Domingo, Março 21, 2004
OS MÉDIA REFLECTEM TAMBÉM A CRISE DO IMPÉRIO
Mais uma vez (na verdade não há nada a fazer!... é mais forte...), depois de uma semana de ressaca mediática (independentemente da geografia política/ideológica) sobre os acontecimentos trágicos/cobardes/hediondos/assassinos de Madrid, sobre a mentira do PP (do asno) do Aznar, sobre a vitória eleitoral do PSOE (e de uma vez por todas, foi uma vitória da mudança e não do medo; quem não quiser perceber isso, está tudo dito...!), depois de um ano sobre a invasão e ocupação de um país à revelia da ONU (as armas de destruição massiva, provavelmente deve ser o petróleo que lá existe!), depois de ler José Arbex Jr, depois de ler, ver e ouvir os mais variados comentários (sobretudo os de alguns cujas manchas de sangue, por mais ¿detergentes¿ que usem, dificilmente...), digo, não resisto a algumas palavras sobre a acção da comunicação social e, simultaneamente, abordar um pouco ao de leve o comportamento dos comentadores oficiais e da promiscuidade de alguns responsáveis da comunicação social com o poder (à boa maneira do liberalismo oitocentista, nunca os interesses económicos, em detrimento dos sociais, estiveram tão mancomunados com o político). Este ¿POST¿ é um tributo... CAROS AMIGOS.
Falar do comportamento dos MÉDIA, qualquer análise minimamente crítica, mesmo que rápida, terá de ter em conta a grande diferença entre as coberturas dos ataques estadunidenses praticados em janeiro/fevereiro de 1991 e aqueles que estão em curso, desde Março de 2003. Em 1991, simplesmente não apareceu a população civil iraquiana. A televisão mostrou uma guerra sem sangue, graças às armas ¿cirúrgicas¿ criadas pelos Estados Unidos, capazes de acertar precisamente no alvo, sem causar sofrimentos inúteis. Tudo se passou, então, como se no Iraque não houvesse seres humanos. Agora não. Soubemos/sabemos, pelo menos, que crianças iraquianas foram/estão a ser cruelmente assassinadas; que os ataques causaram grande destruição de sítios arqueológicos; que as bombas atingem civis e que não existem armas que sejam assim tão ¿cirúrgicas¿ (provavelmente depende do ponto de vista!). Mais: todos sabem que Bush filho não atacou o Iraque por motivos humanitários, mas por petróleo (em 1991, Bush pai teve um sucesso bem maior, ao vender a versão de que atacava Bagdad para libertar o Kuwait e salvar o mundo do novo Hitler que surgiu no Médio Oriente ); até prova em contrário, sabe-se que Saddam Hussein não tinha armas de destruição em massa ¿ facto atestado pelos enviados da ONU, e amplamente divulgado pelos meios de comunicação. Sabe-se também que Bush despreza solenemente a Organização das Nações Unidas, os tratados internacionais, os mais elementares princípios humanitários. Em 1991, nada disso estava muito claro. Não que fosse exactamente um segredo. Não era. Mas também não era um facto tão claramente estabelecido.Manipulação dificultada. Claro que isso não tem significado que a cobertura que foi feita (e até a actual), fosse a mais correcta, transparente e democrática (e não se desculpem com o argumento de que foi a possível). Não foi, a começar pelo facto de que se vendeu/vende a ideia de que houve uma guerra entre os Estados Unidos e o Iraque, quando não houve/há guerra alguma, pois as forças em combate não tinham qualquer proporção ou simetria. A cobertura continua a ser parcial e ¿patriótica¿: os correspondentes continuam a falar na libertação do Iraque (versão da rede FOX, CNN, ABC), mediante a derrota da ditadura de Saddam, providencialmente deixando de mencionar que Bush não passa de um fraudador de urnas envolvido até ao pescoço nos escândalos de corrupção que abalaram a economia do seu país, em 2001, 2002 e 2003. E que o seu governo promoveu/promove (o Aznar foi um bom seguidor) uma monumental campanha de perseguição àqueles que ousam criticar. Ainda assim, a capacidade de manipulação das notícias pela comunicação social tem sido, sem dúvida, muito menor e mais limitada do que em 1991. Como explicar a diferença? Simples: ao longo dos últimos dez anos, houve uma rearticulação profunda e monumental dos movimentos sociais e das organizações de trabalhadores, em todo o mundo. Essa rearticulação, que permitiu a realização de três sessões do Fórum Social Mundial, e que foi por ele fortalecida, tem levado milhões de pessoas às ruas, desde 15 de fevereiro de 2003 até ontem 20 de Março de 2004, nas maiores manifestações contra o modo actual do exercício do poder, pelo menos desde os anos 60 (quando a opinião pública mundial derrotou o ¿autismo¿ dos Estados Unidos, na Guerra do Vietname). Em 1991, o mundo, impotente e sem iniciativa, ainda engolia o pó levantado pelos escombros do Muro de Berlim. Consenso? Onde? Bastou uma década para o vitorioso neoliberalismo mostrar a sua falácia quando se trata de oferecer respostas aos problemas básicos levantados pela humanidade; a sua falência moral, como sistema que estimula e multiplica grandiosos esquemas de corrupção; a sua absoluta crueldade, por condenar 11 milhões de crianças à morte por fome, a cada ano (ou 60 milhões de seres humanos, se também contabilizados os adultos, isto é, um número equivalente ao total de mortos na Segunda Guerra). Em dez anos, o fim da história propagado por Francis Fukuyama ¿ um espertalhão funcionário do governo, vendido pelos média como se fosse filósofo ¿ foi transformado, no máximo, na agonia do império estadunidense. É disso, finalmente, que se trata. O império agoniza. Verga sob o peso do seu próprio poderio bélico e das suas contradições internas (e será certamente pior a sua implosão do que tem sido a sua explosão) . A distância entre o império no seu auge e a sua posição no mundo contemporâneo pode ser medida pela mera comparação entre Franklin Delano Roosevelt ¿ arquitecto do New Deal e da versão estadunidense do Estado de bem-estar social ¿ e o débil mental fundamentalista que agora ocupa a Casa Branca. Não, ninguém está a dizer aqui que Roosevelt era um ¿puro¿ ou um líder humanista; mas não há como compará-lo ao macaco precariamente amestrado que agora governa os EUA. Mesmo Bill (Oral) Clinton poderia ser considerado um estadista, ao lado de (Adolf) Bush. Os sinais da decadência multiplicam-se por todos os lados: as empresas estadunidenses perdem competitividade para as europeias e japonesas; a agricultura só sobrevive à custa dos maiores subsídios públicos do planeta; a economia depende, cada vez mais, de um Estado superproteccionista (mas impõem o contrário aos outros). O quadro foi ainda agravado, para os Estados Unidos, com a criação, introdução e sucesso do euro na economia internacional, tirando ao dólar a sua condição de moeda universal e meio de parasitar as riquezas do planeta. Os Estados Unidos queriam mais dinheiro? Fabricavam-se dólares, e o mundo que pagasse a conta. Mau grado as vicissitudes (até alguns dos seus criadores se deixaram enredar na tentativa para o seu insucesso ¿ vejam-se os alinhamentos que tiveram a Espanha, Itália e Portugal com a panaceia estadunidense), o euro criou uma alternativa ao dólar e começou a colocar um fim na orgia financeira. O conflito entre as potências do império, verificado durante os preparativos do ataque ao Iraque ¿ notoriamente, França, Alemanha e, em plano secundário, a Rússia, de um lado; Estados Unidos e os Estados vassalos, Grã-Bretanha e, secundariamente, Espanha e Portugal, do outro ¿, reflectiu a nova realidade internacional construída pelo euro. Em 1991, não houve nem sequer a remota ideia de um conflito. Os Estados Unidos mandaram, a OTAN e o G-7 obedeceram. A União Soviética tinha acabado de desaparecer, e a Rússia nada tinha a declarar.A decadência tem sido tão acelerada, que em poucos meses foi esvaziado o consenso em torno de Bush, artificialmente criado após os atentados de 11 de setembro de 2001. Agora, apesar das perseguições policiais, do clima de caça às bruxas, da histeria patriótica que funciona como uma espécie de cimento psicossocial responsável pela frágil coesão da classe média puritana dos Estados Unidos, apesar de tudo isso, a oposição toma de novo as ruas e existem alternativas. Intelectuais, estudantes, trabalhadores e artistas consagrados denunciam o debilóide texano e desafiam o sistema. Barões em apuros! Os barões da comunicação social captaram essa nova realidade mundial. Eles dependem da credibilidade dos seus leitores e telespectadores. Sabem que não podem mentir sempre, impunemente. O monumental fiasco representado pela tentativa de manipulação e ocultação da verdade dos factos, por parte do governo espanhol e de alguns comentadores nos órgãos de informação, no cobarde atentado de Madrid, provou a escandalosa farsa mediática ¿, deixou as suas marcas e lições. Da mesma forma, os ¿barões¿ (incluindo sobretudo os seus porta-vozes ¿ os denominados comentadores) dos média foram finalmente obrigados a admitir que há seres humanos no Iraque, e que as armas estadunidenses não eram assim tão cirúrgicas. Ainda é pouco, mas esse pouco pode ser suficiente para estimular novas e maiores demonstrações. Tampouco a cobertura da Guerra do Vietname, nos anos 60, foi um show de democracia, como muitos querem acreditar. Muito longe disso. Os grandes jornais tentaram, até ao fim, manter o patriotismo em alta, até serem obrigados a engolir os factos. Bastou o mínimo de informação correcta ¿ plasticamente representada pelos famosos sacos de lona preta que embalavam os corpos dos soldados mortos ¿ para que a população dissesse não. É possível derrotar novamente a farsa, e como se tem assistido, ela é ainda causadora de mais terrorismo. É necessário. E nós vamos fazer isso.