Quando se fala nos prisioneiros iraquianos e na actuação dos carcereiros ligados às forças militares ocupantes, todos são unânimes em afirmar que as chamadas ONGs, mais próximas deste tipo de situações, já sabiam do que se estava a passar nos campos de prisioneiros. Muito sinceramente, com todas as letras, para mim, não foi surpresa. Quando os delegados ideológicos do Pentágono, afirmavam que “Guerra... é Guerra”, o que é que se estava à espera! No entanto, feita a denúncia por “alguma” comunicação social, tudo se indignou com o “facto”. Posto isto, fiquei “rodeado” de dúvidas . Então se as tais ONGs já sabiam porque não o denunciaram como fizeram no caso de Guantanamo?! Porque é que os inquéritos já decorriam, parece que desde Janeiro de 2004, e praticamente nenhuma organização fez o “favor” de fazer a denúncia veemente da situação? Teve que ser a “maldita” da comunicação social a denunciar os procedimentos dos paladinos da “exportação” dos direitos humanos e da democracia!
Hoje no Público, o Fernando Rosas escrevia sobre as mentiras da invasão e ocupação do Iraque, o que em parte concordo (aliás, tanto eu como o Hugo, já escrevemos, neste blog, sobre o assunto, é só consultar o arquivo), mas também escrevia isto sobre a presumÃvel denúncia do “tratamento” dos prisioneiros iraquianos, a saber: Também o não serão, seguramente, para as várias organizações humanitárias (Human Rights Watch, Cruz Vermelha Internacional, Amnistia Internacional) que, desde a invasão do Afeganistão, passando por essa "zona de não direito" que é a base de Guantanamo, até à guerra civil e à s prisões dos EUA no Iraque, têm vindo, há mais de um ano, a denunciar persistentemente, mas sem sucesso, junto das autoridades americanas, o recurso sistemático e repetido por parte das forças militares ocupantes, dos seus serviços prisionais e dos vários serviços de informações, à tortura de prisioneiros, à s execuções sumárias de civis, ao uso desproporcionado da força durante as detenções, à negação dos mais elementares direitos de defesa aos presos.
Em parte, não posso concordar com F. Rosas. Talvez tenha razão num aspecto, a denúncia do que se estava a passar junto das autoridades americanas. Mas essas (autoridades) pouca coisa iriam fazer, já que eram também “autoridades” americanas que estavam a cometer as atrocidades. O que as ONGs deviam ter feito era dar a máxima visibilidade à situação de denúncia. Quanto a mim não o fizeram. Resulta daqui que, para já, tenho duas dúvidas: ou porque não sabiam efectivamente o que se estava a passar (e então “inventam” que já sabiam); ou por não ser oportuno e haver algum engajamento de algumas organizações com o sistema... a situação dos prisioneiros estava no “reino” da omissão. Estou de facto “rodeado” de dúvidas.
Depois de ler mais um texto de Emir Sader*, sobre a conjuntura internacional e onde se inclui o papel das ONGs, o que não tenho dúvidas - é o que me parece que são algumas das tais Organizações Não-Governatais, nomeadamente as de cariz socioeconómicas -, e disso, na medida do possÃvel, passo a dar conta:
Todo o fenómeno que é “novo” assume provisoriamente nomes que não chegam a dar conta de toda a sua riqueza. Frequentemente assumem a sua identidade, no inÃcio, mais pela negação à quilo a que se opõem do que pela afirmação da sua própria natureza.Não foi estranho, assim, que novas formas de organização surgidas ao longo das últimas décadas tenham assumido o nome de “organizações não governamentais” ou ONGs. Lutando por reivindicações no campo dos direitos – das mulheres, dos negros, do meio ambiente, da democratização dos meios de comunicação, dos cuidados de saúde, dos consumidores, da cidadania, entre outros –, conquistaram um espaço próprio, incentivaram a mobilização e a organização de amplos sectores da sociedade, foram mais além do que as formas tradicionais de “luta” – partidos, sindicatos, eleições, parlamentos, governos.
O seu sucesso e perduração – como também as suas mudanças de forma e de função – passaram a colocar problemas mais sérios sobre a sua natureza, a sua composição, a sua relação com outras instâncias da sociedade, a sua transparência, a sua composição, etc. O carácter “não-governamental” dessas organizações passou a revelar, cada vez de maneira mais aguda, a sua ambiguidade. Provavelmente, porque a sua autodefinição como organizações não-governamentais assenta na oposição governamental/não governamental ou, caso se prefira, na oposição estatal/privado.Essa oposição é a que fundamenta o pensamento liberal sobre a sociedade e se presta a grandes confusões ou, pior, a fazer o jogo do liberalismo e do neoliberalismo. Para o liberalismo, trata-se de desqualificar o Estado (e os governos) e privilegiar os espaços da “sociedade civil” composta por indivÃduos, articulados pelo mercado. No espaço da “sociedade civil” congrega-se tudo o que não é Estado – de sindicatos de trabalhadores a empresas privadas, de movimentos sociais a máfias. A “sociedade civil”, assim, é um saco de gatos quando se torna conceito, introduzindo confusões e, pior, amalgamando coisas diferentes, em oposição ao Estado e ao governo, como convém ao liberalismo e ao neoliberalismo.
Se se tratar de lutar contra a hegemonia neoliberal e a sua concepção mercantil do mundo, segundo a qual tudo se vende e tudo se compra, tudo tem um preço – em suma, a centralidade do mercado ou o mercado é tudo –, parece-nos que a oposição não é aquela entre estatal e privado, mas entre público e mercantil. Porque o estatal é um espaço de disputa, havendo Estados (a maioria) dominados pelos interesses privados – isto é, dos grandes capitais privados – e Estados hegemonizados pelos interesses públicos. Um exemplo destes são aqueles em que os governos se orientam pelas polÃticas de orçamento participativo, em que a cidadania organizada decide sobre a utilização dos recursos orçamentais.A esfera pública é aquela que atende aos direitos universais da população, identificando-se assim com as polÃticas democráticas, que se supõe, pelo atendimento dos direitos dos indivÃduos, no fundo, a sua constituição em cidadãos. Como se sabe, para o liberalismo, o seu conceito de “sociedade civil”, compõe-se de indivÃduos e não de cidadãos – isto é, de sujeitos com/de direitos, não reconhecidos pelo mercado.
Assim, os movimentos que lutam por “um outro mundo possÃvel” têm de ser mais democráticos, mais transparentes do que as organizações do sistema polÃtico liberal, que até lhes convêm (transformaram –nos numa outra forma de caridade; lembram-se das filantropias e das beneficências, que campearam para redimir os pecados do capitalismo selvagem, ao longo do século XIX?!) . Devem portanto, antes de tudo, assumir a sua natureza de movimentos civis – de cidadania, assente na defesa dos interesses públicos – e abandonar a denominação de ONGs, que se presta a confundi-las com organizações neoliberais e com organizações que se submetem à s polÃticas do Banco Mundial.Devem, além disso, ter absoluta transparência sobre as suas fontes de financiamento, sobre os critérios de participação nelas, sobre as formas democráticas de eleição dos seus dirigentes, sem o que são vulneráveis à s acusações de que lutam por aprofundar a democracia, mas têm legitimidade duvidosa por não se assumirem claramente como organizações civis e públicas.
Por exemplo, uma das mais importantes organizações surgidas no movimento contemporâneo na luta por “um outro mundo possÃvel” – ATTAC de França (www.france.attac.org)– possui um exemplar formato organizativo, transparente e sob controlo democrático, nas suas formas de participação, de financiamento e de escolha dos seus dirigentes.As ONGs e todas as nebulosas fronteiras com o neoliberalismo ou os movimentos civis: não se trata somente de assumir nome, mas de assumir um conteúdo coerente com a luta por democracias polÃticas, sociais, económicas e culturais, com carácter público, contra a mercantilização do mundo.
Como já fiz referência noutro "post", *Emir Sader é jornalista, escritor, autor de A Vingança da História, editora Boitempo.