Quase no fim de Dezembro...
Depois de um breve interregno alentejanando, voltámos para um encerramento escriturado deste breve ano que suspira para entrar no baú da memória e que deixa (mesmo no plano pessoal), umas vezes, ¿suculentas¿, outras vezes, ¿amargas¿ memórias. A História não perdoa e encarregar-se-à de tratar-lhe da saúde... ao 2003. Ler César Benjamin* e logo de seguida ver a entrevista (versão portuguesa dos 60 minutos) a Donald Rumsfeld, digamos que é melhor que xarope de poejos. (Re)Começo por lavrar o meu desabafo contra aquilo que são os causadores de retrocessos civilizacionais... Outro texto, com chancela de CAROS AMIGOS, ou seja: - O grupo fundamentalista que governa os Estados Unidos desde o golpe de Estado que levou George W. Bush ao poder lançou-se ao longo deste ano num segundo golpe de Estado, mais abrangente, desta vez dirigido contra o sistema jurídico e político internacional. A sua doutrina, expressa no chamado Project for the New American Century, fala em implantar uma "dominação de espectro amplo", baseada principalmente na consolidação de uma esmagadora superioridade militar e justificada moralmente pela necessidade de expandir para todo o mundo os valores norte-americanos, identificados (imagine-se) com o bem. De Bíblia em punho, Bush já discursou sobre o "Deus verdadeiro" antes de assinar a sua última declaração de guerra.Em três anos de poder, agindo sempre de forma unilateral, esse grupo atentou contra todos os fundamentos, internos e externos, da democracia e da civilização: aboliu direitos civis dentro dos Estados Unidos; boicotou o Protocolo de Kioto sobre o clima; retirou-se do Tratado de Mísseis Balísticos; impediu o avanço das negociações para a Convenção contra Armas Biológicas; recusou-se a submeter os seus soldados à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, criado para julgar crimes de guerra; não assinou o acordo mundial para o ¿desaparecimento¿ das minas terrestres; incrementou a tensão militar entre as duas Coreias e entre a China e a Formosa; instalou, pela primeira vez, bases militares na América do Sul; apoiou uma política genocida na Palestina; ameaçou intervir em pelo menos meia dúzia de países do chamado "Eixo do Mal"; humilhou a Organização das Nações Unidas.Na esfera militar, os dados são impressionantes: os gastos dos Estados Unidos com armamentos superam hoje, com larga vantagem, a soma dos gastos realizada pelos outros catorze países que integram a lista dos quinze mais bem armados do mundo. O sentido de tal acumulação de poder é constituir uma nova ordem internacional, cujos contornos estão claros. Em vez de um mundo regido por regras e instituições, por exemplo, teremos aquilo que Donald Rumsfeld, secretário de Defesa, chamou de "coligações de vontade", ou seja, agrupamentos provisórios, criados para fins específicos. A invasão do Iraque tem sido apresentada como uma espécie de projecto piloto dessa nova postura.Creio que a profundidade da mudança em curso ainda não foi captada. Em última análise, ela remete-nos de volta ao mundo pré-moderno, àquela pré-modernidade high tech que Hollywood antecipou em muitos filmes, de gosto duvidoso, feitos nos últimos anos (o actual governador da Califórnia diz tudo...).A constituição dos Estados nacionais modernos - e, depois, a constituição do sistema interestatal - foi um fenómeno histórico centrado inicialmente na Europa e decorrente da imperiosa necessidade de pôr fim às guerras religiosas que ensanguentaram o continente durante mais de cem anos. O maior teórico dessa transição foi Hobbes: para sair do estado de natureza, caracterizado pela guerra de todos contra todos, e inaugurar o estado civil é necessário instituir um poder - o Leviatã - que, em vez de tentar impor um princípio moral universalmente válido, legitima-se, única e exclusivamente, pela sua capacidade de garantir a paz, estabelecendo regras mínimas de convivência entre pessoas e grupos.Por isso, o advento da modernidade ocidental foi marcado pela separação dos eixos bem/mal e paz/guerra, o que correspondeu a uma separação entre moral (remetida à esfera privada) e política (submetida à razão de Estado). Nasceu assim o Estado moderno - cuja primeira forma foi a monarquia absoluta -, que passou a concentrar em si o monopólio da violência legítima dentro de determinado território. Junto com ele, nasceu o conceito de soberania política. A partir de então, no espaço europeu abrangido por essa transformação, a invocação de teologias e leis morais deixou de ser um meio legítimo para estabelecer uma ordem política, dado o risco de reabrir a qualquer momento, com aquela invocação, a guerra de todos contra todos. Vattel estendeu o mesmo princípio às relações interestatais, fundando a possibilidade de instaurar a paz com base em regras internacionais de natureza também essencialmente política. Essa ideia ganhou forma duradoura na elaboração do conceito de equilíbrio de poder, amplamente predominante, em diferentes arranjos, desde o Tratado de Viena, de 1815, até ao fim da União Soviética, em 1991.Ao misturar novamente os eixos bem/mal e paz/guerra, e ao romper o princípio do equilíbrio de poder, o que o grupo de Bush contesta, em última análise, são os dois pilares fundadores da modernidade política ocidental, ou seja, querem negar a História. Pode parecer estranho que esse movimento parta de um Estado republicano e democrático. Com efeito, o projecto de paz perpétua, de Kant, formulado no século XVIII, pressupunha que todos os Estados nacionais assumissem justamente a forma republicana de governo, por ela ser considerada menos propensa a decisões arbitrárias: "Se o consentimento dos cidadãos tiver de ser solicitado para decidir se a guerra deve ser travada ou não, nada mais natural que eles reflictam longamente, antes de iniciar um jogo tão perigoso, pois se decidirem promovê-la recairão sobre eles mesmos as calamidades da guerra". A mesma ideia aparecera em Montesquieu. No século XIX, no entanto avisado por alguns períodos da Revolução Francesa, Tocqueville já não era tão optimista, afirmando profeticamente que o individualismo e o confinamento das pessoas na esfera privada preparariam as condições para a emergência de um novo tipo de despotismo, que chamou de "despotismo democrático": "Essa espécie de servidão, regulada, doce e pacífica, poderá conjugar-se mais facilmente do que se imagina com algumas das formas exteriores da liberdade, e não será impossível estabelecê-la sem que seja necessário retirar a soberania do povo".Os tempos actuais dão mais razão a Tocqueville que a Kant. Embora, pelo seu pragmatismo, a sociedade norte-americana tenha desenvolvido excepcionalmente a técnica, os chamados "Estados Unidos profundos" - de onde vem toda a equipa de Bush - nunca viveram a experiência do iluminismo, nem incorporaram plenamente o conceito de razão. A sua origem, ao contrário, está em grupos religiosos fechados, messiânicos e dogmáticos que agora fornecem o discurso ideológico legitimador da política desejada pelos grandes monopólios capitalistas em crise.Os dois movimentos que articulam esse discurso são complementares, pois a tarefa anunciada de levar os valores norte-americanos a sociedades não ocidentais, sendo a-histórica, exige a construção de um superpoder capaz de agir de fora para dentro das sociedades a serem "ocidentalizadas". Criar esse superpoder é romper o equilíbrio de poder. Estamos diante de um novo Leviatã, dessa vez não hobbesiano ou até anti-hobbesiano. Pois ele não se constitui para impor a paz, mas para fazer a guerra. Daí o paralelo possível, sentido intuitivamente pelas pessoas, com a experiência nazi.A existência de um poder desse tipo é uma contradição em termos. Ao buscar para si uma legitimação moral - não importa se fundada numa religião, costumes ou raça -, ele recusa a política. Ao fazê-lo, recria as condições da guerra de todos contra todos. Com uma agravante: ao contrário dos impérios que desfrutaram de supremacia em outros tempos históricos, a única superioridade que os Estados Unidos podem reivindicar para si, com veracidade, é a superioridade militar. Em todas as outras esferas - económica, política, cultural ou moral, por exemplo -, essa superioridade pode ser questionada.Estamos diante de um salto no escuro em direcção à pré-modernidade, que pode ser vista também na abolição, pelos mesmos Estados Unidos, de um exército de cidadãos e na recriação de um exército de mercenários profissionais. Agora, porém, com armas nucleares. Só uma certeza podemos ter: o Mundo está mais perigoso e o concerto entre as nações mais problemático. A espantosa resistência do povo iraquiano aos ocupantes, neste momento, já é um sinal de que a força está longe de resolver os problemas e de iluminar a esperança. Esperemos que o cogumelo atómico não escureça tudo, de vez (veja-se as verbas que foram disponibilizadas para a nova geração de armas nucleares).No próximo ¿POST¿ falaremos mais em pormenor da constituição da equipa que quer conquistar o Mundo. *César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Contraponto Editora, 1998, 9ª edição) e integra a coordenação nacional no Brasil do Movimento Consulta Popular.