II PARTE
No pólo oposto, protótipos da cidadania alentejana, elevada às alturas de respeitabilidade cívica, erguem-se o Condestável e os homens da sua hoste que alevantaram contra os Castelhanos, em Atoleiros, Aljubarrota e Valverde, a muralha das lanças e das almas indomáveis (hoje, vamos a eles outra vez...!).
Mas, com frequência, estes dois tipos coexistem, em proporções diversas, no mesmo ser. E essa fusão de contrastes que dá ao alentejano o seu carácter complexo e rico até à impressão de antinomia viva. Na história, o que caracteriza o alentejano é a inquietação, a fome de espaço e, mais do que isso, aquilo a que o Ratzel chamou o sentido do espaço e dos seus valores, que nas grandes individualidades pode fundir um supermaltês com um superpastor, aliando às capacidades de orientação, tão agudas nos nómades, as qualidades de mando de quem vê do alto da consciência superior os restantes humanos.
Por paradoxal que pareça, talvez na história do Brasil se possa, de preferência, medir esse valor do alentejano. Tomemos por exemplo três tipos correspondentes a três séculos: Marfim Afonso de Sousa, natural de Vila Viçosa que por lá andou durante os anos de 1531 a 1533; António Raposo Tavares, de Beja que aí viveu desde 1624 a 1659; e D. António Rolim de Moura Tavares, natural de Moura, que exerceu funções de governo no Brasil desde 1751 a 1770.
Todos eles, para o feliz desempenho das missões que lhe foram confiadas, necessitavam, em alto grau, do sentido do espaço aliado à consciência do seu valor na formação territorial do Estado. Ao primeiro, coube desviar para leste, contra a letra expressa do Tratado de Tordesilhas, o meridiano de demarcação e dar uma capital geográfica ao Brasil, tarefa de conjunto que visava criar um estado orgânico e viável. Por seu mandado, Pêro Lopes de Sousa plantou padrões reais na foz do Paraná e Diogo Leite no delta amazónico; e ele próprio fundou Piratininga, gérmen urbano de São Paulo, cujos bandeirantes realizaram e ampliaram aquele Brasil ultra-tordesilhano.
A Raposo Tavares pertenceu bem mais árdua missão: expulsar os jesuítas espanhóis dos territórios hoje pertencentes aos Estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Mato Grosso, e verificar quais os possíveis e mais amplos limites com a América Espanhola, o que levou a cabo com uma das maiores explorações de todos os tempos - a bandeira que, sob o seu mando partiu em 1648 de São Paulo, para se internar até aos Andes e cortar de Sul a Norte a actual Bolívia, baixando o Guapai-Mamoré-Madeira, afluente do Amazonas, a cujo delta chegou passados três anos, em 1651, depois de percorrer cerca de 10 000 quilómetros no interior do continente.
Finalmente, a D. António Rolim de Moura, primeiro governador de Mato Grosso, incumbiu a função de consolidar a fronteira ocidental do Brasil, resultante do Tratado de Madrid, para o que teve de povoá-la, fortificá-la e defendê-la, de armas nas mãos, contra os assaltos dos espanhóis. Homem de Estado e de ciência, foi o primeiro que traçou, com o rigor científico possível no seu tempo, o mapa da célebre estrada fluvial das monções, que desde São Paulo levavam aos limites com a Bolívia. Dir-nos-ão os cultos e agudos leitores que a visão geopolítica e o poder do mando, aliados ao zelo de servir o Estado, foram comuns a outros portugueses não alentejanos como Afonso de Albuquerque.
É certo, a prática secular das navegações oceânicas deu a muitos portugueses em alto grau, o sentido ratzeliano do espaço. Mas no caso do alentejano esse super-sentido era produto duma formação cultural congénita e ecológica. Vinha-lhe das raízes afundadas na terra. E convencemo-nos de que não é por mero acaso que Martim Afonso, Raposo Tavares e Rolim de Moura estão intimamente ligados à história homérica da formação territorial da Nação Continente.
CONTINUA