objetivo é o mesmo. É tão simples: ser livre.”
No dia em que Mubarak caiu, o jovem médico Khaled Kassam, festejando com milhares de compatriotas nas ruas do Cairo, afirmou: “Egito, bem-vindo ao século XXI” (Público, 12/2/2011). É esta sensação de modernidade que a revolução egípcia, tal como outras congéneres, desde já permitiu. Como referiu certeiramente o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Joschka Fischer, “O Médio Oriente despertou e começou a entrar no mundo globalizado do século XXI.”, prognosticando, com grande lucidez, que “a era em que esta vasta região dormia enquanto outros se modernizavam chegou ao fim.” (Público, 27/2/2011).
Por isso, chegou a hora da sobranceria neocolonialista ocidental dar azo a uma atitude responsável e colaborante, com base em relações de igual para igual, enquanto parceiros francos e fiáveis, atitude que permita ultrapassar definitivamente a estreiteza de meros cálculos utilitaristas e construir um relacionamento internacional baseado primordialmente na defesa da dignidade humana e dos valores universais da cidadania. Uma solução verdadeiramente justa e duradoura do conflito israelo-palestiniano, começando por cumprir as inúmeras resoluções das Nações Unidas sobre o assunto, significaria uma abertura altamente auspiciosa. É que, como se pode ler no editorial do The Economist, publicado no jornal Expresso (26/2/2011), “À medida que o mundo árabe desperta, perspetiva-se um futuro melhor.”
Hugo Fernandez