Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Sábado, 29 de Maio de 2004
Textos dos amigos

Ainda não é hoje que escrevo sobre o Alentejo... mas o prometido será devido... brevemente. Aliás, para escrever sobre o Alentejo, como Jaime Cortesão o fez na obra, Portugal, a terra e as gentes, nos finais dos anos cinquenta do século passado, tentei fazer o mesmo percurso esta semana que passou, felizmente com muito agrado. As minhas leituras blogueiras (também as escritas) estão atrasadas... as minhas desculpas para aqueles que normalmente “visito”. No entanto, o meu amigo Hugo enviou-me mais um texto, que eu tenho prazer de publicar e simultaneamente agradecer. Parece-me uma boa síntese sobre o que aqui neste “blog” se tem dito/escrito sobre aqueles “arruaceiros” que tomaram conta dos EUA e, de certa forma (qual peste mais peçonhenta), alguns delegados ideológicos tentaram fazer crer por esse mundo fora (neste rectângulo nas “costas da Ibéria infelizmente ainda subsistem impunes) que só havia uma via... a sua malfadada “verdade”! Recomendo a leitura do texto do Hugo Fernandez.


PORQUÊ SEGUI-LOS?


A actual administração norte-americana conseguiu coisas notáveis. Conseguiu basear a sua política externa na confrontação permanente – a célebre “guerra preventiva” – e na procura belicista da supremacia absoluta, doutrina amplamente explanada no documento The National Security Strategy of the United States, de 2002. Conseguiu fomentar a proliferação do armamento mais sofisticado e mortífero – fala-se, mesmo, da utilização “limitada” do nuclear – e promover a paranóia securitária, em termos de pura demência. Conseguiu ocupar militarmente países e apoderar-se das suas riquezas. Conseguiu a disseminação do ódio e da vingança a níveis nunca antes imaginados. Conseguiu estender o terrorismo aos quatro cantos do mundo – de Casablanca a Istambul, de Bali a Mombaça, de Riad a Madrid. Conseguiu pôr em causa todos os ténues resquícios de legalidade internacional, remetendo a ONU para um papel desprezível. Conseguiu não assinar um único – sublinhamos, um único – acordo que permita a coexistência pacífica ou a sustentabilidade da nossa vida no planeta. Conseguiu fazer da democracia uma caricatura e da liberdade uma mera ilusão. Conseguiu espezinhar os mais elementares direitos humanos, prendendo, torturando e matando. Conseguiu disseminar a desgraça e a injustiça. Conseguiu que o mundo fosse pior, mais devastado, mais caótico, mais inseguro.


Esta estratégia suicidária torna as declarações do secretário de estado da Defesa, Donald Rumsfeld, quando em Maio visitou Bagdad e a tristemente célebre prisão de Abu Ghraib, ainda mais espantosas. Segundo este responsável político do governo Bush, os E.U.A constituiriam “o último recurso da humanidade”. Perante a realidade, tais declarações são mais que incompreensíveis; são verdadeiramente perigosas. Porque, se cada homem e cada povo têm uma tendência natural para se posicionarem espacial e culturalmente como o omphallus, o umbigo do mundo, o centro do universo, tal centralidade tem que ser matizada pela existência do outro e do necessariamente diferente.


O que assusta no pensamento extremista dos neoconservadores americanos é que nada disto importa. A sua obstinação é total. Só não vê quem não quer ver. Por isso, Sousa Franco é peremptório: “O Presidente Bush é uma catástrofe que aconteceu aos E.U.A e ao mundo.”


De facto, alegar-se-á que, apesar de tudo, os E.U.A são uma democracia. Sê-lo-ão, mas gravemente debilitada. As atrocidades cometidas nas prisões do Afeganistão e do Iraque aí estão para o demonstrar. Com a agravante que se trataram – como agora se sabe - de práticas generalizadas e mesmo encorajadas pelas chefias militares e pelos serviços secretos americanos. É verdade que estas práticas acabaram por ser reveladas. Mas há quanto tempo organizações com a credibilidade da Cruz Vermelha ou da Amnistia Internacional já vinham denunciando a situação? Pelo menos desde Janeiro, o comando militar sob a chefia de Rumsfeld tinha conhecimento do que se passava e havia informado o Presidente Bush. Houve alguma consequência? Não. Pelo contrário, aquele que é o responsável máximo pelo Pentágono, Donald Rumsfeld, não só não sofreu qualquer percalço, como foi publicamente elogiado pelo Presidente. Vasco Pulido Valente concluirá que “Abu Ghraib é um sintoma; e um aviso. Não é uma surpresa.” (2)


Perante isto, podemos legitimamente interrogar-nos se a consternação demonstrada pelas autoridades dos E.U.A não se deve, antes de mais, ao embaraço causado pela constatação da existência de uma grave fuga de informação. Não faltaram, de resto, senadores republicanos a clamarem o fim desta “autoflagelação”, acusando mesmo de antipatriotismo aqueles que denunciaram estes crimes. Tal parece ser, também, o significado da primeira medida tomada por Rumsfeld sobre as torturas infligidas aos prisioneiros iraquianos: proibir o uso de máquinas fotográficas ou câmaras de vídeo no interior das instalações militares americanas. Torna-se evidente que a principal preocupação das autoridades dos E.U.A não é acabar com as práticas de abusos no Iraque, mas esconder essas práticas ao mundo.


Este clima de impunidade e de “vale tudo” é particularmente claro no novo campo de concentração de Guantánamo, local onde, violando a Convenção de Genebra – assinada, saliente-se, pelos E.U.A em 1949 – se mantêm os detidos num limbo de não-juricidade, um território fora-da-lei onde não existe, sequer, o princípio básico da sua identificação. Aos cerca de 600 prisioneiros aí existentes é atribuída a surrealista designação de “unlawful combatents” (combatentes ilegais) não lhes sendo reconhecido sequer o estatuto de prisioneiros de guerra e sendo-lhes mesmo negados os mais elementares direitos humanos.


Não é por acaso que foi esta mesma administração Bush que se recusou à possibilidade de submeter os soldados americanos à jurisdição do Tribunal Penal Internacional – não ratificando, aliás, o tratado assinado por Clinton – coisa que, sublinhe-se, a generalidade dos outros países fizeram. Por isso, não admira que o bispo D. Januário Torgal Ferreira, em declarações à Antena Um no passado dia 13 de Maio, tenha dito o seguinte: “O presidente Bush quis dividir o mundo em duas partes e dizer que do outro lado é que estava o eixo do mal. O mundo agora sabe onde é que está o mal.” Elucidativo!


Isto para já não falar da sanha persecutória do Patriot Act que, em nome da segurança nacional, estabeleceu um conjunto de leis de excepção e de limitação das liberdades dos próprios cidadãos norte-americanos, que vão desde as escutas telefónicas, à violação da correspondência, às detenções arbitrárias por simples denúncia anónima, à censura e à perseguição a todos aqueles que se opõem ao governo Bush(3) . Ou da promiscuidade indecorosa entre os grandes interesses económicos e a direcção política do Estado, com os negócios do petróleo, do armamento e da construção civil e obras públicas da própria família Bush, do vice-Presidente Richard Cheney ou da conselheira de Segurança Nacional, Condoleeza Rice, como exemplos eloquentes(4) . País onde, recorde-se, – graças à mão oculta do seu irmão, o governador da Florida – George W. Bush consegue ser eleito sem a maioria dos votos dos cidadãos americanos(5) .


Que credibilidade moral tem o governo norte-americano para se arvorar em defensor universal dos princípios da liberdade e da democracia e que permite a existência de Bagram, Abu Ghraib ou Guantánamo? Que democracia é esta que invade países à revelia do direito internacional(6), que mata e destrói indiscriminadamente, que permite a prisão, por tempo indeterminado, de milhares de pessoas – pensa-se que cerca de 10.000, já que razões de “segurança nacional” invocadas pelas autoridades norte-americanos, impedem de conhecer o número exacto – e a utilização sistemática e generalizada da tortura e da humilhação? Que democracia é esta que adopta os mesmos métodos terroristas daqueles que diz combater? Porque se pretendermos combater o terrorismo, pondo em causa os princípios democráticos e o Estado de Direito, aí sim, já teremos perdido esta guerra. O terrorismo terá triunfado.


Esta estratégia de combate ao terrorismo está profundamente errada. Há que dizê-lo com toda a frontalidade. É que, como defendeu Mário Soares, é necessário “ter a coragem de não sermos cúmplices desse erro trágico.”(7) A política seguida pelo governo norte-americano induz, pelo contrário, motivos acrescidos para o desespero e para a revolta e dissemina o fenómeno terrorista a uma escala antes desconhecida. Será que a supremacia americana só encontra a sua verdadeira vocação num mundo dominado pela insegurança e pela guerra? Se em tempos, os E.U.A foram um modelo de democracia para o mundo, esta América mete medo. São precisamente estas perplexidades que levam o conhecido escritor inglês John Le Carré a afirmar que os E.U.A “estão só a uma guerra ou a umas eleições de se transformarem naquilo a que chamamos fascismo.”(8)


Sendo assim, porquê segui-los? O actual governo espanhol e de alguns outros países, cujas forças estiveram presentes no Iraque, já perceberam que ali não se tratava de ajudar a construir um país democrático – a falácia do “nation building” – depois da ditadura sanguinária do antigo aliado dos E.U.A, Saddam Hussein, mas de ser cúmplices numa ocupação militar e na imposição de uma ditadura neo-colonial, com vista ao controle total das enormes riquezas petrolíferas deste país e do controle político-estratégico do Médio Oriente, sob a hegemonia americana e de Israel, seu principal aliado na região. Estes foram, desde o início, os motivos inconfessados da aventura americana no Iraque. “Neste caso”, como diz John Le Carré, “o verdadeiro acto de valentia é desertar.”


Porquê, então, segui-los? Suspeitamos que há duas grandes ordens de razões para essa atitude. Ou por subserviência perante o mais forte, e isso chama-se cobardia. Ou por interesse, na perspectiva de lucrar com as possíveis benesses, sem olhar a meios, e isso chama-se falta de escrúpulos e ganância. Qualquer das alternativas, está bem de ver, é pouco digna.


(1) - Expresso, 15 de Maio.


(2) - Diário de Notícias, 15 de Maio.


(3) - Para não referir a absoluta falta de segurança dos estrangeiros que cruzam as fronteiras americanas e que estão – pelo simples facto de serem estrangeiros – sujeitos a todo o tipo de arbitrariedades.


(4) - Não é por acaso que os chorudos negócios da exploração petrolífera e reconstrução do Iraque, foram atribuídos, sem concursos públicos, quase exclusivamente a empresas norte-americanas, das quais se destacam claramente – pela sua ligação a Washington – a Halliburton e a Bechtel.


(5) - Trazendo-nos à memória o conhecido ditado português que diz: “o que torto nasce, tarde ou nunca se endireita.”


(6) - “Quando a certa altura um jornalista inquiriu o presidente George W. Bush sobre a compatibilidade das decisões norte-americanas com o direito internacional, o presidente limitou-se a responder com arrogância: “O direito internacional? Vou ter de telefonar ao meu advogado!”, Ibrahim Warde, “Abortada corrida ao ouro no Iraque”, Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), Maio de 2004.


(7) - Visão, 22 de Abril.


(8) - Visão, 13 de Maio.



publicado por albardeiro às 13:28
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