Sábado, Dezembro 27, 2003
No balanço do 2003 e conforme o "Livro de Estilo" já anunciado, damos espaço também aos amigos e por quem temos estima. Deste modo, mais um texto do Hugo Fernandez (ele não me confirmou, creio que publicado no último "Le Monde Diplomatique", aqui vai:
O JUSTICEIRO SOLITÁRIO
No passado Dia de Acção de Graças, a tradicional e mais importante festa da família nos E.U.A, George W. Bush reiterou no aeroporto da capital iraquiana ¿ de onde, aliás, nunca saiu ¿ a sua obsessão ¿messiânica¿ e a vocação imperialista do seu país. Jantando com o administrador civil americano Paul Bremer e com mais de 600 soldados declarou, no habitual esquematismo e maniqueísmo da sua retórica, ¿Vocês estão a derrotar os terroristas aqui no Iraque para não termos de os defrontar no nosso país¿(1) , acrescentando ¿Não vamos retirar-nos perante um grupo de bandidos e assassinos.¿ Estava mais uma vez demonstrado aquilo que muitos observadores e a grande maioria da opinião pública internacional de há muito já sabiam. Por um lado, o irreprimível desejo dos americanos de que o mundo não seja mais do que o seu ¿quintal¿. Uma espécie de ¿reserva de caça¿ onde estes, ao arrepio de qualquer princípio de legalidade internacional ou de mera decência civilizacional, poderão atacar, destruir e matar quem, onde e quando muito bem entenderem. Apenas um pequeno número de ¿cães de fila¿ ¿ a que dão o pomposo nome de ¿forças da coligação¿ ¿ tem direito a acompanhá-los nesta grotesca ¿caçada¿ que, como se viu no caso da invasão do Iraque, não precisa sequer de ter qualquer justificação minimamente plausível. Por outro lado, o mito do justiceiro solitário, que contra tudo e contra todos percorre as imensidões, já não do Oeste, mas do mundo, em busca dos bandidos ou tão só de todos aqueles que possam opor-se aos seus desígnios e perturbar a sua caminhada. O mito do ¿ lonesome cowboy¿, do herói solitário e, por vezes incompreendido, dos velhos western. Esta visão do mundo tem importantes consequências.
A LÓGICA INDIVIDUALISTA
Trata-se, ao fim e ao cabo, da reactualização da ética protestante, matricial na constituição do Novo Mundo. Como diz Carl N. Degler, em Out of Our Past, ¿Ao proclamar o sacerdócio de todos os crentes, o protestantismo fez com que a relação de cada homem com Deus fosse apenas responsabilidade sua. Mais ninguém o poderia salvar; além do mais, ninguém o deveria tentar.¿, para concluir, ¿Mais preocupado com a sua salvação do que com questões mundanas, o puritano tornou-se, devido à salvação da sua alma imortal, um terrível individualista.¿(2) O próprio mito da viagem, estreitamente associado ao da expansão para o Oeste e à ideia de fronteira, não será mais que a expressão de uma busca interior com vista à regeneração moral, uma ¿demanda do eu¿. O desenvolvimento do capitalismo e da ideologia liberal ¿ que Georges Burdeau designa por ¿l¿absolutisme de l¿individu¿(3) ¿ reforçaram enormemente esta tendência. Desta postura decorrem múltiplas consequências. A fulanização das situações e a individuação dos acontecimentos, impedem qualquer perspectiva de análise da realidade minimamente consistente. Será impossível compreender, por exemplo, a dimensão da resistência iraquiana ao invasor americano, a atitude generalizada de indignação e revolta perante a ocupação do país, expressa de forma lapidar aos enviados especiais da revista Visão, Henrique Botequilha e António Xavier, por um combatente anónimo: ¿Se pudermos matar um americano, matamos. (...) Mas não podemos concordar com a sua permanência no nosso solo. Ficando, morrem. E morrerão todos, até ao último homem.¿(4) Tal como será impossível entender porque razão esse iraquiano diz convictamente que ¿Esta resistência nada tem a ver com Saddam.¿, para acrescentar ¿Só queremos os americanos fora daqui.¿ Este sentimento é de tal forma generalizado que a particular perigosidade do ¿triângulo sunita¿, à volta de Bagdad ameaça deixar de fazer muito sentido. A resistência estende-se de Norte a Sul do país, verificando-se, a cada novo ataque às forças americanas, um júbilo espontâneo da população local. Por isso, não deixa de ser patético e ao mesmo tempo trágico, a incessante busca do ¿mau da fita¿, do vilão, culpado de todas as contrariedades e desgraças, como se estivessemos a assistir ao enredo de uma qualquer produção de Hollywood. Ultimamente esse papel parece estar a ser preenchido pelo general e ex-vice-presidente iraquiano Ezzat Ibrahim al-Douri, depois de várias cartas do baralho americano da morte já terem sido capturados ou eliminados. Antes tinham sido outros. A começar pelo próprio Saddam Hussein ou por Osama bin Laden, considerados os ¿inimigos públicos nº1¿. O comando militar americano para o Médio Oriente criou mesmo uma força de elite, a Task Force 121 ¿ cujas operações se desenrolam a partir do Pentágono, debaixo do mais absoluto secretismo ¿ destinadas exclusivamente à captura ou aniquilamento destes e de outros dirigentes procurados pelos E.U.A. Na opinião várias vezes manifestada pelo presidente Bush e pela sua Administração, este é um ¿objectivo-chave¿ a alcançar. Mas, se a memória não for curta, verifica-se que a individuação das responsabilidades dos acontecimentos e a demonização dos alegados responsáveis, já foi atribuída noutras épocas a outros protagonistas. Quem não se lembra do que se passou com Khomeini, Milosevic ou com o general Noriega no Panamá. Ou do célebre senhor da guerra somali, Mohammed Farrah Aidid, cuja captura no início dos anos 90, à boa maneira do Oeste, esteve sujeita a uma recompensa de um milhão de dólares. Já para não falar dos ódios de estimação atribuídos a figuras como a do dirigente líbio Muhammar Khadafi, que viu a sua residência bombardeada pelos americanos em 1986, ou de Fidel Castro, vítima de inúmeras tentativas de assassinato. Os exemplos poderiam multiplicar-se quase indefinidamente.
A IMPOSSIBILIDADE DA ANÁLISE
Decorre duma lógica restrita de explicação baseada no papel do dirigente ou do herói, que pouco pode, de facto, entender-se do que se passa. Por isso, para além da mera propaganda, as afirmações do presidente norte-americano George W. Bush, parecem demonstrar uma enorme ignorância. Numa das suas habituais alocuções radiofónicas semanais, nos inícios de Novembro, Bush afirmou que ¿Os terroristas e baasistas leais ao antigo regime vão fracassar, porque a América e os aliados têm uma estratégia, e essa estratégia está a resultar.¿ (sublinhados nossos). Como se sabe, o mês de Novembro foi, precisamente, um dos mais violentos e mortíferos para as forças norte-americanas no Iraque. Recorde-se, a título exemplificativo, o derrube de um helicóptero norte-americano Chinook por um míssil terra-ar SA-7 ¿Strela¿ de fabrico soviético, que provocou a morte a 17 soldados e ferimentos noutros 20, num dos episódios mais sangrentos desta guerra. E, mais uma vez, os habitantes da localidade iraquiana de Albu-Issa, onde o helicóptero foi abatido, manifestaram o seu enorme regozijo: ¿É um dia de festa¿ ¿ repetiam incessantemente, enquanto exibiam com orgulho os pedaços calcinados do aparelho americano abatido ¿ ¿Se um soldado americano morre nós ficamos contentes, por isso imagine como nos sentimos hoje¿ disse Hadi, um popular entre outros que foi ouvido por um repórter da AFP que visitou o local(5) . Ultimamente e perante a divulgação de relatórios da CIA que dão conta de uma crescente adesão da população iraquiana à resistência contra a ocupação estrangeira, o chefe do Comando Central americano no Iraque, John Abizaid esclareceu que, ao contrário de números que apontavam para cerca de 50.000 iraquianos envolvidos directamente em acções contra as forças americanas, estes não seriam, afinal, mais que 5 mil! Reduz-se a resistência generalizada à dimensão de um ¿bando¿. No entanto, constata-se que o ambiente é profundamente hostil. Para os iraquianos os inimigos são, sem dúvida, as forças de ocupação estrangeiras. Reflexo disso é a interdição por parte das autoridades dos E.U.A, da recolha de quaisquer imagens de baixas ou de transporte de restos mortais de soldados americanos, tendo sido já por várias vezes denunciadas as enormes pressões da Casa Branca sobre os media para que não explorem esse assunto. O paradigma individualista, tão enraizado no ethos americano teve mesmo, na nossa opinião, um efeito dissolvente da riqueza multicultural que esteve na origem dos E.U.A. O fervilhante cadinho cultural das origens transformou-se, com o correr dos tempos, numa homogeneização de valores e de costumes e, por força da concorrência desenfreada e do fundamentalismo individualista, aniquilou qualquer referente comunitário ou sentimento de solidariedade, configurando uma autêntica situação de anomia durkheimiana. Mais; a própria ideia do outro, do diferente, é sempre considerada como uma ameaça. A agressividade desta atitude está bem atestada no racismo, discriminação, xenofobia e endémica violência da sociedade americana, que tem como uma das mais recentes expressões em termos das relações internacionais, a obscena ideia da ¿guerra preventiva¿. A este propósito, numa obra escrita nos inícios do século XX, O Papel do Indivíduo na História, o pensador russo George Plekhanov, dissertou precisamente sobre as potencialidades e limites da iniciativa dos ¿grandes homens¿ no evoluir dos acontecimentos. A sua conclusão foi esta: ¿Graças às particularidades da sua inteligência e do seu carácter, as personalidades influentes podem fazer variar o aspecto individual dos acontecimentos e algumas das suas consequências particulares, mas não podem fazer variar a sua orientação geral, que é determinada por outras forças.¿(6) De facto, para este autor, as condições históricas gerais são sempre mais determinantes que o poder das personalidades, por mais fortes e influentes que sejam. A influência individual ficará, assim, anulada? Certamente que não. Só que a possibilidade e dimensão desta influência é determinada pela organização da sociedade e pela relação de forças aí existente. O papel do indivíduo e a importância da sua acção é, portanto, redefinido. Como explica Plekhanov ¿Um homem não é grande porque as suas particularidades individuais imprimem uma fisionomia individual aos grandes acontecimentos históricos, mas porque está dotado de particularidades que tornam o indivíduo mais capaz de servir as grandes necessidades sociais da sua época¿(7) Diríamos, por outras palavras, que traduz, com propriedade, a expressão do seu tempo. E, ao contrário do que possa parecer, este tempo está cada vez mais contra o poder de Washington.
(1)Público, 28 de Novembro de 2003, p. 16.
(2)Citado em Mário Avelar, América, Pátria de Heróis, Lisboa, Colibri, 1994, p. 15. (3)Georges Burdeau, Le Libéralisme, Paris, Seuil, 1979, p.90.
(4)Visão, 27 de Novembro de 2003, pp. 76-79.
(5)Publico, 4 de Novembro de 2003, p. 12.
(6)George Plekhanov, O Papel do Indivíduo na História, Lisboa, Antídoto, 1977, p. 65, (sublinhados no original).
(7)Idem, p. 81-2.