Não é meu propósito falar de José Sócrates enquanto indivíduo. É uma pessoa de fracas qualidades e de pouco interesse. Tudo muda de figura, no entanto, se o encararmos enquanto expressão sociológica de um certo modo de ser português. Aquilo que Max Weber definia como tipo-ideal. É evidente que este tipo é sempre uma construção teórica, uma abstracção da realidade que, juntando uma série de elementos significativos presentes nessa mesma realidade embora não da forma sistemática com que acaba por ser apresentada nos ajudam à sua compreensão. É um instrumento analítico usado pelos cientistas sociais com o objectivo de tornarem a sociedade mais inteligível. Baseia-se, essencialmente, numa caracterização e combinação metódica e persistente de padrões individuais concretos ou, como explica Weber em A «Objetividade» do Conhecimento nas Ciências Sociais (in Cohn, Gabriel, Max Weber: Sociologia, São Paulo, Ática, 1979, p. 106), na " acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenómenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogéneo de pensamento. Deste ponto de vista, José Sócrates torna-se, sem dúvida num autêntico case studie.
Não falo apenas das suspeitas nos casos Freeport ou Face Oculta, do aludido controlo editorial da TVI através da compra da Media Capital pela PT, do afastamento de Moura Guedes do Jornal de Sexta da TVI, das mencionadas pressões sobre o Público e o Sol alegadamente a troco de contrapartidas financeiras (garantia de publicidade e de empréstimos bancários), dos processos movidos a jornalistas e a adversários políticos, que rechearam inúmeras manchetes de jornais, aberturas de noticiários televisivos, preencheram múltiplos comentários políticos ou conversas de café, sempre transmitindo a ideia de presumíveis actos de corrupção, tráfico de influências, fraude fiscal, crime de atentado ao Estado de Direito (alegação feita por um juiz de acção criminal e mesmo pelo Procurador-coordenador do Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro) ou nepotismo praticado pelo Primeiro-Ministro ou pelos homens da sua confiança. Nem dos episódios rocambolescos da sua licenciatura, da contestada autoria de mais de duas dezenas de projectos de engenharia assinados por si nos anos 80 ou da polémica a propósito do valor da aquisição de apartamentos num conceituado prédio lisboeta.
O que acontece é que, como disse há tempos Pacheco Pereira, não há pedra em que não se dê um pontapé (
) em que Sócrates não apareça. (Público, 14/11/09). E não se trata de perseguição ou da campanha negra com que o Primeiro-Ministro gosta de se vitimizar. Trata-se da simples constatação de que Sócrates aparece sempre lá, perto ou longe, com mais ou menos responsabilidades, e aparece porque está lá. Ele, a família, os seus amigos do PS, as pessoas que escolheu, as áreas onde governou e governa. (idem). Ora é neste ponto que se justifica falar do tal tipo ideal weberiano, ainda que com a linearidade exigida pela economia de um texto como o que agora se apresenta. Para todos os efeitos, podemos caracterizar o tipo de actuação referida como expressão do mais puro chico-espertismo. Este é infelizmente um padrão comportamental recorrente e transversal à sociedade portuguesa. O chico-esperto é o malandro que usa a malícia e o fingimento para obter o que quer, sem que os outros se apercebam disso. É o falinhas mansas, o sonso ou, numa versão mais hard, o pato-bravo que leva sempre a água ao seu moinho, recorrendo a todos os meios necessários e sem olhar às consequências que os seus actos possam causar a terceiros. A falsidade e a falta de escrúpulos são, aliás, características matriciais da relação que estabelece com os outros. O desvio mais ou menos declarado à norma quando não à própria legalidade constitui a sua verdadeira idiossincrasia. Encontramo-nos, portanto, em pleno domínio do desenrasque.
Atentemos, a este propósito, nas certeiras palavras de José Gil, no seu mais recente ensaio Em Busca da Identidade o desnorte (Lisboa, Relógio DÁgua, 2009, pp. 30-34): O chico-esperto não é o mentiroso, o grande escroque, o corrupto que se coloca claramente fora da lei. Pelo contrário, aproveita um espaço não-preenchido pela lei para cometer um acto quase legal, mesmo quando implica pequenas transgressões das normas jurídicas. (
) O chico-esperto infringe a lei como se estivesse a cumpri-la, como se fosse uma boa partida sem consequências de maior. Porquê? Porque, no fundo, a pequena transgressão que comete não faz dele um criminoso, apenas um «malandreco». E o que é mais grave é que pode contar com a conivência e, mesmo, declarada aprovação de uma opinião pública largamente formatada à imagem e semelhança do mesmo tipo de atitudes. A cumplicidade geral, mesmo quando há uma condenação pública, faz do chico-esperto bem sucedido uma personagem digna de realce e mesmo consideração. Como refere José Gil, a sua acção ganha valor o valor da sua esperteza. Esta necessita de descaramento, mas contém ousadia, temeridade e até coragem valor moral enviesado, mas que todos os portugueses reconhecem. Por isso, o filósofo conclui que o chico-esperto Define-se como o que se aproveita, à beira da ilegalidade ou mesmo dentro dela, dos espaços deixados em branco pelos códigos e as normas, para obter fins que não alcançaria de outro modo. O chico-esperto não nega o poder e a lei, contorna-os pontualmente. A sensação de impunidade dá-lhe a falsa ideia de superioridade em relação aos outros. É desse sentimento e das vantagens da sua acção que se alimente o chico-esperto. Traçando um perfil necessariamente esquemático, este tem um temperamento vivaço e irascível (dependendo do sucesso ou insucesso dos seus empreendimentos), é egocêntrico e vaidoso (seguidor das modas e adorando gadgets) é ignorante q.b. (pois não tem vontade nem paciência para se cultivar) e, sobretudo, está obcecado pelo permanente protagonismo (a qualquer preço). O retrato faz-vos lembrar alguém?
Este ethos português é velho de séculos. Sempre fomos bons a viver de expedientes e de esquemas manhosos. Também por isso sempre vivemos numa sociedade envenenada pela corrupção e pelo compadrio. O império da cunha, verdadeira instituição nacional, tornou-nos, ao longo dos tempos, um país atrasado e desleixado. Mas a questão que se põe é saber se a acção social e política no mundo de hoje pode continuar a compadecer-se com semelhantes procedimentos. Até pela simples razão de que a concorrência internacional é muita e, em geral, melhor apetrechada. Assim, a persistirmos nesta postura, à falta de princípios éticos e valores morais acresce uma inevitável falta de eficácia na resolução dos problemas que se nos deparam. Ora, a modernidade tantas vezes proclamada passa, precisamente, por erradicar dos hábitos e comportamentos dos portugueses estes atavismos tão arreigados. De forma sistemática e reiterada. Nos grandes como nos pequenos poderes. Estaremos dispostos a denunciar estas situações e, de uma vez por todas, deixar de transigir com o chico-espertismo? Estaremos realmente dispostos a crescer como sociedade?
Hugo Fernandez