Como já é do conhecimento geral, alguns autarcas do Alentejo (taifas na feliz expressão do Planície Heróica), decidiram encarneirar na pseudo regionalização que os ignaros da coligação decidiram implementar (porque não tem coragem de trazer à discussão aquilo que a contragosto rejeitaram num referendo habilidoso). Então foram para a Madeira, provavelmente buscar a inspiração made Alberto João, para decidirem criar uma ComUrb de uma parte do Alentejo, retalhando aquilo que não pode ser retalhado. Ingenuamente, julgava eu, que esses senhores politiqueiros, que tinham a obrigação de serem diferentes dos Ferreiras Torres, dos Curtos, das Felgueiras, dos nababos que campeiam por essas berças..., na verdade, com este tipo de decisões... são um primor! Palavras para quê... Provavelmente, conhecem pouco da história, do território e das gentes sobre as quais deviam ser os primeiros responsáveis a zelar pela sua defesa, bem como das legítimas aspirações de desenvolvimento e bem-estar dessa grande região que é o Alentejo. Na verdade, é necessário muita leitura... e isso dá trabalho (podiam ter dado uma vista de olhos sobre a obra de José Mattoso e de Suzanne Daveau Portugal: o sabor da Terra, nomeadamente, os volumes referentes ao Alentejo). Contudo, nós vamos dar um pequeno contributo para que esses senhores tenham um pouco mais de cuidado quando decidem sobre o presente e o futuro das pessoas.
ALENTEJO: um equívoco ou uma região?
A GEOGRAFIA E A HISTÓRIA
Como outras regiões, tirou o nome de um rio. No entanto, ao contrário do que acontece, por exemplo com o Douro, esse rio, o Tejo, é, por assim dizer, exterior à região. Não é um elemento estruturante, integrador, mas um limite, uma margem. Vindo da Meseta, banhando no seu curso Toledo, no centro mítico da Península, acaba derramando-se pelas lezírias de Santarém e pelo largo estuário que inclui o mar da Palha, quase frente a Lisboa. Este velho eixo que liga as duas cidades, o grande porto e centro consumidor ao centro estruturante de uma região agrícola e produtiva, é sem dúvida também o Sul mas não o Alentejo. O Alentejo há que procurá-lo mais longe, deixando entre nós e o rio uma distância. Há que procurá-lo, afinal, além do Tejo.
Palavra densa de significados, esta. E também de paradoxos. Paradoxo de uma região ser conhecida pelo nome de um rio que constitui apenas de forma imperfeita e irregular o seu limite norte, uma vez que uma parte substancial da margem esquerda do Tejo prolonga as características da margem direita e chegou a constituir com ela uma unidade. Paradoxo de perspectiva que a preposição «além de ... » encerra: de facto, só é além do Tejo para quem se situa do ponto de observação constituído pela margem direita, ou, por outras palavras, do setentrião. A própria escolha do nome implica, assim, o triunfo do olhar sobre a região que lhe é exterior, promovido a partir do Norte.
Finalmente, paradoxo último, esse nome triunfou entre os indivíduos que o habitam como forma de se designarem a eles próprios: alentejanos. Como se se tivessem cansado de olhar directamente para si mesmos e apenas pudessem vislumbrar o reflexo que projectam num espelho mais ou menos longínquo. Se atendermos às circunstâncias que rodeiam a formação das unidades regionais, as particularidades que caracterizam o Alentejo tornar-se-ão mais claras, até na maneira como é nomeado.
Antes dos séculos XII e XIII, o «Alentejo» não existe. Há outra coisa em seu lugar. Os Árabes, que haviam dominado politicamente a Península no meio milénio anterior, chamavam al Garb, ao Ocidente. Ou, mais precisamente al Garb al-Andalus, o ocidente do Andalus, da Península. Que o é em relação ao eixo que historicamente a estruturava constituindo simultaneamente a sua parte mais rica e intensamente ocupada - o vale do Guadalquivir, com algumas grandes cidades, Córdova e Sevilha em primeiro lugar, correspondendo à antiga província romana da Bética. A poente de Sevilha, começava então uma região muito vasta e de contornos mal definidos, periférica, não obstante a sua importância, em relação aos centros políticos de decisão e aos centros económicas mais prósperos. A funcionar como eixo estruturador dos territórios adjacentes, sempre havia estado o Guadiana.
Nas suas margens ou próximos delas apareciam os núcleos urbanos mais importantes, de onde uma elite de proprietários e magistrados controlava os anéis de cultura intensiva em torno das cidades e a população rural concentrada nas alcarias. Assim em Mértola, em Beja, ou, subindo o rio, em Badajoz, um dos raros centros que o Islão fundou ex nihilo na Península. Mas o Garb árabe estendia-se muito para além do Guadiana, abrangendo não só o que os Portugueses vieram a chamar Algarve, ou seja, a faixa de terra apertada a sul entre as serras do Caldeirão e de Monchique e o golfo hispano-magrebino, mas também a bacia do Tejo; ou seja, na prática todo o Sudoeste peninsular.
A partir dos meados do século XII, a pressão do Norte começa a fazer-se sentir sobre toda esta vasta região. Quando ela termina, os eixos de organização territorial do Garb estão completamente mudados; começa a concretizar-se uma divisão duradoura que deixará traços indeléveis na paisagem. Com efeito, em 1147, Afonso Henriques, o senhor de Coimbra, como lhe chamam algumas fontes narrativas árabes, assegura o domínio do vale do Tejo com a conquista consecutiva de Santarém e Lisboa. Outras se seguirão: Palmela, Alcácer, Évora, Beja. E ainda a tentativa quase fatal de se apoderar de Badajoz (1169), em que o rei perdeu para o vizinho e concorrente de Leão as aspirações a controlar o Guadiana médio e, assim, a possibilidade de vir a integrar no jovem reino a totalidade do Garb. De resto as circunstâncias das últimas décadas do século XII ditam de forma decisiva a formação do conceito e da realidade Alentejo.
O Ultra Tagum, no latim dos clérigos-juristas, a tradução da expressão em língua romance além do Tejo passou a designar, na boca dos conquistadores, toda a vasta área que se estendia a sul do seu olhar. O próprio nome que se dá à região reflecte o processo da sua formação, e traz consigo um olhar, o dos vencedores. Na verdade, o rei português, depois de se ter tomado definitivamente Alcácer do Sal (1217), assegurando assim o controlo efectivo do vale do Sado, isto é, de toda a faixa costeira que constituiria o Alentejo litoral e, a seguir a ele, as ordens militares, principalmente a de Santiago, que despendem boa parte do esforço bélico, vão inflectir para o interior, tomando o vale do Guadiana como via de penetração e eixo das conquistas. Évora era, para o efeito um bom ponto de apoio, e a conquista ou rendição de praças em ambas as margens - Serpa, Moura, Aljustrel, Mértola, Aroche, Aracena - mostrava a intenção de anexar a totalidade da região. Não surpreende, portanto, que, a partir de 1249, os últimos redutos muçulmanos na faixa costeira sul caiam nas mãos dos cristãos. No ano anterior, o rei castelhano-leonês tinha conquistado Sevilha. O Garb desaparecera. Havia agora que dividi-lo. O que não foi tarefa fácil.
Neste processo, a escolha de um obstáculo que pudesse servir de fronteira aos dois reinos passa pelo Guadiana, opção lógica, por constituir o maior acidente geográfico entre Alcácer e Sevilha, se exceptuarmos as secas serranias do Andévalo, de limites muito menos nítidos. Por aqui, desde o Caia, um pouco abaixo de Badajoz, até à foz, em Castro Marim e Aiamonte, correrá a fronteira entre 1271 e 1295. No final do século, será modificada, com a passagem para a Coroa portuguesa de algumas importantes praças da margem esquerda do Guadiana - Olivença, Mourão, Moura, Serpa. No conjunto, porém, o rio ou um seu afluente, o Chança, manter-se-ão como limite. De traço de união, passará a linha divisória. Essa mudança virá a revelar-se decisiva para a formação do Alentejo. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que ele foi inventado durante este período. Simultaneamente, para os conquistadores, o território recém-adquirido que se estendia entre o Tejo, a serrania que passaremos a designar de algarvia e o Guadiana, apresentava uma unidade.
Na organização territorial que o poder central empreende, corresponde-lhe uma das grandes circunscrições administrativas em que o reino se divide, para efeitos da acção da justiça e do poder central - a comarca de Entre Tejo e Odiana. Com efeito, logo após a ocupação, o rei começa a configurar institucionalmente o novo território, distribuindo terras e jurisdições às ordens que o haviam ajudado a conquistar, negociando com as elites urbanas, através da concessão de cartas de foral, assegurando posições territorialmente significativas para indivíduos da sua confiança, e, por todo o lado, restaurando ou criando do nada castelos e núcleos urbanos.
A todos estes títulos os reinados decisivos são os de Afonso III e D. Dinis - a área coberta pela comarca de Entre Tejo e Odiana apresentava-se como uma realidade politicamente articulada, ao nível do encontro entre os interesses dos grupos urbanos e o programa político da Coroa. Na verdade, pelo menos a princípio, ela, a comarca, disfarça mal alguma artificialidade. A continuidade entre as terras das margens direita e esquerda do Guadiana é, ainda hoje, volvidos setecentos anos, por demais evidente. Nenhuma acção humana, nenhuma fronteira, por mais duradoura que fosse, poderia apagar essa identidade de base.
É certo que, no curso inferior do Guadiana, passado o Chança, um afluente que servirá de separação entre Portugal e Leão depois da entrega de Serpa e Moura ao primeiro desses reinos, o relevo se torna rapidamente mais movimentado era o cenário da criação extensiva de gado. Mas a transição é suave e, de resto, aquém-Guadiana, havia também um «Andévalo», representado pelo Campo de Ourique e pela serra algarvia. Se subirmos o Guadiana até às proximidades de Elvas, passado o Caia encontramos o mesmo espaço aberto, sem obstáculos que legitimem a divisão. A necessidade da nomeação era evidente, visto tratar-se de uma entidade nova. Já vimos como ela decorria da visão dos conquistadores. À expressão descritiva além do Tejo, que deve ter estado em uso na linguagem popular talvez já desde o século XII, vem juntar-se uma outra que, ao menos sob o ponto de vista administrativo, identifica mais rigorosamente as terras que lhe correspondem: «Entre» ou «Antre Tejo e Odiana» -já que só no século XVI a forma Odiana se transforma em Guadiana. Porém, a expressão «além do Tejo», ela própria uma frase descritiva, nunca se havia eclipsado. A partir daqui o nome da província será isso mesmo: um nome. Com o qual os seus habitantes passaram a identificar-se sem sequer notarem que havia vindo de fora de si mesmos. Distante o tempo em que em dois documentos produzidos em Beja os signatários se situam «Aaquem Tejo» (1284).
A região tem agora um nome que é um eloquente indício da forma como se construiu. Um indício afinal de como decorreu o processo de integração no todo nacional. A unidade do nome não é, no entanto, suficiente para escamotear a presença no seu interior de uma diversidade em grande medida ditada pelas condições de relevo e de solo e que fogem, por isso mesmo, ao tempo da História, para se inserirem naquele, muito mais profundo, da Natureza.
Com efeito, e apesar da escassez de acidentes que permitam individualizar sub-regiões muito distintas no seu interior, o Alentejo, a quem o percorra da serra do Algarve a Nisa, ou de Sines a Barrancos, apresenta gradações devidas quer a diferenças climáticas quer do relevo e dos solos, que ditam peculiares condições de ocupação. É assim que, apesar de o clima ser em todo o lado mediterrânico, o litoral e as terras situadas nas bacias hidrográficas do Tejo e do Sado são mais húmidos que o interior. Também podemos afirmar de uma forma genérica que quanto mais se caminha para sul maior a secura, que atinge, no baixo vale do Guadiana, em Mértola, o seu grau mais elevado. Estas condicionantes climáticas determinam a existência nas bacias do Sado e do Tejo de uma cobertura vegetal onde predomina o sobreiro ou mais recentemente, em parte, o eucalipto, enquanto no interior triunfa a azinheira, mais adaptada à escassez de água, que é total no Verão.
Também os solos apresentam acentuada variedade permitindo distinguir diversas áreas: embora as terras de xistos, pobres e magras, onde apenas o milenar trabalho do arado pôde transformar em searas o terreno pedregoso, se apresentem como dominantes, elas são em algumas áreas, como a de Beja, interrompidas por manchas de terras fundas e argilosas, os «barros», cuja alta produtividade cerealífera é em grande medida responsável pelo mito da inesgotável fertilidade que desde há séculos se associa à imagem do Alentejo.
Outro contraste opõe as areias estéreis das bacias sedimentares do Tejo e do Sado, votadas à charneca despovoada, aos solos arenosos resultantes da alteração do granito, de razoável fertilidade. Se quisermos encontrar caracteres que permitam individualizar unidades regionais dentro do Alentejo, teremos que cruzar necessariamente os dados do clima e dos solos com os do relevo e dos cursos de água. Estes últimos são tanto mais significativos quanto se constituem, do ponto de vista do observador, como marcos essenciais de apreensão da paisagem e, simultaneamente, como balizas que permitem dividi-la.
Numa paisagem de relevos atenuados, onde a planície alterna com cabeços gastos, criando uma ilusão de monótona repetição, esse tipo de acidentes reveste um carácter ainda mais decisivo como forma de encontrar e produzir singularidades. É nesse sentido que agem os três rios maiores que atravessam ou limitam o Alentejo: o Sado é o eixo ordenador de uma sub-região, sob o ponto de vista da geografia humana próxima do Alentejo interior, mas em que os arrozais e as salinas da foz contrastam vivamente com as planícies cerealíferas e os montados que compõem a imagem comum do Alentejo, aproximando-a mais dos modelos de ocupação do espaço e dos sistemas de cultura do baixo vale do Tejo. Em toda a margem esquerda deste último rio, os terrenos arenosos e pobres das «baixas do Sorraia», para retomar a designação de Barros Gomes (1875), não permitem, ontem como hoje, mais do que um povoamento muito escasso: um reduzido número de centros urbanos separados entre si por várias dezenas de quilómetros. Alentejo ou transição para o Ribatejo?
A presença do Guadiana individualiza igualmente um território, a «Riba d'Odiana», como se chega a dizer na Idade Média, isto é, os concelhos da margem esquerda. No entanto, apesar de uma consciência de identidade que existe entre a população, os traços de continuidade face à planície de Beja são demasiado fortes para que se possa falar numa subunidade regional.
Até agora falámos essencialmente de zonas marginais. Resta o miolo. Este é definido pelos acidentes do relevo. A sul, a serra algarvia constitui um obstáculo natural que durante séculos se revelou de difícil transposição e, nesse sentido, uma barreira ideal para limitar a região. No centro, a escarpa da Vidigueira, separando com nitidez a planície de Beja da de Évora, constitui-se, do mesmo modo, como uma barreira natural. A velha via romana, que ligava os dois principais centros urbanos do território, teve de a respeitar, contornando-a pelo Torrão. A norte, as serras de Marvão e São Mamede, prolongando os montes de Toledo, limitam setentrionalmente a região transtagana começando a esboçar caracteres de articulação com a Beira Baixa.
A vasta planície central do Alentejo, aqui e ali pontuada por alguns acidentes menores, aparece, assim, como que dividida ao meio pela escarpa da Vidigueira, que separa as áreas de influência de Évora e de Beja, quer geográfica quer historicamente. É neste limite que podemos apoiar uma das maiores cesuras na região, entre o Alto e o Baixo Alentejo. Esta divisão - é hoje geralmente aceite, apesar de a sua origem ser mais erudita do que popular. De facto, ninguém se diz alto-alentejano nem baixo-alentejano, É Alentejano !
CONTINUA...